
31 de dezembro de 2008
28 de dezembro de 2008
A cidade que nos resta (Mia Couto)
A CIDADE QUE NOS RESTA (MIA COUTO) Perguntava-me um amigo estrangeiro, acabado de chegar a Maputo, em que ruas ele podia circular à vontade. - À vontade? - perguntei, apenas para ganhar tempo. O fulano ficou olhando o meu rosto pensativo. Poucos anos antes eu teria respondido sem muita hesitação. A cidade mantinha áreas de relativo sossego, onde o pacato cidadão podia circular sem riscos. Mas naquele dia eu acabava de receber a notícia que um colega meu do serviço, em plena Rua Joaquim Lapa, a escassos metros da Esquadra, tinha sido assaltado à mão-armada, em pleno dia. No dia anterior, assim rezava o jornal, uma mulher fora violada na marginal. Não acontecera no lusco-fusco. Sucedera à luz do dia. Na noite anterior eu escutara no noticiário televisivo bairros inteiros reclamando contra o reino de terror da bandidagem. Na semana anterior, um estrangeiro que visitava a nossa empresa, próximo do Hotel Polana tinha sido agredido por um grupo de jovens. Nós tínhamos informado esse mesmo consultor estrangeiro que o bairro era tranquilo e que ele podia caminhar pelas redondezas sem problema. Horas depois, estávamos visitando o pobre homem no Hospital. - Ora caminhar à vontade .... ruminei eu, já consciente do preço da minha demora. O visitante salvou-me do embaraço, decidindo filosofar sobre a tendência universal do aumento da criminalidade. Eu acreditava que o mau momento passara quando ele lançou nova interrogação: - E conduzir? - Conduzir? Ao menos, eu fizesse uso de mais imaginação. A repetição da pergunta era um estratagema que ameaça saturar. - Sim, conduzir um carro? Acha que posso? - Claro que pode, se tiver carta de condução. - Tenho, sim. Mas é seguro? - Bem... quer dizer... é preciso ter alguns cuidados... - Como, por exemplo....por exemplo.... Desta feita, as imagens cruzaram-me a mente com a velocidade de um chapa cem. Como explicar ao pobre turista que nos semáforos não se arranca quando abre o verde. Como explicar que, em certas esquinas, o vermelho corresponde ao verde e só se pára no amarelo? Que em outros cruzamentos o verde corresponde ao amarelo? Como esclarecer que os chapas nunca param nos semáforos e param sempre no meio da estrada? O estrangeiro entendeu a demora na minha resposta. Deve ter ficado a matutar: a pé não podia, de carro não devia. Como usufruiria ele da cidade? E a mim mesmo eu me questionei: que cidade nos resta a nós, cidadãos de Maputo? Não podemos oferecer a cidade aos outros porque ela está deixando de ser nossa.
- Deixe estar, disse ele para me tranquilizar. Eu vou ficando no Hotel. Num impulso eu quase dizia: eu também me vou mudar para o seu Hotel. E enquanto conduzia o meu amigo rumo ao seu alojamento eu fui olhando Maputo e pensando se como o cidadão está perdendo a cidade, como nos restam de Maputo as sobras daquilo que a voragem do caos não está ainda dominando.
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Dois estandartes da Revolução Moçambicana: o Nacional e o do Partido Frelimo
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21 de dezembro de 2008
19 de dezembro de 2008
O primeiro postal de Natal (Dezembro de 1843)

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17 de dezembro de 2008
O avô e o neto (Jacob Grimm and Wilhelm Grimm)

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A rapariga e os fósforos (Christian Andersen)

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Uma visita inesperada (Acácio Simões)

UMA VISITA INESPERADA Foi na noite de Natal. Um anjo apareceu a uma família muito rica e falou para a dona da casa. - Trago-te uma boa notícia: esta noite o Senhor Jesus virá visitar a tua casa! Aquela senhora ficou entusiasmada. Jamais acreditara ser possível que esse milagre acontecesse em sua casa. Tratou de preparar um excelente jantar para receber Jesus. Encomendou frangos, assados, conservas, saladas e vinhos importados. De repente, tocaram a campainha. Era uma mulher com roupas miseráveis, com aspecto de quem já sofrera muito. - Senhora, - disse a pobre mulher, - Será que não teria algum serviço para mim? Tenho fome e tenho necessidade de trabalhar. - Ora bolas! - retorquiu a dona da casa. - Isso são horas de me vir incomodar? Volte outro dia. Agora estou muito atarefada com um jantar para uma visita muito importante. A pobre mulher retirou-se. Um pouco mais tarde, um homem, sujo de óleo, veio bater-lhe à porta. - Senhora, - disse ele, - O meu camião avariou aqui mesmo em frente à sua casa. Não teria a senhora, por acaso, um telefone para que eu pudesse comunicar com um mecânico? A senhora, como estava ocupadíssima em limpar as pratas, lavar os cristais e os pratos de porcelana, ficou muito irritada. - Você pensa que minha casa é o quê? Vá procurar um telefone público... Onde já se viu incomodar as pessoas dessa maneira? Por favor, cuide para não sujar a entrada da minha casa com esses pés imundos! E a anfitriã continuou a preparar o jantar: abriu latas de caviar, colocou o champanhe no frigorífico, escolheu, na adega, os melhores vinhos e preparou os coquetéis. Nesse momento, alguém lá fora bate palmas. "Será que agora é que é Jesus?" -pensou ela, emocionada. E com o coração a bater acelerado, foi abrir a porta. Mas decepcionou-se: era um menino de rua, todo sujo e mal vestido... - Senhora, estou com fome. Dê-me um pouco de comida! - Como é que eu te vou dar comida, se nós ainda não jantámos?! Volta amanhã, porque esta noite estou muito atarefada... não te posso dar atenção. Finalmente o jantar ficou pronto. Toda a família esperava, emocionada, o ilustre visitante. Entretanto, as horas iam passando e Jesus não aparecia. Cansados de tanto esperar, começaram a tomar aqueles coquetéis especiais que, pouco a pouco, já começavam a fazer efeito naqueles estômagos vazios, até que o sono fez com que se esquecessem dos frangos, assados e de todos os pratos saborosos. De madrugada, a senhora acordou sobressaltada e, com grande espanto, viu que estava junto dela um anjo. - Será que um anjo é capaz de mentir? - gritou ela. - Eu preparei tudo esmeradamente, aguardei a noite inteira e Jesus não apareceu. Por que é que você fez essa brincadeira comigo? - Não fui eu que menti... Foi você que não teve olhos para enxergar. - explicou o anjo. - Jesus esteve aqui em sua casa três vezes: na pessoa da mulher pobre, na pessoa do motorista e na pessoa do menino faminto, mas a senhora não foi capaz de reconhecê-lo e acolhê-lo em sua casa". Acácio Simões
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14 de dezembro de 2008
A dinâmica do Instituto Camões no espaço CPLP (Inês Costa Pessoa)
A DINÂMICA DO INSTITUTO CAMÕES NO ESPAÇO CPLP
Inês Costa Pessoa
O Instituto Camões, criado em 1992, tem como objectivo genérico a divulgação da língua e cultura portuguesas no estrangeiro, actuando através de três eixos: diplomático-consular, artístico-cultural e científico-académico. É no espaço CPLP que o Instituto concentra grande parte da sua dinâmica – 11 de entre os 19 Centros Culturais criados concentram-se em países da CPLP, dos 20 Centros de Língua Portuguesa criados, 10 encontram-se em países da CPLP. Por outro lado tem-se vindo a verificar a consolidação da rede de docência, a atribuição de bolsas de estudo e de investigação, etc.
Vocacionado para divulgar a língua e cultura portuguesas no estrangeiro, o Instituto Camões (IC) figura, desde a sua criação em 1992 (data em que toma o lugar do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa - ICALP) (1), como uma das mais importantes plataformas de promoção e afirmação da identidade lusófona além fronteiras. Esta afirmação é particularmente estimulada e estimulante num tempo em que proliferam os receios – deveras discutidos e sempre questionáveis – de anulação ou silenciamento das culturas nacionais e locais perante um processo de globalização (entendido como sinónimo de “americanização” e “europeização”), por muitos considerado hegemónico e homogeneizante.
Por conseguinte, é a esta entidade que cabe, em parceria com outros organismos estatais – designadamente o Instituto da Cooperação Portuguesa (agora APAD), os Ministérios da Cultura, da Educação, do Ensino Superior e da Ciência, pôr em prática os vectores prioritários da política cultural externa portuguesa, onde é dado especial destaque à questão linguística, isto é, à multiplicação do número de falantes de português. Mas não só. Visa, em concomitância, fazer chegar Portugal aos quatro cantos do mundo nas mais diversas dimensões artístico-culturais, como a história, o património e a arquitectura, a literatura e a poesia, as artes plásticas, performativas e cinematográficas, a fotografia...
Esferas de actuação do IC
Com vista à concretização dos objectivos assinalados, a esfera de intervenção do IC desdobra-se em uma tríade de eixos fundamentais: diplomático-consular (a cargo das embaixadas e consulados); artístico-cultural (dinamizada pelos Centros Culturais) e científico-académica (ao cuidado dos Centros de Língua Portuguesa, Universidades e Institutos Superiores).
Progressivamente dilatadas, as acções empreendidas contemplam iniciativas tão diferentes quanto complementares. De entre elas destacamos as seguintes:
Celebração de acordos ou protocolos de cooperação com países terceiros que estimulem a difusão da língua portuguesa no estrangeiro e a promoção da cultura lusófona;
Implementação, coordenação e dinamização das iniciativas empreendidas nos centros culturais e de língua portuguesa;
Ampliação e consolidação da rede de docência em universidades estrangeiras (formação de leitores e criação de cátedras);
Investimento na rede de bibliotecas (dotando-as de melhores equipamentos e ampliando os fundos documentais);
Atribuição de bolsas de estudo e financiamento de projectos de investigação nas áreas da educação, investigação e criação artística que se debrucem em torno da língua e cultura lusas, bem como apoio à edição de obras escritas em português;
Fomento de contactos e estabelecimento de parcerias com entidades congéneres, instituições de âmbito cultural, universidades e consulados;
Apoio à representação portuguesa em eventos no estrangeiro, de modo a conferir visibilidade aos signos de portugalidade, valorizando-os (é o caso da participação nas feiras do livro, espectáculos e exposições);
Incentivo ao intercâmbio cultural e educativo;
Organização de encontros internacionais (congressos, seminários, cursos) em torno da língua e cultura lusófona.
Dinamização do recém-criado Centro Virtual Camões, um espaço privilegiado para dar a conhecer, a uma rede que se pretende cada vez mais ampla, a língua, lugares, personalidades, informações e criações nacionais e que, pelo facto de estar disponível online, goza da vantagem de contribuir, sem constrangimentos físico-espaciais, para o cumprimento dos propósitos do Instituto.
É de assinalar ainda que, para além da elaboração de programas próprios, susceptíveis de disseminar pelo mundo os signos linguísticos e culturais portugueses, este organismo tem incentivado e publicitado iniciativas públicas e privadas, nacionais e internacionais em torno da produção, distribuição e consumo da cultura lusófona.
Instituto Camões no espaço CPLP
O português, falado por mais de 200 milhões de indivíduos, figura como a terceira língua materna europeia com maior representação mundial, a sexta mais falada no mundo, sendo ainda o idioma oficial dos oito Estados que compõem a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) constituída em 1996 – Portugal, Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Moçambique e Timor-Leste, o mais recente membro –, daí o estatuto de veículo estratégico de comunicação internacional que lhe vem sendo reconhecido.
Estes países têm ocupado um lugar distintivo na política externa cultural portuguesa: Portugal assinou até hoje mais de 70 acordos culturais, dos quais cerca de duas dezenas com membros da CPLP. Porém, se muitas vezes os acordos e protocolos não passam de meras declarações de intenções incapazes de converter-se em práticas efectivas, a crescente proliferação de Centros Culturais e de Língua Portuguesa no espaço lusófono, a consolidação da rede de docência nestes países, a atribuição de bolsas de estudo e investigação a estudantes nacionais do espaço CPLP, a criação do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), o apoio à edição e a atribuição anual do Prémio Camões (2) a autores lusófonos, entre vários outros exemplos, são testemunhos vivos do real interface entre Portugal e os mesmos.
De um total de 19 Centros Culturais (incluindo os pólos) criados pelo IC no mundo, 11, isto é metade, estão concentrados na área CPLP. Dos 20 Centros de Língua Portuguesa implementados em 16 países (3), 10 figuram nesse mesmo espaço. Em termos de projectos futuros na área CPLP, o IC visa incrementar o número de Centros Culturais, e também acentuar a colaboração com instituições locais, mediante o accionar de programas específicos de cooperação. Sendo a valorização do português nos territórios que integram a CPLP um objectivo premente do IC, a dinamização do IILP e o seu envolvimento na criação do Instituto Internacional de Línguas Oficiais (INLO) em Timor-Leste lideram a lista de prioridades desta entidade.
Em conclusão, registe-se que, apesar de o espaço da CPLP constituir um dos palcos estratégicos da política cultural externa portuguesa, é imprescindível reavivar e intensificar os laços históricos e culturais que unem o país aos demais parceiros desta comunidade, para que a mesma não se esgote, como por vezes aparenta, na mera afinidade linguística.
__________
1 A partir de 1994, o IC passa a ser tutelado pelo MNE, superintendência que até esta data permanecia a cargo do ME.
2 Este galardão é atribuído conjuntamente, desde 1989, pelo Instituto Camões e o Instituto Nacional do Livro Brasileiro.
3 Encontram-se em fase de instalação mais nove Centros de Língua Portuguesa. Agradecemos a incansável colaboração da Dra. Ana Paula Duarte e do Dr. Jorge Encarnação.
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Frelimo: A emancipação da mulher num programa revolucionário
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8 de dezembro de 2008
O sonho do Pai Natal (Vaz Nunes)
O SONHO DO PAI NATAL O Pai Natal sonhou um sonho lindo, tão lindo que não queria acordar. E não queria acordar porque neste ano os Humanos encheram-se de boa vontade e fizeram um acordo de Paz, que silenciou todas as armas. Em todos os cantos do planeta, mesmo nos lugares mais recônditos da Terra, as armas calaram-se para sempre e os carros de combate e outras máquinas de guerra foram entregues às crianças para neles pintarem flores brancas de paz. O Pai Natal sonhou um sonho lindo, tão lindo que não queria acordar. E não queria acordar porque nesse sonho não havia fome: em todas as casas havia comida, havia até algumas guloseimas para dar aos mais pequenos. Mesmo as crianças de países outrora pobres tinham agora os olhos brilhantes, brilhantes de felicidade. Todas as crianças tinham acabado de tomar um esplêndido pequeno-almoço e preparavam-se para ir para a escola, onde todos aprendiam a difícil tarefa de crescer e ser Homem ou Mulher. O Pai Natal sonhou um sonho lindo, tão lindo que não queria acordar. E no seu sonho não havia barracas, com água a escorrer pelas paredes e ratos pelo chão, nem gente sem tecto, a dormir ao relento. No sonho do Pai Natal, todos tinham uma casa, um aconchego, para se protegerem do frio e da noite. O Pai Natal sonhou um sonho lindo, tão lindo que não queria acordar. E no seu sonho não havia instituições para acolher crianças maltratadas e abandonadas pelos pais nem pequeninos e pequeninas à espera de um carinho, de um beijo… de AMOR. Todas as crianças tinham uma família: uma mãe ou um pai ou ambos os pais, todas as crianças tinham um colo à sua espera. O Pai Natal sonhou um sonho lindo, tão lindo que não queria acordar. E no seu sonho não havia palavrões e outras palavras feias, não havia empurrões, má educação e desentendimentos. Toda a gente se cumprimentava com um sorriso nos lábios. Nas estradas, os automobilistas não circulavam com excesso de velocidade, cumpriam as regras de trânsito e não barafustavam uns com os outros. O Pai Natal sonhou um sonho lindo, tão lindo que não queria acordar. E no seu sonho não havia animais abandonados pelos seus donos, deixados ao frio, à fome e à chuva, nem animais espetados e mortos nas arenas, com pessoas a aplaudir. Mas, afinal, quando despertou verdadeiramente, o Pai Natal viu que tudo não tinha passado de um sonho; que pouco do que sonhara acontecia de verdade. Ficou triste, muito triste, e pensou: « - Afinal, ainda é preciso que, pelo menos uma vez por ano, se celebre o Natal!». E, nessa noite, o Pai Natal começou os preparativos para dar, mais uma vez, um pouco de alegria a todas as crianças do Mundo. Retirado de "Diário de Aveiro", de 2000/12/07 Adaptado por Vaz Nunes - Ovar
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7 de dezembro de 2008
Elegia na morte de Samora Moisés Machel (Carlos Domingos)
ELEGIA NA MORTE DE SAMORA MOISÉS MACHEL
(Poema inscrito no livro de condolências da
Embaixada da República Popular de Moçambique)
Não venho trazer-te flores, mas um grito.
No teu sangue derramado
lateja a minha dor e a minha raiva.
Dentro de mim estremeceu o mundo
e o mar ferveu,
os sorrisos voaram em estilhaços
e desmoronou-se a torre em construção.
Agora estamos nus sob os escombros
e a tua ausência é um vento frio
soprando por dentro.
Mas nada poderá deter-te, nem a morte!
De súbito, surgiste ao nosso lado,
sentimos a tua mão de confiança,
continuas de pé, jovem, invencível,
com a vitória a sorrir-te nos lábios.
Nada poderá deter-nos, Samora Machel.
As nossas mãos, a nossa voz, as nossas armas
velarão a tua memória
e arrancarão os frutos renitentes
à terra ainda em flor.
Carlos Domingos
(22 de Outubro de 1986)
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Presidente da República Samora Moisés Machel
As cicatrizes da África na Moçambique de Mia Couto
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Maputo - Avenidas: 24 de Julho, Brito de Camacho e o Liceu Salazar (2005)
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Maputo - Avenidas: Craveiro Lopes, Augusto de Castilho e Pinheiro Chagas (2005)
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4 de dezembro de 2008
2 de dezembro de 2008
29 de novembro de 2008
O assalto (Mia Couto)
O ASSALTO (MIA COUTO)
Uns desses dias fui assaltado. Foi num virar de esquina, num desses becos onde o escuro se aferrolha com chave preta. Nem decifrei o vulto: só vi, em rebrilho fugaz, a arma em sua mão. Já eu pensava fora do pensamento: eis-me! A pistola foi-me justaposta no peito, a mostrar-me que a morte é um cão que obedece antes mesmo de se lhe ter assobiado. Tudo se embrulhava em apuros e eu fazia contas à vida. O medo é uma faca que corta com o cabo e não com a lâmina. A gente empunha a faca e, quanto maior a força de pulso, mais nos cortamos. — Para trás!Obedeci à ordem, tropeçando até me estancar de encontro à parede. O gelo endovenoso, o coração em cristal: eu estava na ante-câmara, à espera de um simples estalido. Cumpria os mandamentos do assaltante, tudo mecanicamente. E mais parvalhado que o cuco do relógio. O que fazer? Contra-atacar? Arriscar tudo e, assim sem mais nem nada, atirar a vida para trás das costas?— Diga qualquer coisa.— Qualquer coisa?— Me conte quem é. Você quem é?Medi as palavras. Quanto mais falasse e menos dissesse melhor seria. O maltrapilho estava ali para tirar os nabos e a púcara. Melhor receita seria o cauteloso silêncio. Temos medo do que não entendemos. Isso todos sabemos. Mas, no caso, o meu medo era pior: eu temia por entender. O serviço do terror é esse — tornar irracional aquilo que não podemos subjugar. — Vá falando.— Falando?— Sim, conte lá coisas. Depois, sou eu. A seguir é a minha vez. Depois era a vez dele? Mas para fazer o quê? Certamente, para me executar a sangue esfriado, pistolando-me à queima-roupa. Naquele momento, vindo de não sei onde, circulou por ali um furtivo raio de luz, coisa pouca, mais para antever que para ver. O fulano baixou o rosto, e voltou a pistola em ameaça. — Você brinca e eu …Não concluiu ameça. Uma tosse de gruta lhe tomou a voz. Baixou, numa fracção, a arma enquanto se desenvencilhava do catarro. Por momento, ele surgiu-me indefeso, tão frágil que seria deselegância minha me aproveitar do momento. Notei que tirava um lenço e se compunha, quase ignorando minha presença. — Vá, vamos mais para lá. Eu recuei mais uns passos. O medo dera lugar à inquietação. Quem seria aquele meliante? Um desses que se tornam ladrões por motivo de fraqueza maior? Ou um que a vida empurrara para os descaminhos? Diga-se de passagem que, no momento, pouco me importavam as possíveis bondades do criminoso. Afinal, é do podre que a terra se alimenta. E em crise existencial, até o lobisomem duvida: será que existe o cão fora da meia-noite? Fomos andando para os arredores de uma iluminação. Foi quando me apercebi que era um velho. Um mestiço, até sem má aparência. Mas era um da quarta idade, cabelo todo branco. Não parecia um pobre. Ou se fosse era desses pobres já fora de moda, desses de quando o mundo tinha a nossa idade. No meu tempo de menino tínhamos pena dos pobres. Eles cabiam naquele lugarzinho menor, carentes de tudo, mas sem perder humanidade. Os meus filhos, hoje, têm medo dos pobres. A pobreza converteu-se num lugar monstruoso. Queremos que os pobres fiquem longe, fronteirados no seu território. Mas este não era um miserável emergido desses infernos. Foi quando, cansado, perguntei: — O que quer de mim?— Eu quero conversar.— Conversar?— Sim, apenas isso, conversar. É que, agora, com esta minha idade, já ninguém me conversa. Então, isso? Simplesmente, um palavreado? Sim, era só esse o móbil do crime. O homem recorria ao assalto de arma de fogo para roubar instantes, uma frestinha de atenção. Se ninguém lhe dava a cortesia de um reparo ele obteria esse direito nem que fosse a tiro de pistola. Não podia era perder sua última humanidade — o direito de encontrar os outros, olhos em olhos, alma revelando-se em outro rosto. E me sentei, sem hora nem gasto. Ali no beco escuro lhe contei vida, em cores e mentiras. No fim, já quase ele adormecera em minhas histórias eu me despedi em requerimento: que, em próximo encontro, se dispensaria a pistola. De bom agrado, nos sentaríamos ambos num bom banco de jardim. Ao que o velho, pronto, ripostou: — Não faça isso. Me deixe assaltar o senhor. Assim, me dá mais gosto. E se converteu, assim: desde então, sou vítima de assalto, já sem sombra de medo. É assalto sem sobressalto. Me conformei, e é como quem leva a passear o cão que já faleceu. Afinal, no crime como no amor: a gente só sabe que encontra a pessoa certa depois de encontrarmos as que são certas para outros.
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Isaura para sempre dentro de mim (Mia Couto)
ISAURA PARA SEMPRE DENTRO DE MIM (MIA COUTO)
Isaura entrou pelo bar como se entrasse pela última porta e nós fôssemos os deuses que a aguardássemos do outro lado. Fora ficava esse céu todo azulzinado, os zunzuns da gente no bazar. A aparição da mulher fez estancar meu coração, suspenso na rédea do espanto. Escutei íntimos desacordes, sangue para um lado, veias para outro. É que eu não via a Isaurinha há mais de vinte anos, mais de metade do tempo que eu amealhava existências. De repente, me chegaram lembranças como se em meu peito desembarcassem imagens e sons, atropelando-se em desordem. Foi no tempo colonial. Eu e a Isaurinha éramos empregados domésticos na mesma casa. Ela empregada de dentro, eu de fora. Ambos, miúdos, em idade mais de brincar. Aos fins da tarde, quando ela despegava me vinha contar as novidades, segredos da vida dos brancos. Era hora de eu passear a cãozoada. Ela me acompanhava, rodávamos pelos quarteirões enquanto ela me fazia rir, com as suas revelações. Que o patrão a empurrava nos cantos sombrios e a apertava de encontro às paredes. Não havia parede em que ele, de pé, não tivesse deitado. Tudo aquilo lhe dava nojeira, reviragem nas vísceras. Queixar a quem? A Deus? Eu sonhava que me subiam coragens e enfrentava o patrão. Mas adormecia sem ousadia sequer de terminar o sonho. E agora Isaura interrompia o meu tempo de existir, rompante adentro da cervejaria. Estava quase na mesma, o tempo não a redesenhara. magra, como sempre fora. Olhos acesos como réstias de brasa. Em seus dedos um cigarro me sacudiu lembranças. Como se o centro de minha memória fosse um fumo. Sim, o fumo de cigarro que ela, vinte anos antes, trazia de dentro da casa dos patrões para as traseiras onde eu a esperava. Fazia o seguinte pegava a beata distraída num cinzeiro de salão e chupava umas boas passas. Enchia as bochechas de fumo vinha ter comigo ao pátio. Ganhava um ar apalhaçado, com dupla cara como a coruja. Chegava-se a mim e vizinhávamo-nos, cara com cara. Depois, boca com boca, os lábios meus em concha recebiam os dela. Isaura soprava para dentro de mim esse fumo. Sentia aquecer-me meus interiores, a saliva quase fervendo. Depois, não era só a boca todo o meu corpo se ia esquentando. Era assim que fumávamos, a meio hálito, boca de um cruzamento e peito do outro. Praticávamos o quê? Fumigação boca-a-boca? Uma coisa era de certeza meu endereço era o céu, nesses instantes. Isaura me exaltava eternidades, lábios vaporosos me roçando o coração. Tudo ali na cubata das traseiras. Simples procedimento aquele Isaura aparava as unhas dos cigarrinhos, beatas ainda moribundas. Não parecia que Isaura deitasse valor naquele trocar de lábios. Ela gostava mesmo era de tabaco, pouco a pouco se adentrando no vício das fumagens. Eu e a descarga suja em meus pulmões eram simples acidentes sem percurso. Até que, certa vez, o patrão nos surpreendeu naquelas disposições. Choveram insultos, imediatas pancadas. E logo eu, desculpando Isaura, assumi as inteiras culpas. Construí a versão eu a tinha assaltado, obrigado contra as suas vontades. Nesse mesmo dia, fui expulso, despedido. Nem me despedi de Isaurinha. Levei meus pertences, por baixo de uma lua tristonha. E nunca mais Isaura, nunca mais notícias dela. Vinte anos depois, Isaura desarrumava a tarde, interrompendo o bar. Para mais, ela trazia entre os dedos um cigarro, fumejante. Ela se sentou em minha mesa e, sem me olhar, desatou as falas. Tanta lembrança boa. Mas a favorita é você, Raimundano. Lhe digo esse fumo todo que lhe deitei sabe o que eu queria, só mais nada? Era um beijo. Estremeci. Aquilo era a justa navalha, me lacerando? Mas ela seguia, no avanço de seus ditos. Sim, que ela em tempos, me amara. Nunca mostrara aquele querer dela, por motivo de decências. É que era tão magra que era má educação se exibir. Que ela escolhia para mim suas melhores belezas, como quem tem prendas mas não sabe nem a quem dar. - Porquê, Isaura? Porque nunca me procurou? - Porque lhe deixei de amar. Foi aquele sua mentira para me proteger. Isso, me fez muito mal. Desde o momento que eu a defendera, o sentimento tombara, sobra de sombra. Ofensa de quê? Nunca saberei. Isaura, ali sentada, não me explicaria nada. Como se tivesse passado não o tempo, mas a vida inteira. Levantou-se, arrastou a cadeira como se arrumar os móveis fosse mais importante neste mundo. E se dirigiu para a saída, a angústia me resumindo como se, pela segunda vez, minha vida se ecoasse por aquela porta. Minha voz, nem a reconheci -Sopre-me outra vez um fumo, Isaura. Um fuminho, só. Ela me olhou, os olhos tão longe que parecia nem ter focagem. Aspirou fundo o cigarro, refreou umas tosses e veio em minha renteza. Quando ela colou seus lábios em mim, se fabulou o seguinte a mulher se converteu em fumo e se desvaneceu. Primeiro no ar e, depois, lento, na aspiração de meu peito. Nessa tarde, eu fumei Isaurinha.
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Sangue da avó manchando a alcatifa (Mia Couto)
SANGUE DA AVÓ MANCHANDO A ALCATIFA (MIA COUTO)
Siga-se o improvérbio dá-se o braço e logo querem a mão. Afinal, quem tudo perde, tudo quer. Contarei o episódio evitando juntar o inutil ao desagradável. Veremos, no final sem contas, que o ultimo a melhorar é aquele que ri. Mandaram vir para Maputo a avó Carolina. Razões de guerra. A velha mantinha magras sobrevivências lá, no interior, em terra mais frequentada por balas que por chuva. Além disso, a avó estava bastante cheia de idade. Carolina merecia as penas. A vovó chegou e logo se admirou dos luxos da familia. Alcatifas, mármores, carros, uisques tudo abundava. Nos principios, ela muito se orgulhou daquelas riquezas. A Independencia, afinal, não tinha sido para o povo viver bem? Mas depois, a velha se foi duvidando. Afinal, de onde vinham tantas vaidades? E porque razão os tesouros desta vida não se distribuem pelos todos? Carolina, calada em si, não desistia de se perguntar. Parecia demorar-se em estado de domingo. Mas, por dentro, os mistérios lhe davam serviço. Na aldeia, a velha muito elogiara a militancia dos filhos citadinos, comentando os seus sacrificios pela causa do povo. Em sua boca, a familia era bandeira hasteada bem no alto, onde nem poeira pode trazer mancha. Mas agora ela se inquietava olhando aquela casa empanturrada de luxos. A filha vinha da loja com sacos cheios, abarrotados.- Este abastecimento não é tão demais?- Cala vovó. Vai lá ver televisão.Sentavam a avó frente ao aparelho e ela ficava prisioneira das Luzes. Apoiada numa velha bengala, adormecia no sofá. E ali lhe deixavam. Mais noite, ela despertava e luscofuscava seus pequenos olhos pela sala. Filhos e netos se fechavam numa roda, assistindo video. Quase lhe vinha um sentimento doce, a memória da fogueira arredondando os corações. E lhe subia uma vontade de contar estórias. Mas ninguém lhe escutava. Os miudos enchiam as orelhas de auscultadores. O genro, de óculos escuros, se despropositava, ressonante. A filha tratava-se com pomadas, em homenagem aos gala-galas(*) [* lagarto de cabeça azul]. A avó regressava à sua ilha, recordando a aldeia. Lá, no incendio da guerra, tudo se perdera. Ficaram sofrimentos, cinzas, nadas.- Essas coisas todas, meu genro, de onde vêm?- São horas extraordinárias.Devia ser horas muito extraordinárias, avaliava a avó. Cansada de tanta coisa que não podia explicar, ela pediu para regressar. Voltava para o lugar onde pertencia, vizinha da ausência. Então, os filhos lhe ofereceram roupas bonitas, sapatos de muito tacão e até um par de óculos para corrigir as atenções da idosa senhora. Carolina cedeu à tentação. Bonitou-se. Pela primeira vez saiu a ver a cidade.- Nunca atravesse nenhuma rua. Você não tem idade para pedestrar.Não chegou de atravessar. Logo no passeio, ela viu os meninos farrapudos, a miséria mendigando. Quantas mãos se lhe estenderiam, acreditando que ela fosse proprietária de fundos bolsos? A avó sentou-se na esquina, tirou os óculos, esfregou os olhos. Chorava? Ou sentia apenas lágrimas faciais, por causa das indevidas lentes? Regressada a casa, ela despiu as roupas, atirou no chão os enfeites. Da mala de cartão retirou as consagradas capulanas, cobriu o cabelo com o lenço estampado. E juntou-se à sala, inexistindo, entre o parentesis dos parentes. Nessa noite, a televisão transmitia uma reportagem sobre a guerra. Mostravam-se bandidos armados, suas medonhas acções. De subito, sem que ninguém pudesse evitar, a velha atirou sua pesada bengala de encontro ao aparelho de televisão. O ecran se estilhaçou, os vidros tintilaram na alcatifa. Os bandidos se desligaram, ficou um fumo rectangular.- Matei-lhes, satanhocos gritou a avó.Primeiro todos se estupefactaram. Os meninos até choraram, assustados. O genro reabilitou-se aos custos. Soprando raivas, ergueu-se em gesto de ameaça. Mas a avó, apanhando a bengala, avisou o homem:- Tu cala-te. Não sentes vergonha? Há bandidos a passear aqui na tua sala e tu não fazes nada.Incrustada em espanto, a familia encarava a anciã. Carolina monumentara-se, acrescida de muitos tamanhos. Então, atravessou a sala, vassourou os estragos, meteu os vidrinhos num saco de plástico.- Estão aqui todos disse.E entregou o saco ao genro. Do plástico pingavam gotas de sangue. O genro espreitou as próprias mãos. Não, ele não se tinha cortado. Era sangue da avó, gotas antiquissimas. Tombaram no tapete, em vermelha acusação. Na manhã seguinte, a avó despachou o seu regresso. Voltou à sua terra, nem dela se soube mais. Na cidade, a familia se recompos sem demora. Compraram um novo aparelho de televisão, até que o anterior já nem era compativel. De vez em quando recordavam a avó e todos se riam por unanimidade e aclamação. Festejavam a insanidade da velha. Coitada da avó. No entanto, ainda hoje uma mancha vermelha persiste na alcatifa. Tentaram lavar desconseguiram. Tentaram tirar os tapetes impossível. A mancha colara-se ao soalho com tal sofreguidão que só mesmo arrancando o chão. Chamaram o parecer do feiticeiro. O homem consultou o lugar, recolheu sombras. Enfim, se pronunciou. Disse que aquele sangue não terminava, crescia com os tempos, transitando de gota para o rio, de rio para oceano. Aquela mancha não podia, afinal, resultar de pessoa única. Era sangue da terra, soberano e irrevogável como a própria vida.
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Carta (Mia Couto)
CARTA (MIA COUTO)
A velha dobrou as pernas como se dobrasse os séculos. Ela sofria doença do chão, mais e de mais se deixando nos caídos. Amparava-se em poeiras, seria para se acostumar à cova, na subfície do mundo?- Me leia a carta. Me entregava o papel marrotado, dobrado em mil sujidades. Era a Carta de seu filho, Ezequiel. Ele se longeara, de farda, cabelo no zero. A carta, ele a enviara fazia anos muito coçados. Sempre era a mesma, já eu lhe conhecia de memória, vírgula a vírgula.- Outra vez, mamã Cacilda?- Sim, maistravez.Sentei o papel sob os olhos, fingi acarinhar o desenho das letras. Quase nem se viam, suadas que estavam. Dormiam sob o lenço de Cacilda, desde que chegara a guerra. Essas letras cheiram a pólvora, me rodilham o coração. Era o dito da velha. Agora, passados os tempos, aquele papel era a única prova do seu Ezequiel. Parecia que só pelo escrito, sempre mais desbotado, seu filho acedia à existencia. Nas primeiras vezes eu até me procedia à leitura, traduzindo a autêntica versão do pequeno soldado. Eram letras incertinhas, pareciam crianças saindo da formatura. Juntavam-se ali mais erros que palavras. O recheio nem era maior que o formato. Porque naquela escrita não havia nem linha de ternura. O soldado aprendera a guerra desaprendendo o amor? Em Ezequiel, morrera o filho para nascer o tropeiro? Nas primeiras leituras, meu coração muito se apertava em inventadas dedicatórias aquela mãe. Enquanto lia, eu espreitava o rosto da idosa senhora, tentando escutar uma ruga de tristeza. Nada. A velha se imovia, como se tivesse saudade da morte. Seus olhos não mencionavam nenhuma dor. Eu tentava um alivio, desculpar o menino que não sobrevivera à farda. Nem se entristenha, mamã Cacilda. Também, maneira como carregaram esse menino para a tropa! Sem camisa, sem mala, sem notícia. Atirado para os fundos do camião como se faz às encomendas sem endereço.- Entenda, mamã Cacilda.Mas ela já dormia, deitada em antiquíssima sombra. Ou mentia que Dormia, debruçada na varanda da alma? Fingia, a velha. Como o rio, num açude, se disfarça de lagoa. Depois, ela regressava às pálpebras, me apressava.- Continua. Por que paraste?Já não restava nada que ler. Era só o gorduroso gatafunho, despedida Sem nenhum beijo. Pode a carta de um saudoso filho terminar assim «unidade, trabalho, vigilância»? Mas a velha insistia, cismalhava. Eu que lesse, toda a gente sabe, as letras igualam as estrelas mesmo poucas são infinitas. Eu lhe fosse paciente, pobre mãe, sem nenhuma escola. Foi então que passei a alongar aquela tinta, amolecendo as reais palavras. Inventava. Em cada leitura, uma nova carta surgia da velha missiva. E o Ezequiel, em minha imagináutica, ganhava os infindos modos de ser filho, homem com méritos para permanecer menino. Cacilda escutava num embalo, houvessem em minha voz ondas de um sepultado mar. Ela embarcava de visita a seu filho, tudo se passando na bondade de uma mentira. Diz-se na própria doideira dos vamos loucurando. Até, um dia, me trouxeram notícia. Ezequiel perdera, para sempre, a existencia. Ele se desfechara em incógnitos matos, vitima dos bandos. A mãe nem suspeitava. Perguntei desconhecia-se o paradeiro dela. Ficasse eu atribuido de lhe entregar o escuro anúncio. Esperei. Nesse fim de tardinha, porém, mamã Cacilda não compareceu em minha casa. Assustei adivinhara ela o destino do Ezequiel? Quem conhece os poderes de uma mãe em exercicio de saudade? Decidi ir ao seu lugar. Parti ainda restavam manchas do poente. Cacilda cozinhava uns míseros grãos, ementa de passarinho.- Senta, meu filho, fica servido, não custa dividir pobrezas.Fui ficando, me compondo de coragem. Como podia eu deflagrar aquele luto? Comemos. Melhor fingimos comer. Faz conta é uma refeição, meu filho. Faz conta. Modo que eu vivo, fazendo de conta.- E agora, diz porque vieste nesta minha casa?Olhei o chão, o mundo escapava pelo fundo. Ela venceu o silêncio.- Me vens ler o meu filho?Acenei que sim. Aceitei o velho papel mas demorei a começar. Eu queria acertar os meus tons, evitando o emergir de alguma tremura. Finalmente, atravessei a escrita, ao avesso da verdade. Trouxe as novas do filho, seus consecutivos heroísmos. Ele, o mais bravo, mais bondoso, mais único. Como sempre, a mãe escutou em qualificado silêncio. Às vezes, no colorir de um parágrafo, ela sorria sempre igual, esse meu filho. Eu me parabendizia, cumprida a missão do fingimento. Me despedi, quase em alívio. Foi então, em derradeiro relance, que eu vi a velha mãe lançava a carta sobre a fogueira. Ao meu virar, ela emendou o gesto. O papel demorou um instante a ser mastigado pelo fogo. Nesse brevíssimo segundo, eu anotei a lágrima pingando sobre a esteira. Ela fingiu tirar um fumo do rosto, fez conta que metia a carta sob o lenço. Me voltei a despedir, fazendo de conta que aquele adeus era igual aos todos que já lhe concedera.
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Os infelizes cálculos da felicidade (Mia Couto)
OS INFELIZES CÁLCULOS DA FELICIDADE (MIA COUTO) O homem da história é chamado Julio Novesfora. Noutras falas o mestre Novesfora. Homem bastante matemático, vivendo na quantidade exacta, morando sempre no acertado lugar. O mundo, para ele, estava posto em equação de infinito grau. Qualquer situação lhe algebrava o pensamento. Integrais, derivadas, matrizes para tudo existia a devida fórmula. A maior parte das vezes mesmo ele nem incomodava os neurónios:- É conta que se faz sem cabeça.Doseava o coração em aplicações regradas, reduzida a paixão ao seu equivalente numérico. Amores, mulheres, filhos tudo isso era hipótese nula. O sentimento, dizia ele, não tem logaritmo. Por isso, nem se justifica a sua equação. Desde menino se abstivera de afectos. Do ponto de vista da algebra, dizia, a ternura é um absurdo. Como o zero negativo. Vocês vejam, dizia ele aos alunos a erva não se enerva, mesmo sabendo-se acabada em ruminagem de boi. E a cobra morde sem ódio. É só o justo praticar da dentadura injectavel dela. Na natureza não se concebe sentimento. Assim, a vida prosseguia e Julio Novesfora era nela um aguarda-factos. Certa vez, porém, o mestre se apaixonou por uma aluna, menina de incorrecta idade, toda a gente advertia essa menina é mais que nova, não dá para si.- Faça as contas mestre.Mas o mestre já perdera o calculo. Desvalessem os razoáveis conselhos. Ainda mais grave ele perdia o matemático tino. Já nem sabia o abecedário dos números. Seu pensamento perdia as limpezas da lógica. Dizia coisas sem pés. Parecia, naquele caso, se confirmar o lema quanto mais sexo menos nexo. Agora, a razão vinha tarde de mais. O mestre já tinha traçado a hipotenusa à menina. Em folgas e folguedos, Julio Novesfora se afastava dos rigores da geometria. O oito deitado é um infinito. E, assim, o professor ataratonto, relembrava:- A paixão é o mundo a dividir por zero.Não questionassem era aquela a sua paixão. Aquilo era um amor idimensional, desses para os quais nem tanto há mar, nem tanto há guerra. Chamaram um seu tio, único familiar que parecia merecer-lhe as autoritárias confianças. O tio lhe aplicou muita sabedoria, doutrinas de por facto e roubar argumento. Mas o matemático resistia:- Se reparar, tio, é a primeira vez que estou a viver.Corolariamente, é natural que cometa erros.- Mas, sobrinho, você sempre foi de calculo. Faça agora contas à sua vida.- Essa conta tio, não se faz de cabeça. Faz-se de coração.O professor demonstrava seu axioma, a irresoluvel paixão pela desidosa menina. Tinha experimentado a fruta nessa altura que o Verão ainda está trabalhando nos açucares da polpa. E de tão regalado, arregalava os olhos. Estava com a cabeça lotada daquela arrebitada menina. O tio ainda desfilou avisos não vislumbrava ele o perigo de um desfecho desilusionista? Não sabia ele que toda a mulher saborosa é dissaborosa? Que o amor é falso como um tecto. Cautela, sobrinho, olho por olho, dente prudente. Novesfora, porém, se renitentava, inóxidável. E o tio foi dali para a sua vida. Os namoros prosseguiram. O mestre levava a menina para a margem do mar onde os coqueiros se vergavam, rumorosos, dando um fingimento de frescura.- Para bem amar não há como ao pé do mar, ditava ele.A menina só respondia coisas simples, singelices. Que ela gostava do Verão. - Do Inverno gosto é para chorar. As lágrimas, no frio, me saem grossas, cheiinhas de água.A menina falava e o mestre Novesfora ia passeando as mãos pelo corpo dela, mais aplicado que cego lendo braille.- Vai falando, não pare pedia ele enquanto divertia os dedos pelas secretas humidades da menina. Gostava dessa fingida distracção dela, seus actos lhe pareciam menos pecaminosos. Os transeuntes passavam, deitando culpas no velho professor. Aquilo é idade para nenhumas-vergonhas? Outros faziam graça:- Sexagenário ou sexogenário?O mestre se desimportava. Recolhia a lição do embondeiro que é grande mas não dá sombra nenhuma. Vontade de festejar deve eclodir antes de acabar o baile. Tanto tempo decorrera em sua vida e tão pouco tempo tivera para viver. Tudo estando ao alcance da felicidade porque motivo se usufruem tão poucas alegrias? Mas o sapo não sonha com charco se alaga nele. E agora que ele tinha a mão na moça é que iria parar? Uma noite, estando ela em seu leito, estranhos receios invadiram o professor essa menina vai fugir, desaparecida como o arco-íris nas traeiras da chuva. Afinal, os outros bem tinham razão chega sempre o momento em que o amendoim se separa da casca. Novesfora nem chegou de entrar no sono, tal lhe doeram as suspeitas do desfecho. Passaram-se os dias. Até que, certa vez, sob a sombra de um coqueiro, se escutaram os acordes de um lamentochão. O professor carpia as já previsiveis mágoas? Foram a ver, munidos de consolos. Encontraram não o professor mas a menina derramada em pranto, mais triste que cego sentado em miradouro. Se aproximaram, lhe tocaram o ombro. O que passara, então? Onde estava o mestre?- Ele foi, partiu com outra.Resposta espantável afinal, o professor é que se fora, no embora, sem remédio. E partira como? Se ainda ontem ele aplicava a ventosa naquele lugar? A ditosa namorada respondeu que ele se fora com outra, extranumerária. E que esta seria ainda muito mais nova, estreável como uma manhã de Domingo. Provado o doce do fruto do verde se quer é o sabor da flor. Enquanto a lagrimosa encharcava réstias de palavras os presentes se foram afastando. Se descuidavam do caso, deixando a menina sob a sombra do coqueiro, solitária e sózinha, no cenário de sua imprevista tristeza. Era Inverno, estação preferida por suas lágrimas.
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Lixo, lixado (Mia Couto)
LIXO, LIXADO (MIA COUTO)
Orolando Mapanga não tinha onde cair vivo? É a impura verdade. Dele se fica sabendo que não existe pobreza de espírito. O que há é miséria sem espírito. O caso sendo universátil merece as tantas linhas. Pois o que importa não é o acontecimento mas a gente que há no não.acontecer da vida. Lugar de viver de Orolando era na lixeira, lá no interior, primeira transversal, à direita. Com boas vistas para o mar, mesmo na vertente de um monte de desperdicio. Apanhando boa brisa, mau grado os péssimos odores. Ali ele despachava os seus afazeres. Ao fim da tarde, saía a procurar restos de comida, gordurazinhas, singelas putrefacções. Raspava o fundo das latas, auscultava o ventre dos sacos. Ao ler seu constante sorriso, dir-se-ia que a felicidade é coisa encontrável mesmo na imundície. Orolando bem que defendia as vantagens do lugar:- Aqui não chega nenhum bandido.Lugar seguro de viver, isso ele garantia. Sossegado, também. Só no fim da madrugada o silêncio se sujava com os camiões trazendo o lixo. Mas, para ele, aquele barulho era o anunciar da mantimentação. Nunca se aproximou dos camiões. Ele não queria mostrar a sua vivência a ninguém, chamar a inveja dos outros. Essa gente quer coisas completas, cheias. A mim me basta o bocadinho da metade era o pensar dele enquanto empurrava um velho carrinho de mão pelas ruelas da lixeira. Outra vantagem era a guerra morar longe. É verdade que ali sempre se escutavam disparos. Mas era coisa da distancia, lá no lugar dos citadinos. Certa noite, ao buscar adomercimento, Mapanga escutou um ronco.- É um porco, isso.Sabia, o campo lhe ensinara. Voz de bicho era sua sapiência. Pelo cantar de uma só galinha ela adivinhava o tamanho de toda a criação. Pelo balido do cabrito ele sabia a cor do bicho. Desta vez, porém, ao invés da doce lembrança dos campos, seus olhos se nevoaram de ódio. Afinal, havia outro ser disputando as sobras. E ali mesmo jurou morte ao intruso. Desde então se dedicou a perseguir o suíno. Saía manhã cedinho à procura dele. A lixeira nunca lhe parecera tão grande. Ele conhecia os recantos, os fedores, os charcos. Porém, não havia maneira. O bicho esburacava nos monturos, sacana, não ficava nem rasto do cheiro. Vantagem do porco é ter um focinho polivalente, dá para escavar também. Até que, numa madrugada, Orolando desapertou com um bafo que se despejava em seu rosto. Berrou, borrou-se.- Maiuê, as hienas me comem o nariz!Palpou o escuro, deu de mãos numa pele lisa, agarrou com força. Foi como se espremesse um saco cheio de gritos. Era o porco em aflição. Segurou a presa com força, que a bicheza é inteligente há muito mais tempo que os homens. Amarrou-lhe as pernas e ficou-se longo tempo a contemplar a berraria do prisioneiro. Primeiro, lhe chegou um sentimento que há muito tempo não experimentava. Ali estava um vencido implorando as clemencias. Gozou aquele poder, em desconhecimento fundo de sua alma. Afinal, agora ele era proprietário, não de restos mas de uma vida inteira e recheada. Enquanto matutinava este sentimento, de quando em quando, despachava uns pontapés no bicho. Nesse dia, nem saiu a procurar abastecimento. Só ficou ali, olhando o novo habitante, escolhendo o destino a lhe aplicar. Indecidia-se morte haveria de ser. Mas o porco merecia ser comido? Deixou o despacho para mais tarde aquela era sentença que não viria do pensamento. A noite chegou, cansada do seu trabalho na outra face do mundo. Orolando Mapanga anotou o frio, juntou velhos jornais à sua volta. Mas o cacimbo lhe trouxe arrepios, esgotados que estavam seus agasalhos. Então ele se chegou ao porco, abraçou-lhe como só merece uma mulher. E, aos poucos, se foi contagiando com o quentinho de uma outra vida. No seguinte dia, ele se polemicava mais vale a fome ou o calor de uma companhia? Pelo sim pelo talvez, decidiu adiar a sentença do bicho. E quando, entre os lixos, descobriu uma velha corda, lhe deu uso de trela e levou o suíno a passear. Mesma coisa os brancos fazem com os cães. O bicho de estimação mereceu até nome téksmanta. [Texmanta nome de uma fabrica textil em Moçambique] Agora, quem passar pela lixeira pode ver um porco, com dignidade canina, encaminhando seu dono pelos detritos, oferecendo seu faro para a escolha da migalhas da sobrevivência. Dizem o Mapanga se vai esquecendo da lingua humana, soletrando só a fonética do bicho. Afinal, vivendo na porcaria ele combina melhor com o idioma dos porcos é o parecer dos trabalhadores do lixo quando se despedem dos domínios de Orolando Mapanga.
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A velha e a aranha (Mia Couto)
A VELHA E A ARANHA (MIA COUTO)
Deu-se em época onde o tempo nunca chegou. Está-se escrevendo, ainda por mostrar a redigida verdade. O tudo que foi, será que aconteceu? Começo na velha, sua enrugada caligrafia. Oculta de face, ela entretinha seus silêncios numa casinha tão pequena, tão mínima que se ouviam as paredes roçarem, umas de encontro às outras. O antigamente ali se arrumava. A poeira, madrugadora, competia com o cacimbo. A mulher só morava em seu assento, sem desperdiçar nem um gesto. Em ocasiões poucas, ela sacudia as moscas que lhe cobiçavam as feridas das pernas. Sentada, imovente, a mulher presenciava-se sonhar. Naquela inteira solidão, ela via seu filho regressando. Ele se dera às tropas, serviço de tiros.- Esta noite chega Antoninho. Vem todo de farda, sacudu.Para receber António ela aprontava o vestido mais a jeito de ser roupa. Azul-azulinho. O vestido saía da caixa para compor sua fantasia. Depois, em triste suspiro, a roupa da ilusão voltava aos guardos.- Depressa-te Antoninho, a minha vida está-te à espera.Mas era mais as esperas do que as horas. E o cansaço era sua única caricia. Ela adormecia-se, um leve sorriso meninando-lhe o rosto. E assim por nenhum diante. Desconhece-se a data, talvez nem tenha havido, mas num dos seus olhares demorados, a velha encontrou um brilho cintilando num canto do tecto. Era uma teia de aranha. Ali onde apenas o escuro fazia esquina, havia agora a alma de uma luz, flor em fundo de cinza. A velha levantou-se para mais olhar o achado. Não era a curiosidade que lhe puxava o movimento. Assustava-lhe a sua transparência demasiada. E, de logo, lhe surgiu a pergunta que luz tecera aquele bordado? Não podia ser obra de bicho. Não. Aquilo era trabalho para ser feito por espirito, criaturamente. A teia podia só ser um sinal, uma prova de promessa. Decidiu-se então a velha surpreender o autor da maravilha. A partir dessa tarde, seus olhos emboscaram o tempo, no degrau de cada minuto. Esquecida do sono e do sustento, não houve nunca sentinela mais atenta. Até que, certa vez, , se escutou um rumor quase arrependido, desses feitos para ser ouvido apenas pelos bichos caçadores. Por uma breve fresta se injanelava uma aranha. Era de um verde pequenino, quase singelo. Com vagaroso gesto a velha foi tirando o vestido do caixote. Usava os mais lentos gestos, fosse para o bicho não levar susto.- Qualquer uma coisa vai acontecer!Era suspeita que ela bem sabia. Confirmou-se quando as duas, mulher e aranha, se olharam de frente. E se entregaram em fundo entendimento, trocando muda conversa de mães. A velha sentiu o bicho pedia-lhe que ficasse quieta, tão quieta que talvez qualquer coisa pudesse acontecer. Então ela se fez exacta, intranseunte. As moscas, no sobrevoo das feridas, estranharam nem serem sacudidas. Foi quando passos de bota lhe entraram na escuta. Antoninho! A velha esmerava-se na sua imobilidade para que o regresso se completasse, fosse o avesso de um nascer. E lhe vieram as dores, iguais, as mesmas com que ele se havia arrancado da sua carne. Encontraram a velha em estado de retrato, ao dispor da poeira. Em todo o seu redor, envolvente, uma espessa teia. Era como um cacimbo, a memória de uma fumaragem. E a seu lado, sem que ninguém vislumbrasse entendimento, estava um par de botas negras, lustradas, sem gota de poeira.
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O Menino Que Fazia Versos (Mia couto)
O MENINO QUE FAZIA VERSOS (MIA COUTO) - Ele escreve versos! Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha. - Há antecedentes na família ? - Desculpe, doutor ? O médico destrocou-se por tintins, Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava-a bem, nunca lhe batera mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias: - Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol. Ela hoje até se comove com a comparação. Sim, perfume de igual qualidade qual outra mulher pode sequer sonhar ? Pobres que fossem os dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, período de rodagem. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor. Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e a escola do miúdo. Mas eis que começam a aparecer, pelos recantos da casa, papeis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito. - São meus versos, sim. O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual ? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto ? Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado. - O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica. Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões, e sobretudo lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era por cobro àquela vergonha familiar. Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino: - Dói-te alguma coisa ? - Dói-me a vida, doutor. O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: está a ver, doutor ? Está ver ? O médico voltou a erguer o olhos e a enfrentar o miúdo: - E o que fazes quando te assaltam essas dores ? - O que melhor sei fazer, excelência, é sonhar. Serafina voltou à carga e sapateou a nuca do filho. Não lembrava o que pai lhe dissera sobre os sonhos ? Que fosse sonhar longe ! Mas o filho reagiu: longe, porquê ? Perto, o sonho aleijaria alguém ? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe. O médico estranhou o riso. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, já inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu: - Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clínica psiquiátrica. A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente. Na semana seguinte foram os últimos a serem atendidos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos ? O menino não entendeu. - Não continuas a escrever ? - Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho esse pedaço de vida - disse, apontando um novo caderninho - quase a meio. O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente. - Não temos dinheiro, fungou a mãe entre soluços. - Não importa, respondeu o doutor. Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica que o menino seria sujeito a devido tratamento. Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto de internamento do menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração.
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27 de novembro de 2008
Oh! Liberdade! (Xanana Gusmão)
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