20 de julho de 2021

“D. Manuel Vieira Pinto Arcebispo de Nampula – Cristianismo: Política e Mística” (Guilherme d’Oliveira Martins)

 



O livro de Anselmo Borges (Edições Asa, 1992) é uma obra que espelha a ação de uma das maiores figuras da Igreja portuguesa contemporânea, com uma extraordinária coerência entre a palavra, o espírito e a ação.

CUIDAR DE UM MUNDO MELHOR

Muitos de nós começámos a ouvir falar do Padre Vieira Pinto a propósito dos encontros do Movimento por um Mundo Melhor (MMM) e da sua capacidade de mobilizar os cristãos portugueses, desejosos de verem horizontes abertos. Era o espírito do Concílio que estava a germinar e o carisma do Padre Manuel era capaz de tornar os sinais dos tempos marcas efetivas de mudança… Nascido em Amarante em 1923 foi ordenado presbítero no Porto em 1949, tendo sido assistente da Ação Católica, diretor espiritual do Seminário Diocesano no Porto, além de ter desempenhado funções nas paróquias de Campanhã e Cedofeita. Envolvido no MMM, visita Roma em 1960 e na sequência do Concílio Vaticano II, participa com o Padre Vítor Feytor Pinto num conjunto de ações no sentido da renovação da Igreja. A renovação da vida cristã, a leitura dos sinais dos tempos, o lançamento de estratégias que favorecessem a mudança e a conversão, bem como a promoção da justiça social, a paz e a reconciliação entre os povos e nações constituíram prioridades defendidas pelo Padre Riccardo Lombardi, S.J., fundador em 1952 do Movimento. A teologia do Concílio constituiu um corolário lógico desse espírito e um exigente desafio em que o então jovem sacerdote se envolveu com muito entusiasmo e com uma especial preocupação teológica e pastoral. E assim impulsionou em Portugal esse movimento e essa motivação. E muitos recordam a sua grande capacidade mobilizadora no sentido de uma Evangelização renovada e aprofundada, na linha da “Gaudium et Spes” e da “Lumen Gentium” – em iniciativas que ficaram na memória de todos no Pavilhão dos Desportos em Lisboa e no Palácio de Cristal no Porto. O Povo de Deus não era uma abstração, era um apelo concreto, para tornar o mundo melhor, com mais atenção e cuidado, mais justiça e paz. Em abril de 1967, o Papa Paulo VI nomeou-o Bispo da nova Diocese de Nampula, tendo recebido a ordenação episcopal no dia 29 de junho desse ano, festividade de S. Pedro.

UMA NOVA MISSÃO

Ao chegar à sua nova diocese faz questão de assumir uma atitude aberta, de acordo com o espírito conciliar. E assim, para escândalo de alguns, logo no aeroporto, beija uma criança africana, antes das autoridades civis e militares, como sinal de paz e da universal dignidade humana. Mas as dificuldades começam logo. Pouco depois de chegar, corresponde a um pedido dos comandos militares e do Movimento Nacional Feminino para presidir a uma celebração em memória dos militares portugueses mortos em combate. Aceita, afirmando, porém, que também devia lembrar todos os mortos, uma vez que a Igreja não tem inimigos. “Esta minha observação causou uma certa surpresa (disse D. Manuel). E a surpresa tornou-se escândalo quando, na homília, afirmei, entre outras coisas, que a guerra era um mal e uma fonte de males e que a paz jamais viria das armas”. Racismo e guerra, bem como a denúncia da violência, iriam constituir pontos marcantes da missão do Bispo. Para D. Manuel Vieira Pinto, “a discriminação racial, a falta de respeito pelo homem negro, a ausência total de convivência entre brancos e negros, a falta de diálogo do bispo com os seus cristãos, em maioria negros, eram pecados que saltavam imediatamente à vista. Mas as tensões políticas eram claras, e levaram a um ponto de rutura quando foi publicada a carta pastoral “Repensar a Guerra”, em janeiro de 1974, onde se dizia que o conflito em Moçambique era uma guerra não desejada. E então perguntava pelas causas, falando de mentiras e violência e do legítimo direito à autodeterminação. A guerra surgira da “tomada de consciência dos povos ontem dominados por sistemas coloniais, hoje em busca progressiva de uma justa e efetiva emancipação”. Importaria assim dar mais atenção à ação política do que à força das armas, pelo “reconhecimento da dignidade do homem e do povo de Moçambique e das iniciativas que (dessem) conteúdo e expressão real aos direitos inerentes a uma justa e progressiva autodeterminação”. Cerca de um mês depois, o Bispo e os Missionários Combonianos, que trabalhavam na diocese, publicaram uma carta, sob o título “O Imperativo de Consciência”, onde se defendia a autonomização e das estruturas missionárias. Em consequência, a 10 de abril, quinze dias apenas antes da revolução democrática em Portugal, D. Manuel é expulso da diocese e quatro dias depois, o governo força-o a sair de Moçambique e a regressar a Lisboa. No entanto, no mesmo mês de abril inicia-se o processo de descolonização e D. Manuel regressa a Moçambique em janeiro de 1975.

UM NOVO TEMPO… 

Mas o Bispo não baixa os braços no seu combate pastoral pela liberdade, pela justiça e pela emancipação dos moçambicanos. O desenvolvimento é, afinal, o outro nome da paz, que disse S. Paulo VI. Iniciava-se um novo capítulo no seu múnus. Samora Machel respeita o Bispo, até pelo papel desempenhado na luta contra o racismo e o colonialismo e na defesa da autodeterminação. Mas, quando D. Manuel se encontra com o Presidente, do país recém-chegado à independência, levanta questões polémicas, como a dos campos de reeducação criados pela FRELIMO, onde não se estavam a respeitar os direitos elementares dos cidadãos. Em encontros e cartas, D. Manuel suscita questões ligadas a novos atentados à dignidade humana, à falta de liberdade individual e de liberdade religiosa, às prisões arbitrárias, aos erros e violência do sistema. E a partir de 1980, as conversas do Bispo com Samora Machel incidem essencialmente sobre o tema da guerra civil e a ameaça ditatorial do regime. Em janeiro de 1984, dez anos depois da sua expulsão, D. Manuel assina uma nova carta pastoral intitulada “A Coragem da Paz”, onde pede ao Governo e à Renamo que “se empenhem com coragem e decisão, com espírito de serviço e bem integral do povo e da nação, na construção da paz, hoje e aqui”. E já no final da vida, era “o próprio Presidente Machel que lhe falava da violência e da desumanidade do sistema”. Em maio de 1984, o prelado solicita, em nome do povo, ao seu Presidente o gesto de negociações com a Renamo. “Não, não me peça uma coisa dessas”. E o Bispo insistiu. “O Presidente olhou-me, deixando transparecer a luta que lhe ia no espírito e perguntou-me: ‘com quem vou falar?’. Respondi: ‘Eu não sei, presidente. Não sou político nem tenho meios políticos que me permitam saber quem são os responsáveis’”. Então ajudou ao caminho da paz e da reconciliação e discretamente apoiou as negociações que levariam ao Acordo Geral de Paz de 1992. Houve um outro dia em que Samora Machel fez a pergunta que tem sido tão propalada: “Por que é que você, que é bispo, quando vem falar comigo nunca me fala de Deus e da religião, mas do povo, da defesa dos seus direitos e da sua dignidade?” E o homem da Igreja respondeu: “Porque um deus que precisasse da minha defesa seria um deus que não é Deus. Deus não precisa que o defendam. O homem sim”. Em 1998, D. Manuel Vieira Pinto pediu ao Papa a resignação por ter chegado ao limite de idade, mantendo-se ainda à frente dos destinos da arquidiocese até novembro de 1980, sucedendo-lhe D. Tomé Makhweliha. Mário Soares tinha-o condecorado com a Ordem da Liberdade… D. Manuel deixou-nos há poucos dias. O seu exemplo perdurará para sempre! 


Fonte: Centro Nacional de Cultura, 4 Maio 2020