20 de julho de 2021

Moçambique: A Carta de D. Manuel Vieira Pinto que Samora Machel não leu

 


Samora Machel e Manuel Vieira Pinto fazem parte da História de Moçambique. O primeiro foi o líder incontestável líder que conduziu o país à independência tornando-se no primeiro presidente durante 11 anos. O segundo foi o único bispo português que se insurgiu pública e abertamente contra a dominação colonial, pronunciando-se, em coerência, pela autodeterminação do povo moçambicano o que lhe custou a expulsão, dias antes do 25 de Abril. Nos 11 anos de independência, as relações entre o Estado e a Igreja estiveram longe de ser as melhores. Apesar disso, Vieira Pinto e Samora Machel nutriam uma sincera admiração e respeito um pelo outro. Eles procuravam manter encontros pessoais. Em 25 de Setembro de 1986, Manuel Vieira Pinto escreveu a carta que não chegaria ao destinatário, em virtude deste morrer (19 de Outubro) antes de a receber, num encontro a dois. Era um inventário frontal das inúmeras situações provocadas pela guerra provocadas pelos dois lados e do apontar dos caminhos julgados mais eficazes para a obtenção da paz.

Eis o conteúdo da carta:

O Povo não sabe onde pôr o coração.

A confiança que Vossa Excelência nos merece, como Presidente da Frelimo e da República Popular de Moçambique, leva-nos a falar, mais uma vez, das violências que não cessam de humilhar e destruir o nosso povo. A guerra continua e com ela a violência, a humilhação, os abusos, os excessos, as atrocidades e os crimes. Permita-nos, Senhor Presidente, que falemos, concretamente, das violências que, neste momento, mais humilham e esmagam o nosso Povo, mais destroem o país e o encobre de vergonha e de sangue: os massacres, as execuções sumárias, os assassinatos, e as torturas.

Massacres:

As informações de que dispomos dizem-nos que os massacres, cometidos por uns e por outros, não são um boato ou uma pura invenção, mas, sim, uma triste e dolorosa realidade. Sabemos que ao longo destes anos de guerra, os massacres de pessoas e de populações inocentes e indefesas foram muitos, contando-se por milhares, o número de vítimas: homens, mulheres, velhos e crianças, jovens e adolescentes, mães lactantes e mães grávidas. O povo pergunta pelas razões destes crimes, destes actos executados, e pergunta igualmente por quem os comete ou manda cometer. Julgamos que não basta responder com a desculpa de que a guerra é guerra ou de que na guerra não há lei, nem há moral.

O povo entende que na guerra há uma inelutável irracionalidade congénita, o que necessariamente dá origem a abusos e a violências arbitrárias. O povo entende que a irresponsabilidade, a indisciplina, o descontrolo, o espírito de represália e de vingança podem tornar, num dado momento, os homens armados em homens ferozes, homens sem lei e sem um mínimo de respeito pela vida, pela dignidade da pessoa humana e pela segurança a que as populações têm inegável direito, mas, bastarão estas razões para explicar os numerosos massacres, cometidos contra pessoas inocentes, populações indefesas e contra o próprio Povo? Não haverá outras causas, além da lógica diabólica da guerra e da irresponsabilidade de quem os comete, permite ou manda cometer?

Perguntas fundamentais:

O povo pergunta se na origem destes actos brutais, não estará uma ideologia de violência e de desprezo pela vida e direito da pessoa humana, não estará uma estratégia de liquidação e de extermínio, não estará uma política de posições obstinadas e irredutíveis. O povo pergunta se na base destas atrocidades não estará o princípio imoral de que os fins justificam os meios, de que na guerra não há lei e de que a necessidade extrema tudo desculpa, se na origem destes abusos não estará a desagregação, a corrupção dos valores mais elementares da ética, da moral, do direito e da própria cultura. O povo pergunta se os massacres e outros actos abomináveis são apenas um atentado contra a vida das pessoas e das populações ou, igualmente, um atentado contra a vida e a alma da própria Nação.

Crueldades:

Estas perguntas tornam-se mais insistentes quando tais atrocidades são cometidas com requintes de crueldade e de cinismo. Muitos, com efeito, têm sido os massacres perpetrados, com um desprezo absoluto pela dignidade e direitos fundamentais da pessoa humana e também com requintes de terrorismo e de extrema crueldade. Basta pensar nos massacres de pessoas frágeis e inteiramente indefesas, como são as crianças, os velhos, as mães lactentes ou grávidas, nos massacres de populações, convocadas e reunidas ao engano e em seguida encurraladas pelas armas e barbaramente destroçadas e assassinadas. Basta pensar nas centenas de pessoas retalhadas ou liquidadas a golpe de catana, de baioneta ou de punhal, torturadas ou degoladas, ou então queimadas vivas.

Estas e outras vergonhosas crueldades põem, de facto, em causa a civilização e a cultura e levam-nos, necessariamente, a concluir que tais crimes não seriam possíveis se, a par da irracionalidade e brutalidade da guerra, não houvesse um processo de degradação e de corrupção dos valores éticos, morais e espirituais do homem e do Povo Moçambicano. O Povo preocupa-se e, diante destas vergonhosas e infames manifestações de violência, não deixa de perguntar se, a par das armas que massacram as pessoas, não há outras armas que tentam liquidar e destruir a alma e a vida do País.

Execuções:

As execuções sumárias constituem uma outra violência degradante e criminosa. Estas execuções sumárias, tenham a justificação que tiverem, são sempre um crime, um atentado à legalidade, uma injúria grave à dignidade e aos direitos de todo o ser humano, bem como ao direito de todo o homem a que, uma vez acusado, a sua causa seja examinada, com equidade e publicamente, por um Tribunal Independente e Imparcial. Muitas foram as execuções sumárias, ocorridas nestes anos, por sentença de tribunais improvisadas e presididos pelas Forças de Defesa e Segurança. Alguns destes julgamentos e execuções, mercê da crueldade que os caracterizou e acompanhou, transformaram-se num horroroso espectáculo de sangue. Seria longa e chocante a enumeração destes lamentáveis espectáculos de sangue.

Limitamo-nos a lembrar, como exemplo, as execuções à baioneta, à catanada e à facada, as execuções com torturas e humilhações dos acusados e condenados, as execuções por espancamento, por estrangulamento ou por esmagamento do crânio, as execuções por esquartejamento, abrindo, por vezes, a barriga aos executados, arrancando-lhes as vísceras e expondo-as ao público, as execuções com a participação das populações, manipuladas para o efeito, e, por vezes, obrigadas a injuriar e a esbofetear os cadáveres, deixados, por fim, insepultos à mercê dos abutres e das feras. Estas horríveis e vergonhosas execuções denunciam, tal como a violência dos massacres, a lógica impiedosa da liquidação do inimigo, a todo o custo, a lógica da represália e de vingança, não olhando a meios nem a imperativos de ordem moral ou mesmo legal.

Sentimo-nos, por isso, obrigados a lembrar às Forças em presença que tais execuções corrompem a cultura e a civilização do País, põem em causa a personalidade e a alma da Nação, abrem caminhos ao crime e ao abuso contra a vida e contra a dignidade, seja de quem for.

Assassinatos:

Os assassinatos, a partir sobretudo das áreas afectadas ou simplesmente suspeitas, aumentam sempre mais, tornando-se, por isso, na consciência de quem os pratica ou manda praticar, num acontecimento sem qualquer responsabilidade moral. Matar não é nada: assim se exprime quem comete tais crimes. Parece, com efeito, que a vida das pessoas não é mais um valor que mereça respeito, não é mais um direito que mereça defesa. O assassinato torna-se vulgar. A vida, o valor, o sentido da vida estão postas em causa. As pessoas sentem-se inseguras e, mais ainda, quando vêem pela frente homens armados.

Como diz o Povo, chorando amargamente esta humilhação «os homens da Renamo desprezam e matam», «os homens da Frelimo desprezam e matam», uns e outros não têm pejo em assassinar homens ou mulheres, velhos ou crianças. Uns e outros não sabem mais o que é o respeito pela vida humana e pela intangível dignidade de todo o ser humano. Por isso, cometem assassinatos a frio, usando muitas vezes métodos cruéis. Há assassinatos a golpe de baioneta, de faca ou de catana, a golpe de martelos, de machados e de chicote. Há assassinatos por decapitação, por espancamento, por mutilação, por esquartejamento, por sevícias ou torturas até à morte. Há assassinatos por fogo ou por outros métodos cruéis e desumanos, tais como enterrar as vítimas ainda vivas, obrigando-as previamente a abrir a própria cova. Mas todos sabemos que os assassinatos são um crime de delito comum e constituem, à face da história e da consciência do Povo, uma pesada hipoteca de sangue. Estes crimes, tal como o crime das execuções sumárias e dos massacres, abrem caminho à violência generalizada, à degradação dos valores que defendem a vida e a dignidade do próprio Povo.

Maus-tratos e castigos desumanos:

O clima de violência engendra e autoriza mais violência. Os maus-tratos, os castigos humilhantes, são actos de violência degradante e, como tais não deveriam ter lugar em Moçambique. A Constituição do País, a própria cultura do nosso País, não deveriam dar lugar a práticas desumanas e primitivas, como são os maus-tratos e os castigos humilhantes. Infelizmente, estas práticas, estão presentes no dia a dia das populações. Há maus-tratos, há medidas político-militares e administrativas que magoam e humilham o Povo. Os castigos desumanos e os maus-tratos são crimes à face da ética mais elementar. São graves atentados contra o melhor da consciência universal dos Povos, tão clara e corajosamente manifestada na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção Contra a Tortura e Contra Tratamentos e Castigos cruéis, desumanos e degradantes, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de Novembro de 1948.

Hoje, não falta quem, por sua conta, mande aplicar o chicote ou determine o castigo que muito bem entender. O chamboco tornou-se frequente e irresponsável, e igualmente o castigo pela aplicação da pena capital. Qualquer comandante a pode decretar, qualquer cidadão pode ser executado, não contando para nada a Legalidade ou as Instâncias competentes. Há mesmo quem diga que, em tempo de guerra, não há Tribunais. Há a lei da guerra, a lei da repressão e da liquidação de possíveis ou reais inimigos.

Torturas:

As torturas são actos imorais e criminosos. São graves atentados contra os Direitos do Homem, contra a honra e a dignidade da Nação. Nada, absolutamente nada, justifica a tortura. Uma causa que pretendesse defender ou consolidar o deu direito e a sua justiça, um Regime que tentasse assegurar a sua continuidade ou estabilidade, usando tais medidas, estaria a provocar a sua própria degradação e ruína. A tortura, os maus-tratos, o desprezo sistemático pelo homem, não consolidam o poder constituído, antes o corrompe e o põe em grave perigo. Tais abusos e crimes também não concorrem para a unidade, a reconciliação e a paz nacional, antes as destroem e dificultam.


Fonte: (O Jornal. 16-09-1986), Transcrição de Eusébio A. P. Gwembe