Devemos ter por certo que, já do tombadilho das caravelas de Vasco da Gama, se avistara, pela primeira vez, em 1498, senão toda a baía, sequer o perfil alteroso da Inhaca, quando a frota gloriosa, rumando ao Norte, deixara o paralelo da Terra do Natal, para ir reconhecendo a costa, da qual, no Roteiro da grande viagem, se vão sucessivamente mencionado: a embocadura do rio do Cobre, ou seja a barra do Limpopo em Inhambane, a foz do rio dos Bons Sinais, em Quelimane, onde o Grande Capitão erigiu o padrão de S. Rafael e outros pontos do litoral até à ilha de Moçambique ao abrigo da qual a frota fundeou no dia 1 de Março de 1498.
Também Pedro Álvares Cabral em sua viagem a Moçambique no ano de 1500 e novamente o Gama em 1502, na sua segunda viagem à Índia, terão bem provavelmente avistado o grandioso estuário formado pelos rios que desaguam nessa formosa e vasta Baía da Paz, como lhe chamaram os primeiros navegadores. Alguns antigos cronistas e alguns outros mais recentes, referem-nos a descoberta, em 1544, da Baía de Lourenço Marques, pelo navegador e traficante português Lourenço Marques, tendo sido de tal descobrimento dada notícia a D. João III, por intermédio de D. João de Castro, que então singrava no canal de Moçambique, de passagem para a Índia de que ia assumir o governo.
Dois anos após ter sido notícia do reconhecimento da baía feito por Lourenço Marques, mandou D. João III que se fizesse reconhecimento dos rios que nela desaguavam e que, na margem direita do rio do Espírito Santo, se assentassem feitoria e fortaleza. A tais instruções corresponderam Lourenço Marques e António Caldeira que, porém, não se limitaram a cumprir a real ordem no respeitante ao rio do Espírito Santo, pois outros estabelecimentos fundaram também nas ilhas dos Elefantes e da Inhaca, simultaneamente comerciais e militares, com o consentimento do régulo da Inhaca.
Deve pois, remontar a 1546 o estabelecimento do presídio de Lourenço Marques que só em 1876 foi elevado à categoria de vila e que, em 10 de Novembro de 1877, teve, enfim, foros de cidade.
O comércio em que se objectivava a actividade da feitoria, era o do resgate do marfim que os feitores de El-Rei, subindo o curso do Espírito Santo, iam resgatar aos indígenas e que era carregado nas naus que, vindas de Moçambique, para tal frete iam anualmente aportando àquela grandiosa Baía da Paz, depois chamada Baía do Espírito Santo ou Baía da Lagoa e que hoje todos conhecemos sob a denominação de Baía de Lourenço Marques.
Desde muito cedo, a valia político-económica de Lourenço Marques acordara, em peitos estrangeiros, incendida cobiça, ao mesmo tempo que, também no espírito belicoso das tribos da região, levedava, quase incessantemente, o activo fermento de sucessivas rebeliões contra a nossa autoridade.
Se pouco ou nada se conhece das relações havidas entre os primitivos feitores, Lourenço Marques e António Caldeira e os indígenas que, em época tão anterior à grande invasão da África do Sul pelos belicosos zúlus, provável é que ainda fossem de índole pacífica e se, portanto, na segunda metade do século XVI, tranquila, até certo ponto, pode haver sido a existência humana em terras da baía da Lagoa, já, porém, as coisas estavam bem mudadas um século depois, no último quartel do século XVII, em que o território da África Oriental Portuguesa e, mormente, a baía da Lagoa, começaram a ser frequente alvo de investidas estrangeiras. Romperam o assalto os holandeses que, em Outubro de 1688, ali mandaram uma galera com instruções para que se sondasse a baía e para que dela se tomasse posse, para tanto peitando, se fosse mister, o comandante do presídio. Grassou a intriga, luziam ofertas, imperaram ameaças, mas João Marques, comandante do presídio e bom português, rejeitou a peita e sacudiu a afronta.
Trinta e três anos mais tarde, em 3 de Abril de 1721, uma expedição naval holandesa, composta de duas urcas sob o comando de Van Taak, entrou na baía da Lagoa e, não tendo os portugueses meios locais para se lhe opor, fundou uma feitoria na margem direita do rio Espírito Santo, em frente da feitoria portuguesa mas, tempos depois, mercê do impaludismo que dizimava os empregados e, também, em virtude dos ataques que os nativos fizeram à feitoria, foi esta abandonada pelos holandeses, e logo em seguida arrasada pelos indígenas. Depois, ainda os holandeses construíram, ali, outra feitoria fortificada que também resolveram abandonar por alturas de 1735, quando a Holanda estava empenhada numa guerra com a Inglaterra.
Como a feitoria portuguesa de Lourenço Marques muito houvesse decaído, o governador-geral Francisco de Melo e Castro mandou em 1752 que se restaurassem a fortaleza e a feitoria.
Passa-se mais um quarto de século e, pelo ano de 1777, o oficial inglês William Bolts, mercenário ao serviço da Áustria numa companhia de comércio com a Ásia, surge na baía de Lourenço Marques a bordo da nau “Joseph und Teresa”, permanece ali uns bons quatro meses e só zarpa com rumo à Índia, depois de ter deixado em terra alguma gente e alguns canhões. Contra esta escandalosa usurpação dos direitos portugueses, mandou logo para o reino, o governador da Índia, um caloroso protesto. O governo ordenou que, da Índia, imediatamente se fizesse largar para Lourenço Marques uma expedição militar destinada a expulsar os estrangeiros intrusos. Esta expedição, porém, por via de dificuldades supervenientes, só zarpou de Goa em 19 de Janeiro de 1781 e só aportou a Lourenço Marques em 30 de Março desse ano. Logo no dia seguinte operou-se o desembarque da força que imediatamente investiu e arrasou o estabelecimento austríaco, tendo ali sido tomada uma bateria de doze peças de artilharia e tendo, em sido, sido apresadas no porto, duas palas austríacas ainda li fundeadas e que, mais tarde, sob o comando português, quando a monção o propiciou, foram mandadas velejar para Goa.
Em 1796, foi o presídio invadido, saqueado e logo abandonado pelos franceses.
O presídio foi novamente reconstruído e guarnecido em 1799, sendo progressivamente aumentado o seu poder defensivo. Já em 1815, a sua guarnição pôde escorraçar, a tiros de peça e intensa fusilaria, um navio estrangeiro que tentava entrar no porto.
Em 27 de Setembro de 1822, desembarca em Lourenço Marques, de bordo de um navio de guerra inglês, o oficial de marinha William Fitz Owen que, desrespeitando a nossa soberania, negociou concessões territoriais com os régulos súbditos de Portugal. Isso originou mais tarde, longo e trabalhoso pleito entre os dois países.
No entanto, a posse de Lourenço Marques, não nos foi só disputada directamente pelos holandeses, austríacos, franceses e ingleses, mas também os indígenas, que sponte sua, quer incitados por cavilosos conselhos de outrem recebidos, multiplicaram os seus ataques contra a nossa ocupação daquela pérola do leste africano.
Em 22 de Outubro de 1833, Manicusse, avô de Gungunhana e grande cabo de guerra desse Átila africano que foi Tchaka, feroz chefe zúlu, põe cerco à fortaleza de Lourenço Marques e incendeia o presídio mas, seis dias depois, é obrigado a retirar, levantando o cerco à fortaleza que não conseguira tomar.
Em 26 de Julho de 1834, o presídio é outra vez atacado pelos vátuas, em grande número, que foram batidos e postos em debandada, três dias depois. Em 10 de setembro de 1834, tentam novo assalto, obrigando o comandante do presídio, Dionísio Ribeiro, a retirar com a sua gente para a Chefina e ficando Lourenço Marques nas mãos do Machacana, régulo rebelde da Matola.
Em 25 de Agosto de 1843, os régulos da Magaia e da Moamba, falam, com as suas mangas, o presídio e atacam a fortaleza.
Em 2 de Dezembro de 1861, o régulo Muzila, pai de Gungunhana, reconhece a nossa soberania e pede auxílio ao presídio para combater o seu irmão Mauéua e a concessão, imprudente e mal avisada desse auxílio, envolve a guarnição portuguesa do presídio num conflito guerreiro que por muitos meses se arrastou.
Em 1 de Março de 1867, na previsão de novos ataques dos vátuas, começou a construir-se a linha de defesa de Lourenço Marques que tinha quatro baluartes e ficou concluída em Outubro desse ano.
Em 21 de Março de 1868, é o régulo vátua Amulê que vem iniciar, contra Lourenço Marques, uma longa série de investidas. Repelido, volta a atacar e a ser repelido, por mais três vezes, em 27 de Março, 9 de Abril e 16 de Junho desse mesmo ano. Desta última vez doi completamente derrotado tendo as suas mangas fugido em debandada. Desanimado de seu intento, Amulê prestou vassalagem ao rei de Portugal, oito anos mais tarde, em 28 de Março de 1876.
Mas a audácia dos vátuas e o seu despreso pelo nosso domínio eram tão grandes que, em 1894, um régulo mais ousado chegara a trazer as suas impis até às cercanias da cidade que só se salvou mercê da rapidez fulgurante com que se organizou a defesa, ou nelhor, como foi improvisada por esse grande patriota e soldado que foi Roque de Aguiar.
Um dia, porém, desembarcou António Enes, chegaram as forças de Galhardo, entrou em acção essa brilhantíssima plêiade militar em que Mouzinho, ao lado de Aires de Ornelas, de Paiva Couceiro, de João Coutinho, de Caldas Xavier e de tantos outros ilustres soldados de élite, mais não foi do que primus inter pares.
Foi em 2 de Fevereiro de 1895, o glorioso combate de Marracuene contra as hostes do famigerado Matibejana ou, melhor, deu-se, nesse dia inolvidável, o “milagre” de Marracuene, visto que essa acção militar, é talvez, o único exemplo registado na história, de um quadrado que a violência do ataque inimigo rompe em uma das suas faces e que consegue reconstituir-se, sob vivíssimo fogo, num feroz corpo-a-corpo.
Após Marracuene, foram sucedendo-se as vitórias portuguesas em dezenas de pequenas acções militares, bem como nos célebres combates de 14 e 21 de Outubro em Magul, na brilhantíssima acção de Coolela em 7 de Novembro e na ocupação do Manjacaze de onde o Gungunhana já fugira, rodeado das suas mulheres e acompanhado pelas últimas impis que ainda se lhe conservavam fiéis.
Estava salva Lourenço Marques, estava destruído o império vátua, estava Portugal engrandecido no conceito mundial e tinham os nossos oficiais, com admirável espírito de improvisação, criado as principais lei tácticas e estratégicas da guerra colonial, como o afirmou, ao tempo, um brilhante e multi-agaloado estratega do Grande Estado-Maior do exército alemão.
António Enes embarcara para Lisboa, em 16 de Dezembro. Mas, o grande Comissário Régio soubera deixar the right man in the right place, ao nomear governador de Gaza o capitão Mouzinho de Albuquerque que se cobrira de glória durante a campanha e que, no dia 15 de Dezembro de 1895, partiu a assumir esse posto de honra. Ia perfeitamente possesso da ideia fixa, aliás de há muito radicada em seu espírito, de aniquilar, definitivamente, o poderio vátua, mediante o aprisionamento do célebre tirano de Gaza.
Uma vez chegado, logo febrilmente, começou os preparativos para o seu golpe de audácia, vencendo todas as inércias e afastando todos os obstáculos. O golpe teatral e inesperado, do aprisionamento do Gungunhana (que relatamos detalhadamente numa outra crónica, nesta revista) cercearam pretexto para qualquer intromissão que fosse lesiva dos nossos direitos na África Oriental e, nomeadamente, em Lourenço Marques.
Mostrando ao mundo que tínhamos garras para nos defendermos, quebrámos as garras a Cecil Rhodes, esse aventureiro de génio que brindou a sua pátria com um império e que, de longe, vinha afiando as garras para um assalto que lhe desse, em fácil presa, Lourenço Marques, com o seu porto magnífico e com o seu interland.
Desde esse momento até à época actual, serenados os ânimos e embainhadas as espadas tem sido notabilíssima a obra realizada em Lourenço Marques, pelo esforço português, em campos já agora diferentes.
Esse esforço, desde então desenvolvido, no campo dos progressos económico, social e urbano; na utensilagem e formidável valorização do porto marítimo; na construção de vias férreas em que circula magnífico material, na construção de numerosas estradas de rodagem, bem como no saneamento, aumento e embelezamento da cidade que tem edifícios majestosos, hotéis grandiosos, largas e belas avenidas e as mais lindas e concorridas praias da África Austral; esse esforço ingente de civilização material, corresponde, plenamente, pela ousadia de suas iniciativas e por sua inteligente e tenaz continuidade, àquele outro e primeiro nobre esforço durante quatro longos séculos, sustentado pela grei, em prol da intangibilidade da soberania de Portugal na Baía da Lagoa. Do velho presídio, souberam os portugueses, como inigualáveis obreiros de império que sempre têm sido, fazer uma das mais lindas, ricas e progressivas cidades do continente africano.
O feito de Chaimite, pondo termo a uma era heroica, iniciou, em Lourenço Marques, uma nova idade de vertiginoso progresso social e material.
Então, e só então é que, ressarcindo-se de passadas desventuras, a jovem cidade pôde transitar, da sua anterior e incerta condição de escola e liça de fortalecimento moral, para a sua actual situação de oficina de prosperidade e para a plena receptividade das características que, no campo social, urge imprimir-lhe, de brilhante expoente de lusitanidade no leste africano.
Dixi. Laus Deo!
Lopo Vaz de Sampaio e Melo (1965)
Fonte: Arquivo Pessoal