Curiosamente, as biografias correntes do “grande herói de Abril” omitem uma parte substancial (e suculenta) da sua vida. Para que os leitores d’O DIABO não fiquem dela privados, aqui se deixa um resumo.
TROPA E LEGIÃO
Nascido em 31 de Agosto de 1936, em Moçambique, numa família com origens goesas, Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho fez estudos secundários em Lisboa, no Liceu Camões, e em Lourenço Marques, no Liceu Salazar.
Na Metrópole concluiu os estudos superiores militares, na Escola do Exército, onde se destacou como actor amador. Partiu depois como alferes de Artilharia para Angola, onde participou no combate aos primeiros surtos terroristas, entre 1961 e 1963.
Em Novembro deste último ano foi nomeado instrutor da Legião Portuguesa. Voltou a servir em Angola entre 1965 e 1967, sendo depois professor na Escola Central de Sargentos, em Águeda. Medalha de 2ª classe de Mérito Militar e Medalha de prata de Comportamento Exemplar, cumpriu a sua última comissão ultramarina entre 1970 e 1973, em Bissau.
Foi aí, quase a completar 40 anos, que se deixou cativar pelas ideias federalistas dos oficiais que rodeavam o general António de Spínola, então governador da Guiné, e passou a integrar as hostes contestatárias dos capitães – embora fosse já major, prestando serviço na Repartição de Assuntos Civis e Acção Psicológica, no quartel-general do homem do monóculo, em Bissau.
“HERÓI DE ABRIL”
O resto da história é mais conhecido. Regressado a Lisboa, Otelo Saraiva de Carvalho integrou-se na conspiração político-militar em curso, estabelecendo ligação entre o grupo spinolista (que então o considerava um aliado seguro) e as franjas radicais que, conotadas com o PCP, começavam a controlar o Movimento dos Capitães.
Depois do falhanço do golpe pró-spinolista das Caldas, em 16 de Março de 1974, que levou à prisão da Trafaria os oficiais mais moderados do Movimento, Otelo reforçou a sua posição como responsável pelo “sector operacional” dos revoltosos. Nessa condição, assumiu a coordenação das operações em 25 de Abril de 1974, a partir de um “posto de comando” improvisado no quartel da Pontinha.
Instaurado o novo regime, Otelo foi graduado em brigadeiro e nomeado comandante-adjunto do Comando Operacional do Continente (COPCON), na dependência directa do general Costa Gomes, conhecido nos meios militares pelo apodo “Rolha”, por ter sobrevivido, por flutuação política, a várias conjunturas políticas.
Graduado em general de brigada, em Março de 1975, Saraiva de Carvalho foi feito comandante efectivo do COPCON, onde exerceu vastas acções de repressão político-ideológica e assinou mandados de captura em branco, usados para prender os supostos e imaginários “fascistas” que a partir de então encheram a prisão de Caxias.
Atravessou o “Processo Revolucionário em Curso” (PREC) como membro do Conselho da Revolução (órgão de tutela que se sobrepunha a qualquer outro poder político) e de um directório, ou triunvirato, que para além de si integrava o Presidente (não eleito) Costa Gomes e o primeiro-ministro comunista Vasco Gonçalves (nomeado por aquele).
“E DEPOIS LOGO SE VIA”
O que Otelo Saraiva de Carvalho considera ser a sua “capacidade de liderança” está bem expresso numa passagem da longa entrevista que deu à Lusa em 2014. Aí, talvez involuntariamente, Otelo faz um retrato do seu papel no PREC que só peca por chegar ao grande público com tantas décadas de atraso.
Nos tempos da revolução, reconhece agora Otelo, “era preciso decidir às vezes sem tempo para pensar”. Recordando esse período funesto, que instaurou uma ditadura ideológica, desorganizou a economia nacional e amputou a Portugal vastos (e cobiçados) territórios ultramarinos, Otelo admite: “Enquanto comandante da região militar de Lisboa, do COPCON e conselheiro da revolução, tive de tomar decisões ao minuto. Muitas delas foram tomadas sobre os joelhos”.
E diz mesmo: “Eu excedi largamente as minhas funções. Fiz coisas porque as pessoas não queriam assumir as suas responsabilidades. Vi-me obrigado a decidir, às vezes sem ter dez minutos para pensar. Era necessário tomar decisões, mesmo que elas fossem más. Tinham de ser tomadas. Depois logo se via”.
Apesar deste tom casual com que se refere a actos que afectaram dramaticamente a vida de milhões de pessoas, Otelo continua a sentir saudades do “dinamismo” dos tempos do PREC. E derrete-se ao pensar na “demonstração de capacidade, de criatividade por parte do povo” (tradução deste seu “povo” para linguagem corrente: os magotes de militantes da extrema-esquerda que o cercavam), que “participava diariamente” e que tornou “notável” a “vida política activa durante este período do PREC”.
“MANDEI OCUPAR AS TERRAS”
A desorganização agrária nacional, que no PREC tomou o nome enganador de “reforma”, é uma das “decisões” que Saraiva de Carvalho reconhece terem sido tomadas “sem pensar”. É melhor darmos a palavra ao próprio Otelo: “Foi o que aconteceu inúmeras vezes, uma delas com a reforma agrária, quando mandei ocupar as terras” – algo que, segundo o próprio, se traduziu na “ocupação”, uma semana depois, de mais de um milhão de hectares no Alentejo.
Para além de só agora se saber que tinha sido ele a “mandar ocupar as terras” (algo que a esquerda invariavelmente atribui à “iniciativa revolucionária dos trabalhadores”), ressalta neste capítulo a ligeireza com que o então comandante do COPCON manipulou as próprias autoridades encarregadas de manter a ordem nos campos alentejanos.
Quando os donos das terras tentaram reagir, Otelo deu instruções aos trabalhadores para manterem as ocupações “com as caçadeiras” (sic), sem recearem a intervenção da GNR. E porquê? O próprio o confessa: “Eu tinha dito à GNR que mandei ocupar as terras e para ser dada a todas as GNR do Alentejo a ordem de que ninguém podia ir a mando de um latifundiário desocupar os trabalhadores”.
Otelo pensa que esta decisão concitou contra si “os ódios dos latifundiários”. Na verdade, os “latifundiários” representavam uma percentagem ínfima dos agricultores portugueses – e os principais prejudicados pela “reforma agrária” acabaram por ser os pequenos e médios lavradores, espoliados do que era seu e apodados de “fascistas”.
A factura, essa ainda o povo português anda a pagar: até agora, só em indemnizações devidas a agricultores espoliados, os contribuintes já pagaram 243 milhões de euros, a que se somam prejuízos patrimoniais, rupturas de produção, desorganização fundiária, gado devorado em orgias de comícios…
TERRORISMO E PCP
Mas o que continua a incomodar Otelo Saraiva de Carvalho não é o seu triste e confesso papel no PREC: é o facto de continuarem a chamar-lhe “terrorista”, devido ao seu julgamento e condenação (depois superada por indulto parlamentar) no processo das “Forças Populares 25 de Abril”, as “FPs25” de sinistra memória.
O antigo instrutor da Legião (ler caixa, nestas páginas) reconhece haver contra si “ódios terríveis”, sobretudo de “gente da direita” que o acusa de ter participado em actos de terrorismo.
Aqui está, segundo o próprio, mais uma razão para não se expor como candidato ao cargo de Presidente da República: “Haveria sempre um Paulo Portas, um Manuel Monteiro que diriam: assassino, bandido, foi ele que mandou matar”. E jura: “Nunca mandei matar ninguém. Tenho horror a qualquer assassínio. Liquidar um ente humano é para mim extremamente doloroso, não concebo que alguém o consiga fazer. E no entanto eu tenho esse rótulo”.
A culpa do processo que o ligou às Fs25, segundo Otelo, não é porém da odiada direita, mas sim… do Partido Comunista! Saraiva de Carvalho está ainda hoje convencido de que foram os comunistas da linha “clássica” a provocar a sua prisão, para o afastarem da vida política como poderoso adversário.
Assim: “Eu tinha anunciado que era cabeça de lista da FUP nas legislativas que iam decorrer em Outubro de 1984 e o PCP não estava disponível para sofrer uma derrota como a sofrida nas presidenciais de 1976, em que o seu número dois [Octávio Pato] foi amplamente derrotado por mim”.
O PCP paga-lhe hoje na mesma moeda, condenando o seu “aventureirismo” e ignorando-o politicamente. O que tão-pouco o incomoda: “Enquanto os políticos me acusam de assassino e bandido, o povo, que cada vez menos se reconhece nos partidos, tem comigo um laço de amizade muito grande”, afirma Otelo.
POPULISMO E OCASO
Em Novembro de 1975, o contra-golpe chefiado por Jaime Neves e Ramalho Eanes pôs fim ao PREC e apeou Otelo, que permaneceu detido durante três meses, para averiguação de responsabilidades. Seguindo um trajecto revolucionário e populista, em 1976 foi candidato às eleições presidenciais, obtendo pouco mais de 15 por cento dos votos, embora superando a votação no candidato do PCP, Octávio Pato (7 por cento).
Em 1980 criou o seu próprio partido político (FUP/Força de Unidade Popular) e voltou a concorrer às presidenciais, obtendo menos de 2 por cento dos sufrágios.
As suas ligações à extrema-esquerda e à organização terrorista “Forças Populares 25 de Abril”, responsável pelo assassinato de duas dezenas de pessoas, levou-o ao banco dos réus em 1985.
Condenado a 15 anos de prisão, cumpriu apenas cinco. Em 1996 foi indultado e amnistiado pela Assembleia da República.
Jornal O Diabo 25/09/2015