4 de junho de 2020

O “caso Angoche”, 45 anos depois (Por Jornal o Diabo)


Foi graças a O DIABO que o “caso Angoche” não caiu no esquecimento. Uma série de reportagens publicadas no jornal de Vera Lagoa levantou a ponta do véu sobre uma tragédia da guerra de África, ignorada ostensivamente pelos sucessivos governos posteriores ao golpe militar de Abril de 1974. Hoje, a memória dos tripulantes do navio mercante português continua a exigir uma reparação histórica. 

A 24 de Abril de 1971, o petroleiro ‘Esso Port Dickson’, com bandeira do Panamá, encontrou à deriva, a 30 milhas da costa de Moçambique, entre Quelimane e a Beira, o navio costeiro ‘Angoche’. Desgovernado, com fogo a bordo e sem sinais dos 23 tripulantes nem do único passageiro, parecia um barco fantasma.

O ‘Angoche’, da Marinha mercante portuguesa, pertencia à Companhia Moçambicana de Navegação, subsidiária da Companhia Nacional de Navegação, e fora construído nos estaleiros da CUF, em Lisboa, em 1958, para navegar no serviço de cabotagem de Moçambique.

Às 17:30 do dia 23 de Abril de 1971, o ‘Angoche’ levantou ferro de Nacala com destino a Porto Amélia (actual Pemba), no norte daquela então província portuguesa na costa oriental de África. No porão, além de mercadoria variada, seguia um importante carregamento de material de guerra destinado ao exército português no Norte de Moçambique. A viagem era curta e a chegada estava prevista para as cinco da manhã seguinte. Mas o ‘Angoche’ nunca chegaria ao destino. Quando foi encontrado estava muito para sul da sua rota.

O navio deserto foi passado a pente fino pelos agentes da PIDE/DGS que, em África, durante a guerra, funcionava como serviço de informações. Com base nessa investigação, o director da DGS em Lourenço Marques (actual Maputo) enviou para Lisboa, a 6 de Maio, uma mensagem rádio com a classificação de “urgentíssimo”. Informava os seus superiores da Rua António Maria Cardoso, sede daquela polícia na Metrópole, que tinham sido encontrados vestígios de duas explosões no ‘Angoche’.

Uma delas fora provocada por cargas reforçadas com granadas de fosfato colocadas junto à chaminé de estibordo, por cima da ponte de comando, que ficou completamente destruída, incluindo os sistemas de comunicações do navio.

A segunda carga explodiu dentro do ventilador das máquinas. Ao contrário das instalações destinadas aos tripulantes brancos, na ré do navio, que foram “completamente pulverizadas”, o compartimento destinado aos 13 tripulantes negros dava sinais de ter sido abandonado precipitadamente: roupa, calçado e coletes de salvação estavam espalhados por todo o lado.

Nos dias seguintes, outras mensagens rádio citando informadores na Tanzânia e fontes dos serviços secretos sul-africanos (BOSS) e rodesianos (CIO) davam conta da chegada de membros da tripulação a Dar-es-Salaam, a capital tanzaniana. No entanto, este país – que era o principal apoio, no continente africano, da Frelimo, a organização que combatia a presença portuguesa em Moçambique – negou repetidamente qualquer envolvimento no assalto ao ‘Angoche’ e desmentiu ter tripulantes em seu poder.

O relatório do inspector da PIDE/DGS Casimiro Monteiro, enviado para Lisboa em Maio de 1971 com a classificação de “secreto”, acrescenta mais pormenores sobre o assalto ao ‘Angoche’. Monteiro concluiu que os explosivos foram colocados em Nacala, antes da partida, e accionados por relógio. A explosão provocou feridos ou mortos, o que foi comprovado pela presença de vestígios de sangue a bordo.

Para aquele agente e para outros responsáveis da DGS – cujo relatório desapareceu misteriosamente da sede daquela polícia já depois do “25 de Abril” -, o ataque ao navio fora obra de militares portugueses em serviço na base de Nacala, ligados à Acção Revolucionária Armada (ARA), o braço armado do Partido Comunista Português, responsável por uma onda de atentados bombistas em Portugal. A prova desta ligação estaria nos explosivos usados no ataque ao ‘Angoche’ – eram do mesmo tipo dos que tinham sido roubados numa pedreira em Loures e utilizados no princípio de Março desse ano na sabotagem da base de Tancos, reivindicada pela ARA. Mais tarde, já depois do golpe de 25 de Abril de 1974, chegaram a ser apontados nomes de oficiais da Marinha ligados ao MFA como estando envolvidos no “caso Angoche”.

No entanto, a sabotagem só por si não chega para explicar o enigma do desaparecimento da tripulação e do material de guerra que se encontrava no navio. O ‘Angoche’ terá sido abordado nessa noite, depois das explosões, por um submarino russo, que recolheu o armamento e capturou os tripulantes, entregando-os depois à Frelimo. Os portugueses foram mantidos em cativeiro durante anos, na principal base da guerrilha moçambicana na Tanzânia, Nachingwea, e por fim assassinados, de acordo com o antigo inspector da PIDE/DGS Óscar Cardoso, citado por Bruno Oliveira Santos em Histórias Secretas da PIDE/DGS (Nova Arrancada, 2000).

A intervenção soviética foi pedida pela Tanzânia como retaliação pelo ataque de um submarino sul-africano a uma traineira tanzaniana, no âmbito de uma operação conjunta luso-sul-africana contra a Frelimo. Outras fontes referem que a captura dos tripulantes portugueses foi uma resposta à condenação, por um tribunal militar português, do capitão cubano Pedro Peralta, capturado em combate na Guiné e libertado pelas novas autoridades que tomaram o poder em Lisboa depois do golpe de Abril de 1974.

Para adensar o enigma, há referências a um passageiro misterioso que teria embarcado para a viagem e ainda a estranha ausência do radiotelegrafista, que, à última hora, acabou por ficar em terra. Por fim, o suicídio de uma portuguesa que trabalhava num clube nocturno da cidade moçambicana da Beira, tida como amante de um oficial da Marinha de guerra que estaria envolvido no atentado, veio acrescentar mais ingredientes conspirativos ao caso.

A participação directa do submarino russo no assalto ao navio constituía a prova de que, como Portugal sempre defendeu perante a ONU e a comunidade internacional, os auto-proclamados “movimentos de libertação” não passavam de fantoches do imperialismo da então URSS na agressão ao Ultramar português. Daí que os novos senhores do poder depois do golpe militar de Abril se tenham empenhado a fundo na tentativa de abafar o caso, negando a justiça devida à memória dos tripulantes do ‘Angoche’, vítimas de uma guerra em que não eram combatentes.

As autoridades “abrilistas” bem tentaram que a tragédia do ‘Angoche’ caísse no esquecimento. Só não contaram com uma jornalista chamada Vera Lagoa e um jornal que, então como hoje, não se verga nem se cala: O DIABO.



O grande levantamento jornalístico do “caso Angoche” nas páginas d’O DIABO, ao longo de vários anos, ficou a dever-se, em grande medida, à persistência de Eduardo Metzner Leone.

Ensaísta e tradutor, romancista, dramaturgo e homem sempre ligado à Imprensa, Metzner Leone (1914-1986) tinha 60 anos aquando do 25 de Abril. Numa idade em que podia ter-se acomodado numa confortável reforma, regressou ao combate jornalístico e voltou a ser repórter. Levou a investigação do mistério do navio costeiro Angoche tão longe quanto lhe permitiram as autoridades portuguesas de então, pouco interessadas em molestar o regime de Samora Machel – e acabou por tornar-se um verdadeiro especialista no tema, publicando em livro o essencial das suas conclusões (“Caso Angoche: Mais um Crime Impune”, editado por Waldemar Paradela de Abreu com a chancela da ‘Intervenção’).

De espírito jovial e combativo, era uma inspiração para os jornalistas mais novos, com quem acamaradava descontraidamente como se tivesse, também ele, acabado de chegar à profissão. E, no entanto…

Nascido numa família de tradições castrenses, Eduardo Henrique Metzner Leone teve uma das mais duradouras e brilhantes carreiras do jornalismo português do século XX. As suas primeiras publicações na Imprensa remontam a 1936, tendo trabalhado nos principais jornais e revistas nacionais ao longo de meio século, com destaque para o ‘Diário de Notícias’ e o ‘Diário Popular’. Ficaram célebres as suas reportagens vivas e coloridas nas terras do Império, aquando da viagem do Presidente da República, Óscar Carmona, às possessões ultramarinas, em 1939.

No início da carreira, ‘dandy’ com lugar cativo no Chiado e nas tertúlias literárias e políticas do seu tempo, Metzner Leone ostentava um faiscante monóculo, que então era moda entre os antigos alunos do Colégio Militar, como ele. Mas o seu espírito inquisitivo levou-o com frequência a afivelar o bornal de viajante e explorador, tendo vivido em Timor e em Angola.

Datam dos anos 30 e 40 alguns dos seus primeiros livros de fervor nacionalista, como “A Ideia Nova” e “Rumo ao Império”, sempre pontuados por uma obra romanesca plena de referências patrióticas, em que sobressai “Na Terra do Café”. “Mais nenhum povo europeu realizou no Ultramar obra semelhante à dos portugueses”, escreveu Metzner em “O Brasil e o Colonialismo Português”, um dos seus livros mais ensaísticos. “Foi o português o único povo criador de povos, o único que deu o seu sangue e a sua alma às populações ultramarinas”.

Aspecto incontornável da obra jornalística e literária de Metzner Leone é a sua análise da situação europeia no início dos anos 40. Tendo vivido e trabalhado em Berlim nesse período crucial da história contemporânea, deixou-nos três livros de testemunho que são hoje preciosidades bibliográficas: “Drama Europeu” (1940), “Nazis/Dez Meses na Alemanha em Guerra” (1941) e “Na Hora Decisiva” (1943).

A partir dos anos 50, Metzner iniciou uma apaixonada relação com o Brasil, onde chegou a viver por largos períodos. O seu livro “Um Português no Brasil” reflecte essa paixão. Ainda no país-irmão, foi o autor do guião de um filme célebre realizado por Arthur Duarte, “Encontro Com a Morte”, que contou com Orlando Vilar e Irma Alvarez nos papéis principais.

Depois do 25 de Abril, inconformado com a derrocada dos valores por que sempre se batera, Metzner Leone atravessou o PREC com enorme coragem cívica e publicou, à contra-corrente, várias obras de divulgação histórica, como “O Preste João das Índias”, “Fernão de Magalhães Não Traiu”, “Camões: o Homem e o Mito” e “A Maravilhosa Viagem de Pedro Alvares Cabral” (reedição da sua aclamada biografia do grande descobridor, dada pela primeira vez à estampa em 1960).

Ter um feitio obstinado não impediu Eduardo Metzner Leone de ser um comunicador nato. Tinha um jeito muito próprio de inclinar a cabeça ao falar, enfatizando um argumento ou sublinhando uma ideia. Era senhor de uma escrita directa e ágil, a que não faltava elegância estilística. Numa das suas obras, resumia assim a sua preocupação de chegar ao grande público: “Este livro não é para intelectuais. Foi escrito sem preocupações literárias e para ser compreendido por toda a gente: operários, trabalhadores, assalariados e funcionários – que são, na sua pequenez, na sua modéstia e pelas suas qualidades, os reais obreiros do que há de perdurável e eterno no nosso Portugal”.

Teve n’O DIABO uma das suas últimas Redacções.


Jornal O Diabo 01/02/2016