4 de junho de 2020

Otelo: uma confissão que chega com 40 anos de atraso (Por Jornal O Diabo)


Quatro décadas depois, o comandante operacional do golpe de Estado de 25 de Abril confessa as suas responsabilidades num período em que as decisões eram tomadas em cima do joelho “e depois logo se via”.

Aos 77 anos de idade, coronel do Exército na situação de reforma, Otelo Saraiva de Carvalho não sossega. Em recente entrevista à agência Lusa, o homem que em 25 de Abril de 1974 assumiu a coordenação das operações do golpe de Estado, a partir de um “posto de comando” improvisado no quartel da Pontinha, confessou que espera ainda “uma acção de massas” que volte a alcandorá-lo ao poder.

Em que se baseará Otelo para acalentar tal esperança? Eis algo que o próprio não esclarece e ninguém lhe pergunta. De resto, a indiferença generalizada pelas suas ideias, afirmações ou desejos reflecte o isolamento político em que vive há décadas: a extrema-esquerda dos nossos dias desconhece-o, o PCP abomina-o e, daí para a direita, o nome de Otelo não existe. Mas o “grande herói de Abril” não desiste, agora que passam 40 anos sobre o 25 de Abril.

Na sua longa entrevista à Lusa, Saraiva de Carvalho (que já recentemente sugerira “a reconstituição do Movimento das Forças Armadas”, o controverso MFA) revelou ter sido “desafiado” a concorrer às próximas eleições para Presidente da República, marcadas para Janeiro de 2016.

Não adiantou quem o “desafiou” – mas pouco importa, pois o coronel reformado declara que, como “o regime está”, não se encontra disponível para “entrar naquilo que o Spínola definiu como porca: a política”. Pouco importa, também, que o apodo de “porca” tenha de ser creditado, não ao general António de Spínola, mas à sátira política do final da Monarquia Constitucional, no século XIX. A cultura política nunca foi o forte de Otelo…

Ainda assim, o antigo comandante do famigerado COPCON (ler biografia resumida, no final desta página) confessou-se “disponível” para participar “numa qualquer mudança efectiva do país”. E explicitou as suas condições: “Se houver, espontaneamente, uma qualquer acção de massas, que não seja a manifestação com cartazes, e houver uma coisa de maior volume, com maior possibilidade de intervenção, se existir uma mudança de regime que valha a pena, se houver necessidade e o povo confiar ainda na minha capacidade de liderança, estarei disponível”.

“E DEPOIS LOGO SE VIA”

O que Otelo Saraiva de Carvalho considera ser a sua “capacidade de liderança” está bem expresso noutra passagem da entrevista. Aí, talvez involuntariamente, Otelo faz um retrato do seu papel no PREC que só peca por chegar ao grande público com quatro décadas de atraso.

Nos tempos da revolução, reconhece agora Otelo, “era preciso decidir às vezes sem tempo para pensar”. Recordando esse período funesto, que instaurou uma ditadura ideológica, desorganizou a economia nacional e amputou a Portugal vastos (e cobiçados) territórios ultramarinos, Otelo admite: “Enquanto comandante da região militar de Lisboa, do COPCON e conselheiro da revolução, tive de tomar decisões ao minuto. Muitas delas foram tomadas sobre os joelhos”.

E diz mesmo: “Eu excedi largamente as minhas funções. Fiz coisas porque as pessoas não queriam assumir as suas responsabilidades. Vi-me obrigado a decidir, às vezes sem ter dez minutos para pensar. Era necessário tomar decisões, mesmo que elas fossem más. Tinham de ser tomadas. Depois logo se via”.

Apesar deste tom casual com que se refere a actos que afectaram dramaticamente a vida de milhões de pessoas, Otelo continua a sentir saudades do “dinamismo” dos tempos do PREC. E derrete-se ao pensar na “demonstração de capacidade, de criatividade por parte do povo” (tradução deste seu “povo” para linguagem corrente: os magotes de militantes da extrema-esquerda que o cercavam), que “participava diariamente” e que tornou “notável” a “vida política activa durante este período do PREC”.

“MANDEI OCUPAR AS TERRAS”

A desorganização agrária nacional, que no PREC tomou o nome enganador de “reforma”, é uma das “decisões” que Saraiva de Carvalho reconhece terem sido tomadas “sem pensar”. É melhor darmos a palavra ao próprio Otelo: “Foi o que aconteceu inúmeras vezes, uma delas com a reforma agrária, quando mandei ocupar as terras” – algo que, segundo o próprio, se traduziu na “ocupação”, uma semana depois, de mais de um milhão de hectares no Alentejo.

Para além de só agora se saber que tinha sido ele a “mandar ocupar as terras” (algo que a esquerda invariavelmente atribui à “iniciativa revolucionária dos trabalhadores”), ressalta neste capítulo a ligeireza com que o então comandante do COPCON manipulou as próprias autoridades encarregadas de manter a ordem nos campos alentejanos.

Quando os donos das terras tentaram reagir, Otelo deu instruções aos trabalhadores para manterem as ocupações “com as caçadeiras” (sic), sem recearem a intervenção da GNR. E porquê? O próprio o confessa: “Eu tinha dito à GNR que mandei ocupar as terras e para ser dada a todas as GNR do Alentejo a ordem de que ninguém podia ir a mando de um latifundiário desocupar os trabalhadores”.

Otelo pensa que esta decisão concitou contra si “os ódios dos latifundiários”. Na verdade, os “latifundiários” representavam uma percentagem ínfima dos agricultores portugueses – e os principais prejudicados pela “reforma agrária” acabaram por ser os pequenos e médios lavradores, espoliados do que era seu e apodados de “fascistas”.

A factura, essa ainda o povo português anda a pagar: até agora, só em indemnizações devidas a agricultores espoliados, os contribuintes já pagaram 243 milhões de euros, a que se somam prejuízos patrimoniais, rupturas de produção, desorganização fundiária, gado devorado em orgias de comícios…

TERRORISMO E PCP

Mas o que continua a incomodar Otelo Saraiva de Carvalho não é o seu triste e confesso papel no PREC: é o facto de continuarem a chamar-lhe “terrorista”, devido ao seu julgamento e condenação (depois superada por indulto parlamentar) no processo das “Forças Populares 25 de Abril”, as “FPs25” de sinistra memória.

O antigo instrutor da Legião (ler caixa, nestas páginas) reconhece haver contra si “ódios terríveis”, sobretudo de “gente da direita” que o acusa de ter participado em actos de terrorismo.

Aqui está, segundo o próprio, mais uma razão para não se expor como candidato ao cargo de Presidente da República: “Haveria sempre um Paulo Portas, um Manuel Monteiro que diriam: assassino, bandido, foi ele que mandou matar”. E jura: “Nunca mandei matar ninguém. Tenho horror a qualquer assassínio. Liquidar um ente humano é para mim extremamente doloroso, não concebo que alguém o consiga fazer. E no entanto eu tenho esse rótulo”.

A culpa do processo que o ligou às Fs25, segundo Otelo, não é porém da odiada direita, mas sim… do Partido Comunista! Saraiva de Carvalho está ainda hoje convencido de que foram os comunistas da linha “clássica” a provocar a sua prisão, para o afastarem da vida política como poderoso adversário.

Assim: “Eu tinha anunciado que era cabeça de lista da FUP nas legislativas que iam decorrer em Outubro de 1984 e o PCP não estava disponível para sofrer uma derrota como a sofrida nas presidenciais de 1976, em que o seu número dois [Octávio Pato] foi amplamente derrotado por mim”.

O PCP paga-lhe hoje na mesma moeda, condenando o seu “aventureirismo” e ignorando-o politicamente. O que tão-pouco o incomoda: “Enquanto os políticos me acusam de assassino e bandido, o povo, que cada vez menos se reconhece nos partidos, tem comigo um laço de amizade muito grande”, afirma Otelo.

Segundo o militar reformado, “este povo que eu amo todos os dias vem ter comigo e diz ‘é preciso fazer outro 25 de Abril! Era preciso mais como o senhor. Volte!’. Isto para mim é extremamente gratificante”.

E se acreditar nisto o consola, que fique na ilusão…



Jornal O Diabo, 20/12/2014