«Uma semana e dois dias após ter sido conhecido o já famoso relatório em que o FMI se propõe "repensar" o Estado português (e que se limita a propor cortes nas áreas do Estado social), a lista de erros, conclusões abusivas, manipulações e falseamentos comprovados continua a crescer. Mas, da parte da instituição cuja chancela foi aposta ao documento, e que já veio assegurar que nada cobrou por ele por fazer parte dos "relatórios técnicos de rotina na colaboração com os Estados", nem um pio.
Nem da parte do FMI nem dos autores do "estudo", um dos quais até é português: diz o Fundo que estes, entre os quais se conta o vice-diretor do respetivo departamento de Essuntos Orçamentais, Gerd Schwarz, querem que todas as perguntas lhes cheguem pelo serviço de media da instituição. Mas a resposta não varia: "Os dados usados no relatório advêm de fontes oficiais do Governo e/ou de outras organizações internacionais, e as fontes estão indicadas."
Ora não só boa parte dos erros e conclusões abusivas do relatório consiste em manipular estudos alheios, retirar deles conclusões espúrias ou simplesmente ignorá-los quando dizem o contrário do que se pretende "provar" (o DN apontou vários casos), como custa a perceber que uma das instituições que têm a responsabilidade, há ano e meio, de avalizar a execução orçamental use números desatualizados por exemplo no que respeita aos orçamentos da saúde e da educação. Varreram-se--lhes os valores certos? Deitaram fora? Tiveram portanto de os pedir ao Governo? Mas, a ser assim, qual é exatamente o seu contributo "técnico"?
Os "lapsos" no documento implicam que o Governo forneceu números errados e "inventou" factos? Bom, isso já não pode surpreender ninguém - mesmo se deve ser sempre denunciado e execrado. Mas que o FMI se deixe assim enganar é que apesar de tudo deve ser notícia. E só pode ter uma consequência: que o relatório seja colocado no seu destino natural, o caixote do lixo, e o FMI seja forçado a explicar o que se passou (se explicação possível existe) e tire daí as necessárias consequências (e nós com ele). É que das duas uma: ou o nível de incompetência e de manipulação patentes no relatório é imputável exclusivamente aos autores (e à fonte Governo português) e será preciso então fazer outro - em que já agora se explique, à cabeça, o critério para privilegiar determinadas áreas, se for o caso - ou aquilo é o modus operandi normal do FMI.
Em qualquer das hipóteses, não pode deixar de espantar que pareça haver tão pouca gente, no País, determinada a levar até ao fim a sindicância de um documento com estas características e da responsabilidade da organização que o produziu. Dir-se-ia que nem se trata de um dos nossos principais credores nem de uma das instituições que se arrogam a capacidade de nos dizer qual o caminho certo e qual o errado. E que não ocorre à generalidade das pessoas que para repensar é preciso ter pensado antes. Vulgo usar a cabeça.» [DN]
Autor: Fernanda Câncio
O Jumento, Sábado, Janeiro 19, 2013