Reclusos do Tempo (Alex Dau) A chuva caía rigorosa e implacável. De tempo, a tempo o vento fazia uma investida, e derrubava uma árvore, um tecto de palha, ou mesmo uma palhota, também machambas eram engolidas pela investida, depois vinha uma trégua a permitir às vítimas recolherem os seus bens, que haviam ficado à mercê do vendaval. No negrume do dia, o céu cinzento engolia o sol, deixando a terra mergulhada numa misteriosa escuridão e a manhã ficava incerta. Os habitantes de Duanga, contemplavam a intempérie, olhando-a por debaixo das sobrancelhas humedecidas, pareciam perguntar-se a si próprios que mal haveriam feito para merecerem tal desgraça. O régulo Makene falecera na tentativa de silenciar a tempestade, mas esta só amainou horas depois da sua morte. Os seus conterrâneos acreditavam que Makene se sacrificara fazendo frente ao temporal, para lhes devolver o sossego que mereciam, depois de horas intermináveis de pavor. O sol já espreitava mesmo a tangente de uma nuvem cinzenta, e os habitantes já experimentavam um sossego animador. Horas antes, Makene e seus seguidores ajoelhavam-se diante do embondeiro sagrado, pactuando um acordo com seus ancestrais, para apaziguar o tempo, pois o dia afogara-se nas trevas facultadas pela ira dos espíritos que se haviam revoltado. - Rogo-vos que devolvais o bem-estar à minha gente! – e sua prece foi abafada pelo vento que assobiava. - Faremos tudo o que for preciso! –seu rogo foi devorado por um ribombar de um trovão. Só depois de várias horas de negociação, eles decidiram privar o régulo do seu corpo, enquanto o seu espírito ficava vagueando pela terra, os espíritos haviam-se vingado da ousadia de Makene. Os espíritos de seus ancestrais estavam desgostosos com o seu povo, por estes na última colheita terem ignorado o ritual que sempre efectuavam e que consistia em fazer oferendas aos espíritos. Infelizmente, nesse ano, não houvera boa colheita, por isso não se realizou a tal cerimónia. O pouco que haviam colhido não chegou nem mesmo para mitigar as necessidades alimentares da aldeia. Buzueque, neto primogénito de Makene, foi nomeado, por concordância do conselho de anciãos, para regular o distrito de Duanga, pois era o único indivíduo em quem Makene confiara durante a sua governação. O único descontente com a nomeação de Buzueque foi Ozias, primo de Buzueque, filho de seu tio Valembe, que aspirava ocupar o lugar, logo que o tio Makene morresse. Buzueque tomou posse, logo depois da cerimónia fúnebre de seu avô, que, segundo a sua vontade, foi sepultado junto ao embondeiro. Tornou-se o régulo mais novo de toda a região. Com apenas vinte e um anos, fora incumbido da difícil missão de dirigir os seus semelhantes, reconstruir a aldeia, e libertar o espírito de seu avô. A trégua dada pelos espíritos era para procederem ao funeral de Makene e realizarem o ritual de oferecimento que os ancestrais exigiam para que a vida em Duanga voltasse à normalidade. A fome que assolava a região não deixava alternativa que não fosse buscar auxílio nas autoridades administrativas. Ozias queria derrubar a liderança Buzueque , pois este era ainda muito jovem para dirigir os conterrâneos, poderia governar mais tarde, enquanto que a ele não lhe restava muito tempo, com cinquenta e oito anos, não dava para esperar pela morte do primo. Ozias tinha que mostrar que seu primo era incapaz de liderar o seu povo. Quando soube das pretensões de Buzueque, de visitar o Administrador, antecipou-se, fazendo saber ao Administrador que Buzueque havia de vir sob pretexto de angariar o apoio da Administração para realização da cerimónia, quando, na verdade, os bens que pretendia eram para fins pessoais. Os preparativos se alongaram e, numa manhã agreste, com a luz do sol ainda a refugiar-se por detrás das nuvens, Buzueque partiu, na companhia de dois velhos, em direcção à sede de sua localidade. Ozias arranjou uma desculpa para não os acompanhar. Passaram-se horas e horas antes do grupo voltar. Ozias esperava-os ansioso, e quando os viu regressarem de mãos a abanar regalou-se com o seu empreendimento. O sol continuava ainda dormente, hospedado condicionalmente algures, a noite chegou mais depressa. Buzueque mais o seu grupo de trabalho decidiram reunir os aldeãos, para lhes explicarem o resultado da visita que fizeram ao Administrador. – Precisamos de alguns géneros alimentícios, para ofertarmos aos espíritos! – solicitou prontamente o novo régulo.– O administrador mostrou-se indisponível em ajudar-nos. – continuou Buzueque, precisamos de contribuir com nossos pertences para se podermos trocar por comida. – Nada temos! – comentou Ozias, procurando a anuência dos demais. – Qualquer coisa que puderem dar será bem vinda! – afirmou o régulo, com uma expressão grave. Uma hora depois, alguns artigos foram recolhidos, muitos sacrificaram algo em prol do bem que almejavam. O manto que cobria a vila foi-se descobrindo gradualmente, ficando somente uma pequena parte do céu ainda enegrecida. O vento voltou a assobiar no momento em que a lua tentava impor a sua luminosidade de avermelhada. Ozias vendo que estava prestes a perder a batalha a favor de seu primo, recorreu à feitiçaria, para aniquilar seu inimigo. Pela madrugada, um grupo indicado pelo régulo partiu em direcção à sede do distrito, com alguns bens recolhidos entre a população, para trocar por géneros alimentícios de que precisavam para poderem realizar o mukutto. Regressaram com as alcofas contendo mandioca, batata-doce, farinha de milho, arroz e outros produtos que conseguiram. A manhã era habitada pela ausência parcial do sol, como sempre acontecia nos últimos dias. O régulo Buzueque já se preparava para ir dirigir o ritual, quando depara com a cobra mamba, de dimensões anormais e cor indefinida. A cada movimento que Buzueque fazia, a cobra ameaçava-o. E Buzueque ficou recluso da mamba ,enquanto os seus súbditos esperavam impacientes pela chegada de seu soberano, para dirigir a cerimónia. A trégua dada pelos espíritos começava a escassear e o medo açambarcava todos os corações. O corpo de eruditos, agora sem o comando do régulo, começava a desesperar. Tiveram mesmo que recorrer aos bons préstimos de curandeiro confiança. O mau sinal dado pela posição adquirida pelos objectos do curandeiro fez com que o grupo fosse a casa do Buzueque. A liberdade do régulo só foi conseguida, quando o curandeiro, auxiliado pelo espírito de Makene, se aproximou da cabana de Buzueque, queimando um incenso que deixou o bicho atarantado. A víbora precipitou-se então em direcção a Ozias, que acompanhava o grupo, e este perante o flagrante, precipitou-se em fuga. O réptil perseguiu-o, alcançou-o, e ferindo-o de morte. O mukutho recomeçou, o céu reabriu, o sol foi espreitando gradualmente, emitindo seus raios de luz dourada, que se reflectiam nas dentaduras encardidas dos Duanganas, que sorriam felizes. Maputo, Quarta-Feira, 11 de Março de 2009:: Notícias