Morcegos* (António Orlando) Era uma vez, há muito tempo, vivia na aldeia do cume da montanha um velho que se dizia ter poderes de se transformar num grande morcego. De onde veio e como vivia não se sabia nada, era um mistério que o tempo havia levado. Às vezes, era possível, em pleno dia, ver-se o velho num ponto que era o seu observatório preferido, ficar imóvel por horas seguidas, podia-se jurar que desaparecia deste ponto num abrir e fechar de olhos sem deixar rasto da sua trajectória. Pela noite era possível discernir uma grande fogueira e uma sombra fantasmagórica a que se seguia um bando de morcegos que esvoaçavam colina abaixo para se saciar com sangue de animais dos lavradores nas casas dos arredores. Era este facto que cimentava o mistério do velho da montanha, que vivia numa gruta, apelidada de entrada para o inferno. Reza a lenda que num desses anos, um chefe da região resolveu desalojar do local aqueles pequenos vampiros da gruta, prontificou-se a convocar os anciãos da aldeia, pois não queria se prestar a responder sozinho quando a maldição caísse. No dia seguinte, o chefe acordou sobressaltado, gritando para os quatro cantos do mundo, enquanto a porta se abria arrancada para fora, afastada violentamente por um impulso de medo que se lhes estampava na cara. - Socorro!... Os seus sequazes prontificaram-se logo a acudi-lo, mas este, aturdido e assustado pelo sonho que tivera, não se dava da presença destes, ao que um deles lhe perguntou: - O que se passa, Senhor? - Que querem? Alguém vos chamou? - Foi o chefe que gritou por socorro, nós viemos porque tememos pelo senhor, bem sabe que nada no mundo pagaria a tua existência. Afinal é o chefe desta região. - Eu gritei?, balbuciou o chefe… Já sei! Gritei! Tive um pesadelo. Acordei sobressaltado, e porque estão aqui, logo agora? - Vínhamos anunciar ao senhor que os anciãos estão convocados. - O quê? Manda já cancelar o encontro, afinal não podemos fazer nada contra aqueles bichos. Assim falou o chefe, dando meia volta para dentro, ao se aperceber que os seus comparsas estavam estupefactos com aquela decisão repentina. Os homens saíram daquele lugar sem fazer comentários e foram dispersar aquele encontro que se destinava à discussão do desalojamento dos morcegos da gruta. Ficou-se mais tarde a saber que o chefe Inhapata teve um daqueles sonhos de arrepiar, onde ele gritava até ficar rouco, mas sem a voz se ouvir ecoar. Enquanto isso, ninguém aparecia à porta para lhe ajudar. Viu o velho da colina com os braços abertos e as mãos nas ombreiras da sua cama feita de estacas, as asas-barbatanas de morcegos que abrem e fecham quando ergue ou deixa cair os braços. O ser dizia para ele parar de gritar: Porque gritas? Matava-te sem acordares e se o quisesse, tive-te ao meu alcance antes de te acordarem. Vou espiar o teu sonho até ao amanhecer. Não sei porque te digo estas coisas. Mas, o meu dever é acudir sempre que ouvimos ideias de desalojar os morcegos daquele lugar. Queres que eu vá buscar ajuda? Não adianta gritar, é inútil, ninguém te ouve. O ser, que logo se apelidou como o famoso velho habitante da gruta, avançava devagar para ele, roçou-lhe com as suas unhas de morcego na testa e deslizando as mãos pelo pescoço, e pegou-lhe pelo colarinho da camisa sem gola e arrastou-o cama abaixo e largou-o aí, despejando-lhe ameaças caso se atrevesse a pensar desalojar os morcegos daquele lugar. O alvejado gritava agora por piedade, jurando cumprir com as recomendações. - Poupa a minha vida! Não por mim, mas por este povo, e pelos meus filhos pequenos (seis) que um desses dias nascera outro, vou ter a honra de vos oferecer para padrinho. - Promessa é promessa. Um dia destes, venho cobrar. Assim falando, o ser desanuviou-se no espaço, num estalar de dedos. Inhapata procurava trepar uma árvore que não existia quando rolou no chão e se pôs a gritar por socorro. Já era manhã… O chefe cumpriu a promessa e até hoje naquela região transborda uma lama preta que fertiliza os campos adjacentes à zona montanhosa, e os habitantes da região têm certeza de ser esta lama excrementos de morcego, enviados pelo velho da gruta para fertilizar os campos todos os anos, em troca de deixar os morcegos no seu habitat natural. António Orlando (pseudónimo literário de Belmiro Pedro Marrengula), nascido a 1 de Maio de 1971, na vila fronteiriça de Namaacha, província de Maputo. Depois do ensino básico, vai frequentar a Escola de Artes Visuais, formando-se em desenho gráfico, pintura e cerâmica, actividades que vem exercendo em paralelo com a docência. Licencia-se em História Social pela Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo. Assinou colunas no então Jornal da Tarde e Revista de Empresas em Maputo. *In Colectânea de Contos da Pawa ANTÓNIO ORLANDO Maputo, Quarta-Feira, 15 de Julho de 2009:: Notícias