Moçambique - Governo português tenta distorcer história colonial
Um número considerável de académicos proeminentes especializados na pesquisa da história dos países africanos de expressão portuguesa e do colonialismo português escreveram uma carta aberta em três línguas, nomeadamente inglês, português e francês, para denunciar a última tentativa do governo de Portugal de distorcer o passado sangrento da sua expansão colonial em Africa.
Actualmente, o governo e instituições portuguesas, tais como a Universidade de Coimbra, estão a organizar um concurso internacional designado por “As Sete Maravilhas Portuguesas no Mundo”.
Estas maravilhas consistem em monumentos construídos em todo o mundo, a maioria dos quais durante o auge do poderio colonial português.
De facto, alguns destes monumentos são impressionantes – mas a nota explicativa trata os mesmos como se não fossem mais do que obras-primas de arquitectura. A partir da literatura que acompanha o concurso ninguém seria capaz de adivinhar que durante muitos séculos vários destes locais desempenharam um papel chave no comércio de escravos através do Oceano Atlântico.
Estimativas indicam que durante o comércio de escravos cerca de 12 milhões de africanos foram raptados e transportados através do Atlântico. Portugal e a sua antiga colónia, o Brasil, foram responsáveis por pelo menos metade deste número.
ESCRAVATURA FOI UMA VERGONHA QUE PORTUGAL PREFERE CONTORNAR
O comércio de escravos é dos factos mais notáveis da história da expansão colonial portuguesa, mas que foi deliberadamente omitida do concurso “As Sete Maravilhas Portuguesas”.
A carta aberta nota que nas últimas duas décadas “vários países europeus, americanos e africanos vêm afirmando a memória dolorosa do comércio de africanos escravizados e valorizando o património que lhe é associada”.
Alguns dos países que também praticaram o comércio de escravos, entre as quais se destacam a França, reconhecem a escravatura como tendo sido um crime contra a humanidade, razão pela qual este país europeu adoptou a data 10 de Maio como o “Dia Nacional de Comemoração das Memórias do Tráfico Negreiro, da Escravatura e das suas Abolições”.
O Vaticano, que outrora também foi cúmplice da escravatura, já pediu desculpas pelo papel que desempenhou. Esse pedido de desculpas foi feito publicamente pelo Papa João Paulo II quando, em 1992, visitou a Casa dos Escravos na Ilha de Gorée, ao largo da costa do Senegal.
Vários presidentes, cujos países estiveram profundamente comprometidos com o comércio de escravos, incluindo o brasileiro Lula da Silva, e os norte-americanos Bill Clinton e George W. Bush, seguiram o exemplo, condenando os malefícios do comércio de escravos e o passado trágico dos seus países.
Em 2007, a Grã-Bretanha comemorou o seu segundo centenário da abolição do comércio de escravos, tendo o então Primeiro-Ministro, Tony Blair, manifestado o seu pesar pelo papel do seu país na escravidão de muitos africanos.
Portugal, ao invés, refere a carta, está a tentar remar contra a maré do reconhecimento e arrependimento.
A lista das Sete Maravilhas inclui a cidade histórica de Luanda, actual capital de Angola, a Ilha de Moçambique, que foi a primeira capital de Moçambique, Ribeira Grande, na Ilha de Santiago, em Cabo Verde, e o Castelo São Jorge da Mina (também conhecido por Castelo Elmina), no Gana.
Todos estes locais estiveram profundamente envolvidos no comércio de escravos, facto que é sistematicamente omitido na literatura do concurso Sete Maravilhas.
A excepção de um único caso: o texto das “Sete Maravilhas” chegou ao cúmulo de afirmar que o Castelo Elmina foi entreposto de escravos somente a partir da ocupação holandesa, em 1637.
Esta parece ser mais uma tentativa de insinuar que apenas os holandeses eram praticantes da escravatura, e não os portugueses.
Contudo, a carta aberta nota que os portugueses construíram o Castelo Elmina, em 1482. Foi um entreposto de escravos, embora também tenha servido para o comércio de ouro e de outros produtos. Porém, não existe margem de dúvida de que um grande número de escravos passaram através de Elmina, quando ainda se encontrava sob o controlo dos portugueses, e que acabaram sendo levados para o Brasil.
A carta refere que “para ser fiel à história e moralmente responsável, consideramos que a inclusão desses ‘monumentos’ no dito concurso deveria ser acompanhada de informações completas sobre o papel deles no tráfico atlântico, assim como sobre seu uso actual”, (Por exemplo, O Castelo Elmina é actualmente um museu que mostra a história da escravatura).
Segundo os signatários da referida carta, o governo português e os organizadores do concurso “ignoraram a dor daqueles que tiveram seus antepassados deportados desses entrepostos comerciais e muitas vezes ali mortos”.
“Será possível desvincular a arquitectura dessas construções do papel que elas tiveram no passado e que ainda têm, no presente, enquanto lugares de memória da imensa tragédia que representou o tráfico transatlântico e a escravidão africana nas colónias europeias?”, questionam os autores da carta aberta.
“Em respeito à história e à memória dos milhões de vítimas do tráfico atlântico de escravos, viemos através desta carta aberta repudiar a omissão do papel que tiveram esses lugares no comércio atlântico de africanos escravizados”, conclui a carta, descrevendo o concurso como sendo uma tentativa de banalizar e apagar a história “em prol da exaltação de um passado português glorioso expresso na suposta 'beleza' arquitectónica de tais sítios de morte e tragédia”.
A carta é assinada por várias dezenas de académicos de varias universidades em Africa, Europa, América do Sul e do Norte.
Por isso, os autores da carta aberta decidiram lançar uma petição “on-line” contra a distorção da história, que toda a gente poderá assinar, e que se encontra disponível no endereço : www.petitiononline.com/port2009/petition.html.
PAUL FAUVET, da AIM
Maputo, Quarta-Feira, 3 de Junho de 2009:: Notícias