31 de dezembro de 2008

28 de dezembro de 2008

Maputo: Praça 7 de Março (2005)

Maputo: Rua Consiglieri Pedroso (2005)

A cidade que nos resta (Mia Couto)

A CIDADE QUE NOS RESTA (MIA COUTO) Perguntava-me um amigo estrangeiro, acabado de chegar a Maputo, em que ruas ele podia circular à vontade. - À vontade? - perguntei, apenas para ganhar tempo. O fulano ficou olhando o meu rosto pensativo. Poucos anos antes eu teria respondido sem muita hesitação. A cidade mantinha áreas de relativo sossego, onde o pacato cidadão podia circular sem riscos. Mas naquele dia eu acabava de receber a notícia que um colega meu do serviço, em plena Rua Joaquim Lapa, a escassos metros da Esquadra, tinha sido assaltado à mão-armada, em pleno dia. No dia anterior, assim rezava o jornal, uma mulher fora violada na marginal. Não acontecera no lusco-fusco. Sucedera à luz do dia. Na noite anterior eu escutara no noticiário televisivo bairros inteiros reclamando contra o reino de terror da bandidagem. Na semana anterior, um estrangeiro que visitava a nossa empresa, próximo do Hotel Polana tinha sido agredido por um grupo de jovens. Nós tínhamos informado esse mesmo consultor estrangeiro que o bairro era tranquilo e que ele podia caminhar pelas redondezas sem problema. Horas depois, estávamos visitando o pobre homem no Hospital. - Ora caminhar à vontade .... ruminei eu, já consciente do preço da minha demora. O visitante salvou-me do embaraço, decidindo filosofar sobre a tendência universal do aumento da criminalidade. Eu acreditava que o mau momento passara quando ele lançou nova interrogação: - E conduzir? - Conduzir? Ao menos, eu fizesse uso de mais imaginação. A repetição da pergunta era um estratagema que ameaça saturar. - Sim, conduzir um carro? Acha que posso? - Claro que pode, se tiver carta de condução. - Tenho, sim. Mas é seguro? - Bem... quer dizer... é preciso ter alguns cuidados... - Como, por exemplo....por exemplo.... Desta feita, as imagens cruzaram-me a mente com a velocidade de um chapa cem. Como explicar ao pobre turista que nos semáforos não se arranca quando abre o verde. Como explicar que, em certas esquinas, o vermelho corresponde ao verde e só se pára no amarelo? Que em outros cruzamentos o verde corresponde ao amarelo? Como esclarecer que os chapas nunca param nos semáforos e param sempre no meio da estrada? O estrangeiro entendeu a demora na minha resposta. Deve ter ficado a matutar: a pé não podia, de carro não devia. Como usufruiria ele da cidade? E a mim mesmo eu me questionei: que cidade nos resta a nós, cidadãos de Maputo? Não podemos oferecer a cidade aos outros porque ela está deixando de ser nossa.
- Deixe estar, disse ele para me tranquilizar. Eu vou ficando no Hotel. Num impulso eu quase dizia: eu também me vou mudar para o seu Hotel. E enquanto conduzia o meu amigo rumo ao seu alojamento eu fui olhando Maputo e pensando se como o cidadão está perdendo a cidade, como nos restam de Maputo as sobras daquilo que a voragem do caos não está ainda dominando.

Samora Moisés Machel na Vitória em 1974

Samora Machel e Eduardo Mondlane na Luta Armada

Dois estandartes da Revolução Moçambicana: o Nacional e o do Partido Frelimo

21 de dezembro de 2008

19 de dezembro de 2008

O primeiro postal de Natal (Dezembro de 1843)

O PRIMEIRO POSTAL DE NATAL O primeiro postal de Natal surgiu na Inglaterra, pelas mãos do pintor John Callcott Horsley (1817-1903), em Dezembro de 1843, a pedido de Sir Henry Cole (1808-1882), director do South Kensington Museum (rebaptizado, em 1899, de The Victoria and Albert Museum). Sir Henry Cole era assistente no Public Records Office, para além disso era escritor e editor de livros e jornais. Cole escreveu livros sobre arte e arquitectura sob o pseudónimo de Felix Summerly, e fundou o jornal The Journal of Design. Este possuía, ainda, o Summerly's Home Treasury, através do qual eram publicados livros infantis, de entre as histórias publicadas contam-se "Cinderela", "João e o pé de feijão" e "A Bela e o Monstro", entre outros. No Natal, Sir Henry escrevia cartas aos seus familiares, amigos e conhecidos, desejando-lhes Boas Festas. Contudo, devido ao seu trabalho, este tinha pouco tempo para escrever tantas cartas. Assim , ele (tal como todas as outras pessoas que escreviam cartas de Boas Festas) comprava papel de carta decorado com motivos natalícios ou então, comprava postais de festas genéricos, nos quais se podia acrescentar a festa de que se tratava. Perante isto, Sir Henry pediu a Horsley para lhe criar um postal com uma única mensagem que pudesse ser duplicada e enviada a todas as pessoas da sua lista. A primeira edição destes postais foi colorida à mão, nestes podia ver-se uma família a festejar com a legenda "Merry Christmas and a Happy New Hear to You" (Feliz Natal e um Próspero Ano Novo para ti). Estes foram impressos num cartão por Jobbins de Warwick Court, Holborn, Londres, sendo, posteriormente, pintados à mão por um profissional de nome Manson. Estes foram publicados no "Summerly's Home Treasury Office, 12 Old Bond Street, Londres", pelo seu amigo e sócio Joseph Cundall. Os postais que não foram utilizados po Sir Henry, venderam-se na Summerly's por 1 xelim. Segundo Cundall venderam-se muitos postais, cerca de 1000. Actualmente, só existe por volta de uma dúzia destes postais originais, um desses foi leiloado em 24/11/2004, sendo vendido por £22,500 (foi enviado por Sir Henry Cole para "Granny and Auntie Char"), como estava assinado pelo próprio Sir Henry Cole, este postal é extremamente raro e valioso. Estes postais ilustravam uma família em festa durante o Natal e brindavam ao seu amigo ausente (ao qual o postal era dirigido) com um copo de vinho tinto. Em cada um dos lados do postal tinha imagens de actos de caridade "vestir os desnudados" e "alimentar os pobres". Contudo, a imagem central da família brindando causou grande controvérsia, sendo alvo de várias críticas já que ver crianças a beber um pouco de vinho era considerado como um fomentar da corrupção moral nas crianças. Perante isto, os postais foram retirados de venda. Segundo a lenda, no ano seguinte, Sir Henry não usou o método dos postais para fazer os seus votos de Boas Festas aos seus amigos, mas mesmo assim o hábito de enviar postais de Natal rapidamente se espalhou não só por toda Inglaterra, mas também um pouco por todo o mundo.

17 de dezembro de 2008

O avô e o neto (Jacob Grimm and Wilhelm Grimm)

O AVÔ E O NETO Um senhor de idade foi morar com o seu filho, nora e o netinho de quatro anos de idade. As mãos do velho eram trémulas, a sua visão embaciada e os seus passos vacilantes. A família jantava reunida à mesa. Mas, as mãos trémulas e a falta de visão do avô atrapalhavam-no na hora da refeição. Ervilhas rolavam da sua colher e caíam no chão. Quando pegava no copo, o leite era derramado na toalha da mesa. O filho e a nora irritaram-se com a confusão. — Precisamos tomar uma providência com respeito ao pai — disse o filho. — Já chega de leite derramado, barulho de gente a comer com a boca aberta e de comida pelo chão. Decidiram então colocar uma pequena mesa num cantinho da cozinha. Ali, o avô comia sozinho, enquanto o resto da família fazia as refeições à mesa, com satisfação. Desde que o velho quebrara um ou dois pratos, a sua comida passou a ser servida numa tigela de madeira. Quando a família olhava para o avô sentado ali sozinho, notavam-se as lágrimas nos seus olhos. Mesmo assim, as únicas palavras que lhe dirigiam eram chamadas de atenção ásperas, sempre que deixava cair ao chão um talher ou pedaços de comida. O menino de 4 anos de idade assistia a tudo em silêncio. Uma noite, antes do jantar, o pai percebeu que o filho pequeno estava no chão, manuseando pedaços de madeira. Perguntou delicadamente à criança: — O que é que fazes aí debaixo? E menino respondeu docemente: — Ah, estou a fazer uma tigela para o pai e a mãe comerem, quando eu crescer. O garoto sorriu e voltou ao trabalho. Aquelas palavras tiveram um impacto tão grande nos pais que acabaram por ficar absolutamente mudos por instantes. Lágrimas começaram a escorrer dos seus olhos....comovidos. Embora ninguém tivesse falado nada, ambos sabiam o que tinha de ser feito! Naquela noite, o pai agarrou o avô pelas mãos e, gentilmente, conduziu-o à mesa da família. Dali para frente e até o final de seus dias comeu todas as refeições juntamente com toda a família. (Jacob Grimm and Wilhelm Grimm)

A rapariga e os fósforos (Christian Andersen)

A RAPARIGA E OS FÓSFOROS Fazia tanto frio! A neve não parava de cair e a noite aproximava-se. Aquela era a última noite de Dezembro, véspera do dia de Ano Novo. Perdida no meio do frio intenso e da escuridão, uma pobre rapariguinha seguia pela rua fora, com a cabeça descoberta e os pés descalços. É certo que ao sair de casa trazia um par de chinelos, mas não duraram muito tempo, porque eram uns chinelos que já tinham pertencido à mãe, e ficavam-lhe tão grandes, que a menina os perdeu quando teve de atravessar a rua a correr para fugir de um trem. Um dos chinelos desapareceu no meio da neve, e o outro foi apanhado por um garoto que o levou, pensando fazer dele um berço para a irmã mais nova brincar. Por isso, a rapariguinha seguia com os pés descalços e já roxos de frio; levava no avental uma quantidade de fósforos, e estendia um maço deles a toda a gente que passava, apregoando: –Quem compra fósforos bons e baratos? – Mas o dia tinha-lhe corrido mal. Ninguém comprara os fósforos, e, portanto, ela ainda não conseguira ganhar um tostão. Sentia fome e frio, e estava com a cara pálida e as faces encovadas. Pobre rapariguinha! Os flocos de neve caíam-lhe sobre os cabelos compridos e loiros, que se encaracolavam graciosamente em volta do pescoço magrinho; mas ela nem pensava nos seus cabelos encaracolados. Através das janelas, as luzes vivas e o cheiro da carne assada chegavam à rua, porque era véspera de Ano Novo. Nisso, sim, é que ela pensava. Sentou-se no chão e enrolou-se ao canto de um portal. Sentia cada vez mais frio, mas não tinha coragem de voltar para casa, porque não vendera um único maço de fósforos, e não podia apresentar nem uma moeda, e o pai era capaz de lhe bater. E afinal, em casa também não havia calor. A família morava numa água-furtada, e o vento metia-se pelos buracos das telhas, apesar de terem tapado com farrapos e palha as fendas maiores. Tinha as mãos quase paralisadas com o frio. Ah, como o calorzinho de um fósforo aceso lhe faria bem! Se ela tirasse um, um só, do maço, e o acendesse na parede para aquecer os dedos! Pegou num fósforo e: Fcht!, a chama espirrou e o fósforo começou a arder! Parecia a chama quente e viva de uma candeia, quando a menina a tapou com a mão. Mas, que luz era aquela? A menina julgou que estava sentada em frente de um fogão de sala cheio de ferros rendilhados, com um guarda-fogo de cobre reluzente. O lume ardia com uma chama tão intensa, e dava um calor tão bom! Mas, o que se passava? A menina estendia já os pés para se aquecer, quando a chama se apagou e o fogão desapareceu. E viu que estava sentada sobre a neve, com a ponta do fósforo queimado na mão. Riscou outro fósforo, que se acendeu e brilhou, e o lugar em que a luz batia na parede tornou-se transparente como tule. E a rapariguinha viu o interior de uma sala de jantar onde a mesa estava coberta por uma toalha branca, resplandecente de loiças finas, e mesmo no meio da mesa havia um ganso assado, com recheio de ameixas e puré de batata, que fumegava, espalhando um cheiro apetitoso. Mas, que surpresa e que alegria! De repente, o ganso saltou da travessa e rolou para o chão, com o garfo e a faca espetados nas costas, até junto da rapariguinha. O fósforo apagou-se, e a pobre menina só viu na sua frente a parede negra e fria. E acendeu um terceiro fósforo. Imediatamente se encontrou ajoelhada debaixo de uma enorme árvore de Natal. Era ainda maior e mais rica do que outra que tinha visto no último Natal, através da porta envidraçada, em casa de um rico comerciante. Milhares de velinhas ardiam nos ramos verdes, e figuras de todas as cores, como as que enfeitam as montras das lojas, pareciam sorrir para ela. A menina levantou ambas as mãos para a árvore, mas o fósforo apagou-se, e todas as velas de Natal começaram a subir, a subir, e ela percebeu então que eram apenas as estrelas a brilhar no céu. Uma estrela maior do que as outras desceu em direcção à terra, deixando atrás de si um comprido rasto de luz. «Foi alguém que morreu», pensou para consigo a menina; porque a avó, a única pessoa que tinha sido boa para ela, mas que já não era viva, dizia-lhe muita vez: «Quando vires uma estrela cadente, é uma alma que vai a caminho do céu.» Esfregou ainda mais outro fósforo na parede: fez-se uma grande luz, e no meio apareceu a avó, de pé, com uma expressão muito suave, cheia de felicidade! – Avó! – gritou a menina – leva-me contigo! Quando este fósforo se apagar, eu sei que já não estarás aqui. Vais desaparecer como o fogão de sala, como o ganso assado, e como a árvore de Natal, tão linda. Riscou imediatamente o punhado de fósforos que restava daquele maço, porque queria que a avó continuasse junto dela, e os fósforos espalharam em redor uma luz tão brilhante como se fosse dia. Nunca a avó lhe parecera tão alta nem tão bonita. Tomou a neta nos braços, e soltando os pés da terra, no meio daquele resplendor, voaram ambas tão alto, tão alto, que já não podiam sentir frio, nem fome, nem desgostos, porque tinham chegado ao reino de Deus. Mas ali, naquele canto, junto do portal, quando rompeu a manhã gelada, estava caída uma rapariguinha, com as faces roxas, um sorriso nos lábios… morta de frio, na última noite do ano. O dia de Ano Novo nasceu, indiferente ao pequenino cadáver, que ainda tinha no regaço um punhado de fósforos. – Coitadinha, parece que tentou aquecer-se! – exclamou alguém. Mas nunca ninguém soube quantas coisas lindas a menina viu à luz dos fósforos, nem o brilho com que entrou, na companhia da avó, no Ano Novo. Christian Andersen

Uma visita inesperada (Acácio Simões)


UMA VISITA INESPERADA Foi na noite de Natal. Um anjo apareceu a uma família muito rica e falou para a dona da casa. - Trago-te uma boa notícia: esta noite o Senhor Jesus virá visitar a tua casa! Aquela senhora ficou entusiasmada. Jamais acreditara ser possível que esse milagre acontecesse em sua casa. Tratou de preparar um excelente jantar para receber Jesus. Encomendou frangos, assados, conservas, saladas e vinhos importados. De repente, tocaram a campainha. Era uma mulher com roupas miseráveis, com aspecto de quem já sofrera muito. - Senhora, - disse a pobre mulher, - Será que não teria algum serviço para mim? Tenho fome e tenho necessidade de trabalhar. - Ora bolas! - retorquiu a dona da casa. - Isso são horas de me vir incomodar? Volte outro dia. Agora estou muito atarefada com um jantar para uma visita muito importante. A pobre mulher retirou-se. Um pouco mais tarde, um homem, sujo de óleo, veio bater-lhe à porta. - Senhora, - disse ele, - O meu camião avariou aqui mesmo em frente à sua casa. Não teria a senhora, por acaso, um telefone para que eu pudesse comunicar com um mecânico? A senhora, como estava ocupadíssima em limpar as pratas, lavar os cristais e os pratos de porcelana, ficou muito irritada. - Você pensa que minha casa é o quê? Vá procurar um telefone público... Onde já se viu incomodar as pessoas dessa maneira? Por favor, cuide para não sujar a entrada da minha casa com esses pés imundos! E a anfitriã continuou a preparar o jantar: abriu latas de caviar, colocou o champanhe no frigorífico, escolheu, na adega, os melhores vinhos e preparou os coquetéis. Nesse momento, alguém lá fora bate palmas. "Será que agora é que é Jesus?" -pensou ela, emocionada. E com o coração a bater acelerado, foi abrir a porta. Mas decepcionou-se: era um menino de rua, todo sujo e mal vestido... - Senhora, estou com fome. Dê-me um pouco de comida! - Como é que eu te vou dar comida, se nós ainda não jantámos?! Volta amanhã, porque esta noite estou muito atarefada... não te posso dar atenção. Finalmente o jantar ficou pronto. Toda a família esperava, emocionada, o ilustre visitante. Entretanto, as horas iam passando e Jesus não aparecia. Cansados de tanto esperar, começaram a tomar aqueles coquetéis especiais que, pouco a pouco, já começavam a fazer efeito naqueles estômagos vazios, até que o sono fez com que se esquecessem dos frangos, assados e de todos os pratos saborosos. De madrugada, a senhora acordou sobressaltada e, com grande espanto, viu que estava junto dela um anjo. - Será que um anjo é capaz de mentir? - gritou ela. - Eu preparei tudo esmeradamente, aguardei a noite inteira e Jesus não apareceu. Por que é que você fez essa brincadeira comigo? - Não fui eu que menti... Foi você que não teve olhos para enxergar. - explicou o anjo. - Jesus esteve aqui em sua casa três vezes: na pessoa da mulher pobre, na pessoa do motorista e na pessoa do menino faminto, mas a senhora não foi capaz de reconhecê-lo e acolhê-lo em sua casa". Acácio Simões

14 de dezembro de 2008

A dinâmica do Instituto Camões no espaço CPLP (Inês Costa Pessoa)

A DINÂMICA DO INSTITUTO CAMÕES NO ESPAÇO CPLP Inês Costa Pessoa O Instituto Camões, criado em 1992, tem como objectivo genérico a divulgação da língua e cultura portuguesas no estrangeiro, actuando através de três eixos: diplomático-consular, artístico-cultural e científico-académico. É no espaço CPLP que o Instituto concentra grande parte da sua dinâmica – 11 de entre os 19 Centros Culturais criados concentram-se em países da CPLP, dos 20 Centros de Língua Portuguesa criados, 10 encontram-se em países da CPLP. Por outro lado tem-se vindo a verificar a consolidação da rede de docência, a atribuição de bolsas de estudo e de investigação, etc. Vocacionado para divulgar a língua e cultura portuguesas no estrangeiro, o Instituto Camões (IC) figura, desde a sua criação em 1992 (data em que toma o lugar do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa - ICALP) (1), como uma das mais importantes plataformas de promoção e afirmação da identidade lusófona além fronteiras. Esta afirmação é particularmente estimulada e estimulante num tempo em que proliferam os receios – deveras discutidos e sempre questionáveis – de anulação ou silenciamento das culturas nacionais e locais perante um processo de globalização (entendido como sinónimo de “americanização” e “europeização”), por muitos considerado hegemónico e homogeneizante.
Por conseguinte, é a esta entidade que cabe, em parceria com outros organismos estatais – designadamente o Instituto da Cooperação Portuguesa (agora APAD), os Ministérios da Cultura, da Educação, do Ensino Superior e da Ciência, pôr em prática os vectores prioritários da política cultural externa portuguesa, onde é dado especial destaque à questão linguística, isto é, à multiplicação do número de falantes de português. Mas não só. Visa, em concomitância, fazer chegar Portugal aos quatro cantos do mundo nas mais diversas dimensões artístico-culturais, como a história, o património e a arquitectura, a literatura e a poesia, as artes plásticas, performativas e cinematográficas, a fotografia... Esferas de actuação do IC Com vista à concretização dos objectivos assinalados, a esfera de intervenção do IC desdobra-se em uma tríade de eixos fundamentais: diplomático-consular (a cargo das embaixadas e consulados); artístico-cultural (dinamizada pelos Centros Culturais) e científico-académica (ao cuidado dos Centros de Língua Portuguesa, Universidades e Institutos Superiores). Progressivamente dilatadas, as acções empreendidas contemplam iniciativas tão diferentes quanto complementares. De entre elas destacamos as seguintes: Celebração de acordos ou protocolos de cooperação com países terceiros que estimulem a difusão da língua portuguesa no estrangeiro e a promoção da cultura lusófona; Implementação, coordenação e dinamização das iniciativas empreendidas nos centros culturais e de língua portuguesa; Ampliação e consolidação da rede de docência em universidades estrangeiras (formação de leitores e criação de cátedras); Investimento na rede de bibliotecas (dotando-as de melhores equipamentos e ampliando os fundos documentais); Atribuição de bolsas de estudo e financiamento de projectos de investigação nas áreas da educação, investigação e criação artística que se debrucem em torno da língua e cultura lusas, bem como apoio à edição de obras escritas em português; Fomento de contactos e estabelecimento de parcerias com entidades congéneres, instituições de âmbito cultural, universidades e consulados; Apoio à representação portuguesa em eventos no estrangeiro, de modo a conferir visibilidade aos signos de portugalidade, valorizando-os (é o caso da participação nas feiras do livro, espectáculos e exposições); Incentivo ao intercâmbio cultural e educativo; Organização de encontros internacionais (congressos, seminários, cursos) em torno da língua e cultura lusófona.
Dinamização do recém-criado Centro Virtual Camões, um espaço privilegiado para dar a conhecer, a uma rede que se pretende cada vez mais ampla, a língua, lugares, personalidades, informações e criações nacionais e que, pelo facto de estar disponível online, goza da vantagem de contribuir, sem constrangimentos físico-espaciais, para o cumprimento dos propósitos do Instituto.
É de assinalar ainda que, para além da elaboração de programas próprios, susceptíveis de disseminar pelo mundo os signos linguísticos e culturais portugueses, este organismo tem incentivado e publicitado iniciativas públicas e privadas, nacionais e internacionais em torno da produção, distribuição e consumo da cultura lusófona. Instituto Camões no espaço CPLP O português, falado por mais de 200 milhões de indivíduos, figura como a terceira língua materna europeia com maior representação mundial, a sexta mais falada no mundo, sendo ainda o idioma oficial dos oito Estados que compõem a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) constituída em 1996 – Portugal, Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Moçambique e Timor-Leste, o mais recente membro –, daí o estatuto de veículo estratégico de comunicação internacional que lhe vem sendo reconhecido. Estes países têm ocupado um lugar distintivo na política externa cultural portuguesa: Portugal assinou até hoje mais de 70 acordos culturais, dos quais cerca de duas dezenas com membros da CPLP. Porém, se muitas vezes os acordos e protocolos não passam de meras declarações de intenções incapazes de converter-se em práticas efectivas, a crescente proliferação de Centros Culturais e de Língua Portuguesa no espaço lusófono, a consolidação da rede de docência nestes países, a atribuição de bolsas de estudo e investigação a estudantes nacionais do espaço CPLP, a criação do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), o apoio à edição e a atribuição anual do Prémio Camões (2) a autores lusófonos, entre vários outros exemplos, são testemunhos vivos do real interface entre Portugal e os mesmos. De um total de 19 Centros Culturais (incluindo os pólos) criados pelo IC no mundo, 11, isto é metade, estão concentrados na área CPLP. Dos 20 Centros de Língua Portuguesa implementados em 16 países (3), 10 figuram nesse mesmo espaço. Em termos de projectos futuros na área CPLP, o IC visa incrementar o número de Centros Culturais, e também acentuar a colaboração com instituições locais, mediante o accionar de programas específicos de cooperação. Sendo a valorização do português nos territórios que integram a CPLP um objectivo premente do IC, a dinamização do IILP e o seu envolvimento na criação do Instituto Internacional de Línguas Oficiais (INLO) em Timor-Leste lideram a lista de prioridades desta entidade. Em conclusão, registe-se que, apesar de o espaço da CPLP constituir um dos palcos estratégicos da política cultural externa portuguesa, é imprescindível reavivar e intensificar os laços históricos e culturais que unem o país aos demais parceiros desta comunidade, para que a mesma não se esgote, como por vezes aparenta, na mera afinidade linguística. __________ 1 A partir de 1994, o IC passa a ser tutelado pelo MNE, superintendência que até esta data permanecia a cargo do ME. 2 Este galardão é atribuído conjuntamente, desde 1989, pelo Instituto Camões e o Instituto Nacional do Livro Brasileiro. 3 Encontram-se em fase de instalação mais nove Centros de Língua Portuguesa. Agradecemos a incansável colaboração da Dra. Ana Paula Duarte e do Dr. Jorge Encarnação.

Silent Night (José Carreras, Luciano Pavarotti, Plácido Domingo)

Frelimo: A emancipação da mulher num programa revolucionário

8 de dezembro de 2008

Silent Night (Bing Crosby, 1935)

O sonho do Pai Natal (Vaz Nunes)

O SONHO DO PAI NATAL O Pai Natal sonhou um sonho lindo, tão lindo que não queria acordar. E não queria acordar porque neste ano os Humanos encheram-se de boa vontade e fizeram um acordo de Paz, que silenciou todas as armas. Em todos os cantos do planeta, mesmo nos lugares mais recônditos da Terra, as armas calaram-se para sempre e os carros de combate e outras máquinas de guerra foram entregues às crianças para neles pintarem flores brancas de paz. O Pai Natal sonhou um sonho lindo, tão lindo que não queria acordar. E não queria acordar porque nesse sonho não havia fome: em todas as casas havia comida, havia até algumas guloseimas para dar aos mais pequenos. Mesmo as crianças de países outrora pobres tinham agora os olhos brilhantes, brilhantes de felicidade. Todas as crianças tinham acabado de tomar um esplêndido pequeno-almoço e preparavam-se para ir para a escola, onde todos aprendiam a difícil tarefa de crescer e ser Homem ou Mulher. O Pai Natal sonhou um sonho lindo, tão lindo que não queria acordar. E no seu sonho não havia barracas, com água a escorrer pelas paredes e ratos pelo chão, nem gente sem tecto, a dormir ao relento. No sonho do Pai Natal, todos tinham uma casa, um aconchego, para se protegerem do frio e da noite. O Pai Natal sonhou um sonho lindo, tão lindo que não queria acordar. E no seu sonho não havia instituições para acolher crianças maltratadas e abandonadas pelos pais nem pequeninos e pequeninas à espera de um carinho, de um beijo… de AMOR. Todas as crianças tinham uma família: uma mãe ou um pai ou ambos os pais, todas as crianças tinham um colo à sua espera. O Pai Natal sonhou um sonho lindo, tão lindo que não queria acordar. E no seu sonho não havia palavrões e outras palavras feias, não havia empurrões, má educação e desentendimentos. Toda a gente se cumprimentava com um sorriso nos lábios. Nas estradas, os automobilistas não circulavam com excesso de velocidade, cumpriam as regras de trânsito e não barafustavam uns com os outros. O Pai Natal sonhou um sonho lindo, tão lindo que não queria acordar. E no seu sonho não havia animais abandonados pelos seus donos, deixados ao frio, à fome e à chuva, nem animais espetados e mortos nas arenas, com pessoas a aplaudir. Mas, afinal, quando despertou verdadeiramente, o Pai Natal viu que tudo não tinha passado de um sonho; que pouco do que sonhara acontecia de verdade. Ficou triste, muito triste, e pensou: « - Afinal, ainda é preciso que, pelo menos uma vez por ano, se celebre o Natal!». E, nessa noite, o Pai Natal começou os preparativos para dar, mais uma vez, um pouco de alegria a todas as crianças do Mundo. Retirado de "Diário de Aveiro", de 2000/12/07 Adaptado por Vaz Nunes - Ovar

7 de dezembro de 2008

Elegia na morte de Samora Moisés Machel (Carlos Domingos)

ELEGIA NA MORTE DE SAMORA MOISÉS MACHEL (Poema inscrito no livro de condolências da Embaixada da República Popular de Moçambique) Não venho trazer-te flores, mas um grito. No teu sangue derramado lateja a minha dor e a minha raiva. Dentro de mim estremeceu o mundo e o mar ferveu, os sorrisos voaram em estilhaços e desmoronou-se a torre em construção. Agora estamos nus sob os escombros e a tua ausência é um vento frio soprando por dentro. Mas nada poderá deter-te, nem a morte! De súbito, surgiste ao nosso lado, sentimos a tua mão de confiança, continuas de pé, jovem, invencível, com a vitória a sorrir-te nos lábios. Nada poderá deter-nos, Samora Machel. As nossas mãos, a nossa voz, as nossas armas velarão a tua memória e arrancarão os frutos renitentes à terra ainda em flor. Carlos Domingos (22 de Outubro de 1986)

As cicatrizes da África na Moçambique de Mia Couto

AS CICATRIZES DA ÁFRICA NA MOÇAMBIQUE DE MIA COUTO Marcelo Spalding As feridas da África são profundas: cinco séculos de colonização, escravização do povo, exploração das minas, violências físicas e culturais como apagamento das tradições, dos cultos, das crenças, das línguas e das organizações sociais. Feridas tão profundas quanto antigas que impediram os países não apenas de se projetarem no mercado globalizado internacional como tiraram deles qualquer perspectiva de futuro. De presente. Vejamos o caso de Moçambique, uma nação que compartilha com nós, brasileiros, a mesma língua e a mesma colonização portuguesas. Em Moçambique – país independente há cerca de trinta anos e em paz há menos de quinze – mais da metade da população é analfabeta, 1,5 milhão de pessoas estão vivendo com o vírus da Aids e a expectativa de vida não supera os 50 anos. Um índice muito comentado por aqui, o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano da ONU), sintetiza bem essa realidade: enquanto Portugal ocupa a 28º posição com índice de 0,904, o Brasil está na 69ª posição com um IDH de 0,792 e Moçambique tem um índice que é metade do brasileiro, 0,390, e aparece como o 168º país menos desenvolvido entre 177 países pesquisados. Fadado ao ostracismo e esquecimento por aqueles que tomam decisões nas cadeiras da ONU ou do Banco Mundial, o país encontrou um meio de expressão na velha e européia literatura, que nas mãos de escritores africanos como Mia Couto ganhou variações formais, novas preocupações, novos conflitos e transformou-se em voz dos milhões de moçambicanos em situação de extrema miséria. Mas não espere de Mia Couto (jornalista, biólogo, ex-militante político e descendente de portugueses) densos romances criticando a condição de vida dos africanos ou acusações contra a colonização portuguesa. Mia evita tratar das questões sociais de seu país de nascença de forma panfletária, combativa ou mesmo direta, prefere o lirismo a que a literatura se permite, a sutil representação de personagens e enredos complexos em textos cheios de ironia, ambigüidade e questionamentos, textos feitos ao gosto do público pós-moderno que compra e lê livros – e que naturalmente não está em Moçambique. Dessa forma, o autor é um dos mais europeus dos africanos e ao mesmo tempo o que talvez mais faça pela situação miserável de seu país desde Vozes Anoitecidas, o primeiro livro de contos, em 1986, até O outro pé da sereia (Companhia das Letras, 2006, 332 págs.), romance lançado agora e com edição também no Brasil. Romance seguro de autor maduro, O outro pé da sereia consolida a forma Mia Couto de escrever – aqui com menos neologismos e mais espaço para ditos populares –, assim como recoloca a difícil retradicionalização africana no centro da narrativa. A questão fundadora das personagens, tanto do afro-americano que desembarca na Moçambique dos anos 2000 em busca do passado de seus ancestrais quanto dos filhos daquela terra que se esforçam por “inventar uma África” ao gosto do estrangeiro, é descobrir suas origens. Em momento avançado da obra um dos africanos dirá à esposa do estrangeiro: “Nós também não sabemos de onde viemos”; e eis a síntese da dificuldade que têm as pessoas e o país como um todo de se inserir num cenário internacional sem sequer reconhecer suas raízes. Sintomático dessa busca por raízes profundas é a divisão que o autor faz da obra em duas histórias paralelas, que alternam-se capítulo a capítulo: uma que conta a chegada dos estrangeiros na Moçambique de 2002 e outra com a viagem de um padre português e sua santa abençoada pelo Papa a uma Moçambique selvagem no ano de 1560. Quem liga as duas histórias é uma humilde camponesa, Mwadia, ao encontrar em 2002 a estátua e alguns escritos desse padre, D. Gonçalo da Silveira, e seguir rumo à cidade para abrigar a santa com segurança. Mas se você já leu o romance sabe que dizer que Mwadia liga as duas histórias é um exagero para uma mente racional como a de nosso leitor ocidental. Mwadia é um fio condutor com o qual o narrador costura (nem sempre de forma evidente, nem sempre de forma feliz) uma teia de acontecimentos, conflitos e personagens, permitindo que a obra trate ao mesmo tempo de política, relações pessoais, identidade, memória, permanência, pertencimento e morte. Nas pouco mais de trezentas páginas desfilam pelo menos dez protagonistas, que se alternam ao longo dos dezenove capítulos, todos com histórias complexas e muita ambigüidade, especialmente em relação a suas origens e personalidades, fazendo com que o leitor navegue em águas revoltas e sem segurança do seu destino. Fundamental para entender essa teia é ler as epígrafes dos capítulos, que como já é tradicional em Mia Couto são excertos de frases das personagens do romance. Em uma delas está expressa a sina que move o romance, as personagens e também o narrador: “Eis a nossa sina: esquecer para ter passado, mentir para ter destino.” Tal sina é muito bem representada em certa cena em que os moçambicanos apresentam para o afro-americano uma árvore conhecida como “a árvore das voltas: quem rodasse três vezes em seu redor perdia a memória, deixaria de saber de onde veio, quem era os seus antepassados. Tudo para ele se tornaria recente, sem raiz, sem amarras. Quem não tem passado não pode ser responsabilizado” (p. 276). Desta forma, esquecer o passado torna-se a única forma de suportar as dores e não abrir ainda mais as feridas, pois os africanos seriam obrigados a reconhecer, por exemplo, que não apenas os brancos escravizaram e mataram os negros como também os negros escravizaram e mataram os próprios negros. Por isso Mia Couto em sua obra vai além de questões político-sociais contemporâneas: acredita ele que para resolver os problemas moçambicanos – e de resto os problemas do continente – é preciso que o africano reencontre suas origens, suas tradições, seus cultos, suas crenças. Tal posicionamento explica porque em O outro pé da sereia não há apenas a história de Vila Longe e Mwadia no ano 2002, história por si só rica e interessante, mas também, intercalada, a história de D. Gonçalo em 1560: Mia aponta para este período como fundador da identidade africana, mas não para pensar num paraíso negro anterior à presença do branco nem para sugerir o pacifismo da raça negra, e sim para mostrar como a mistura estava acontecendo já àquela época com a presença de indianos, de tribos diversas e cultos diversos ao longo do enorme continente. Em suma, Mia se nega a inventar uma África exótica e disposta a tudo para voltar a viver como nos tempos idos. Mia se nega a falar de florestas e animais selvagens ou crianças morrendo famintas nas estradas de terra, optando por representar as profundas feridas – mais ou menos cicatrizadas – que perpassam não apenas a nação moçambicana mas todo o continente africano, antes tão explorado e agora tão esquecido pelos racionais e globalizados do ocidente. Ele tinha mãos calmas e as apoiava em cima do gravador. O tempo quente não o impedia de vestir uma camisa - fora rendido pelo calor, indicavam as leves dobras em cada manga. Ouvir a fita cassete, gravada em 29 de agosto de 2004 no Hotel Luzeiros, traz inevitavelmente à tona o ambiente da noite. A maciez da fita magnética premida pela pequena almofada traz mistérios, completa o ar de sons amortecidos, que agora ressoam novamente. As palavras do escritor moçambicano Mia Couto inundam o cômodo. A entrevista que irá se seguir a este texto foi feita na ocasião de uma viagem à Bienal Internacional do Livro de Fortaleza, em 2004. No entanto, a conversa com o escritor não havia sido publicada até o momento. Recuperada a fita cassete, transcrevi apenas as perguntas feitas por mim e respondidas por Mia, abstendo-me de incluir a parte de um jornalista de Pernambuco também presente. Em junho deste ano Mia Couto esteve novamente no Brasil, desta vez para lançar o livro O outro pé da sereia pela editora Companhia das Letras. Lá estavam, mais uma vez, as mãos em calmaria no teatro do Sesc Vila Mariana, onde Mia fez uma pequena conferência ao público, seguida de uma seção de autógrafos. António Emílio Leite Couto nasceu em 1955 na cidade de Beira, em Moçambique. O “Mia” é apelido que veio da infância. Trabalhou como jornalista dirigindo a Agência de Informação de Moçambique, a revista Tempo, e o jornal Notícias de Maputo; foi militante da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique). Atualmente trabalha como biólogo. O escritor foi editado no Brasil inicialmente pela Nova Fronteira, na década de 1990. As edições dos livros Terra sonâmbula, Histórias abensonhadas e Cada homem é uma raça estão esgotadas. Mais três livros foram editados nos últimos anos, desta vez pela Companhia das Letras: Um rio chamado tempo, uma casa chamada Terra, O último vôo do flamingo e O outro pé da sereia. Também vale a pena conferir livros do autor não-publicados no Brasil, no site da editora portuguesa Caminho Editorial. Elisa – Posso te chamar de António… Mia? Mia Couto – Ah, Mia! António já não existe [risos]. Elisa – Estive lendo algo sobre quinze livros ser a média de publicações por ano em Moçambique. Você sabe se esse número aumentou, se há hoje uma vida literária mais intensa no país? M. C. – Eu imagino que quinze livros é o que está a ser publicado agora. Quinze, vinte livros, que deve ser aquilo que o Brasil publica em meio dia ou algumas horas só, né? [risos] Uma situação recente esta, porque nós, até sete anos atrás, publicávamos só dois, três por ano. Então isso origina um círculo vicioso porque a pouca produção não estimula que novos valores nasçam. Mas é algo que eu acho que realmente é contingente, quer dizer, é uma herança de um país que, ao mesmo tempo, é um dos países mais pobres do mundo. Moçambique está dentre os dez mais pobres do mundo; e é também uma herança de uma guerra que demorou dezesseis anos e que paralisou por completo o pouco que havia. Então, nós estamos a sair disso, estamos emergindo de alguma coisa que foi uma espécie de uma noite apocalíptica quase. Elisa - Você acha que o país agora está caminhando para… M.C. – O problema é esse “para”. Está caminhando, mas está para onde? Não sabemos. Porque ali tudo é muito frágil, nós vamos ter eleições agora em novembro e o grande drama é este, uma eleição aqui é alguma coisa que não pode alterar profundamente muito, não precisa já ter rotinas, já tem procedimentos, tem esquemas que funcionam independentemente da política, quer dizer independentemente da política não tanto assim, mas que não estão tão dependentes da política como no nosso caso. No nosso caso, nós dependemos absolutamente do que vai a passar numa eleição. E isso pode terminar que este caminho, que é um caminho de estabilidade, que é um caminho de crescimento que temos tido desde… a independência foi em 1975, depois tivemos paz em 92, desde 92 nós temos um caminho que é um caminho de crescimento, de consolidação desta paz. E esta turbulência que o país foi vivendo é tão ligada à vida de cada um, que nossos escritos percorrem um caminho que é quase paralelo a isso. No meu caso, por exemplo, eu escrevi aquilo que era antes da guerra, durante a guerra, depois da guerra. Os meus livros seguem muito próximos a essa espécie de crônica do fazer e desfazer de um país. Elisa – Você sempre morou em Moçambique? M.C. – Sempre morei em Moçambique. Mesmo durante a guerra eu nunca saí. Elisa – A gente aqui no Brasil tem uma visão da África que muitas vezes é estereotipada. Agora, qual é a visão que você acredita que Moçambique tem do Brasil? M.C. – Olha, há visões diferentes. Mas em geral é uma visão estereotipada também, né? Eu acho que os moçambicanos em geral, os moçambicanos urbanos, sabem o que é o Brasil, sabem que há o Brasil, sabem um bocadinho da história do Brasil, sabem que o Brasil fala português. E mesmo os menos escolarizados têm essa consciência de que está ali alguém da família do outro lado. O reverso já não é tão verdadeiro, eu vejo que muitos brasileiros com quem eu falo na rua, etc, quando eu me apresento como moçambicano, eles às vezes perguntam, “Moçambique”? E perguntam coisas extraordinárias, sobre onde é que fica… Ambos os que olhamos para o outro lado e vemos alguma coisa, vemos alguma coisa que não há. Vemos um Brasil que não há, vocês vêem um Moçambique que não há; mas os que vêem, mesmo essa imagem mistificada, são mais os moçambicanos que têm esse acesso a um Brasil. Há que se dizer, por exemplo, o moçambicano comum, o que ele sabe do Brasil é um bocadinho daquilo que o Brasil sabe exportar, sabe exportar a si mesmo. E conhece muito da música, embora provavelmente não seja a de maior qualidade, mas conhece, sabe o que se passa. Os discos mais vendidos em Moçambique, a música mais ouvida na rádio é provavelmente música brasileira. As novelas chegam lá, chega lá a Igreja Universal do Reino de Deus, um grande canal de comunicação [risos] internacional. Elisa – Que tipo de música chega até lá? M.C. – Olha, uma das cantoras mais vendidas é a Roberta Miranda, por exemplo. Duplas sertanejas, Chitãozinho e Xororó… era o Roberto Carlos, foi o Nelson Ned, estes nomes assim, Agnaldo Timóteo. Chegam estes com uma certa hegemonia, depois os outros como o Chico [Buarque], como o Caetano [Veloso], como o Milton [Nascimento]… tocam um pequeno grupo só, não são tão populares assim. Algumas canções deles conseguiram, mas não têm a popularidade que têm estes outros cantores. Elisa – Mia, eu queria muito ter lido alguma coisa de sua poesia para hoje… [no entanto não pude ter acesso ao livro de estréia de Mia Couto] M.C. – Melhor não… [risos] Elisa – Você não gosta mais da sua poesia? M.C. – Eu fiz um livro de poesia só. Foi o meu primeiro livro, chama-se Raiz de orvalho. Foi publicado em Moçambique e depois em Portugal. Eu não me revejo muito ali, eu acho que eu sou um poeta que escreve em prosa. O que eu estou fazendo é poesia, em grande medida. Aquela é uma poesia datada, eu queria dizer qualquer coisa contra o que estava passando e o verso era a minha arma. Mas não, não me envergonho, mas não acho que é a melhor maneira de começar por travar conhecimento com a minha escrita. Elisa – Você acredita que escreve uma prosa poética? M.C. – Ou uma poesia em prosa. Quem sabe o que é que é uma coisa e outra, onde é que está a fronteira, né? Mas eu me considero um poeta, por exemplo, se me dissessem que eu sou um escritor, eu tenho uma certa resistência, se alguém me disser que eu sou um poeta, eu acho que isso me honra muito. Elisa – Como foi pra você essa transição da poesia para a prosa, apesar dessas relações? M.C. – Eu era jornalista naquela altura, tanto que eu comecei a trabalhar como jornalista em 74. E por volta de 85, eu já tinha percorrido muito do meu país, das zonas interiores, aquilo que é o nosso sertão, que lá se chama savana. E eu recolhi muitas histórias, enfim, uma instigação forte daquilo que eram as vozes rurais que ecoavam na minha cabeça. E eu escrevi o primeiro livro de contos que se chamava Vozes anoitecidas, exatamente porque era um livro de vozes, era alguma coisa que me chegava do outro lado do mundo e que, digamos, que estavam veladas pela noite e que a minha operação era simplesmente desocultar isto. Eu não era um autor, eu era uma espécie de caixa de som. E essa foi a minha forte motivação para passar a contar histórias e contá-las usando a prosa, mas sendo uma prosa premiada pela poesia. Elisa – Que é seu grande diferencial… M.C. – Ah, eu não sei fazer de outra maneira. Não é um mérito, eu não sei fazer de outra maneira. Elisa – Então, você acha que o jornalismo talvez tenha te ajudado de alguma forma a caminhar para a prosa? M.C. – Eu acho que o jornalismo ajuda muito a perceber como é que se comunica com os outros, mas é um mestre que tem que se matar rapidamente porque senão nos aprisionam num certo tipo de linguagem, e nós ficamos olhando os outros de uma maneira que eu acabo por não gostar. Uma das razões pela qual eu deixei o jornalismo foi porque entrei em ruptura com certos tipos de atitude. Como posso explicar? Não fiquem magoados comigo porque eu ainda sou jornalista, nunca deixei de ser jornalista. Mas ali há uma certa tentação de arrogância, quer dizer, o jornalista não tem tempo. Não tinha o tempo que eu queria. Nós somos enviados para um lugar ou para um acontecimento e não podemos telefonar para a redação dizendo “olha, eu preciso de um mês para ganhar o espírito e para ir fundo, para mergulhar nas coisas”. Ninguém nos autoriza a uma coisa dessas. Então, isto é um certo convite à uma certa mentira, pois temos que dizer que somos supostos transmissores de uma certa idéia do mundo. E tinha uma outra coisa, ter mais tempo, viajar mais fundo, não ir a correr nesta espécie de ditadura do estar lá e estar em cima do acontecimento. Essa idéia de tempo é uma idéia fatal, é uma idéia que nos acaba por matar. Elisa – Mia, queria pensar numa questão, você se considera um escritor moçambicano ou um escritor português nascido em Moçambique? M.C. – Não, sou um escritor moçambicano, eu não me considero português. Quer dizer, eu sei que eu tenho um lado português, mas não sou português. Não por uma razão de nascimento no sentido geográfico, mas porque eu só me concebo… aquilo que me falta ainda nascer só pode nascer lá [Moçambique], nesse sentido. As vezes que eu nasci, todas elas foram lá e acho que ainda eu vou nascer, são lá. É mais nesse território da fé, no território da minha geografia cultural que está ali em Moçambique. Obviamente não tenho nenhuma briga com aquilo que é minha herança portuguesa, gosto dela. Se há alguma coisa que eu possa dizer que eu sou, eu sou dali, daquela Moçambique, sim. Elisa – Há escritores brasileiros que você sente ter influenciado sua obra? Ou o que escreve veio apenas de si, um jeito seu? M.C. – Ah, não, não, um jeito meu, não. Agora é meu, mas começou por ser de outros. É uma influência muito marcada por João Cabral de Melo Neto, pelo [Carlos] Drummond de Andrade, pelo Manoel de Barros, pelo Guimarães Rosa. Eu deixei por último este, embora seja a influência que mais me fascinou. Eu comecei escrevendo recriando o português muito na esteira daquilo que pessoas como o Guimarães Rosa fez. Mas sem saber que existia o João Guimarães Rosa. Eu conhecia alguém que foi muito influenciado por ele, que foi Luandino Vieira, um angolano, que depois numa entrevista que eu li, escreveu que ele tinha sido marcado pelo Guimarães Rosa. Eu comecei a perseguir este Guimarães. E aquilo foi um incêndio, foi uma coisa cataclística. Muito importante pra mim, impressionante como uma espécie de caução, havia ali um sancionar, é possível fazer isto, há uma luz verde. Mas não é um caso que acontece só comigo, acho que a literatura moçambicana, toda ela, está marcada por uma influência brasileira fortíssima e muitas vezes mais forte do que a portuguesa ou qualquer outra africana. Elisa – Por que acha que isso aconteceu? M.C. – Porque a maneira como a língua brasileira, variante da língua portuguesa, se aproxima mais de nós, da maneira como uma outra cultura está a trabalhar na língua portuguesa e, portanto ela tem que reformular, tem que vestir de uma outra forma. E quando nós descobrimos o Brasil, nesse sentido, foi como uma descoberta de nós próprios. E o Brasil tinha, desde o Manuel Bandeira, o Mário de Andrade, essa preocupação também de encontrar linhas de ruptura com a literatura portuguesa, com a língua portuguesa. Havia esta idéia do abrasileiramento da linguagem, que era a nossa preocupação também, nós vamos buscar socorro à literatura brasileira durante muito tempo. Depois foi Jorge Amado, Graciliano Ramos, a Rachel de Queiroz, num ou noutro momento, foram fontes de inspiração muito, muito grandes. Não há escritor moçambicano, não há geração de escritores moçambicanos que não tenha vindo beber aqui com muita força. Eu sempre digo isto porque é uma espécie de homenagem que eu faço a vocês, ao Brasil. Elisa – Quero falar um pouco sobre o Primeiras Estórias e seu livro da Companhia das Letras, eu sempre confundo o nome, é Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra… M.C. – Sim. Eu também confundo. Elisa – Enquanto eu estava lendo o livro, pensei na “Terceira margem do rio” [conto do livro de Guimarães Rosa], o rio é a parte central, e no seu livro o rio também é um elemento bastante importante, não é? É esse componente do maravilhoso que vejo, assim como no Guimarães. M.C. – É provável que haja qualquer coisa ali, não refuto, mas acho que ali há duas coisas. A primeira coisa é que eu atravessava um rio, durante três anos trabalhei numa estação de biologia que ficava na outra margem do Maputo e era preciso atravessar o estuário do rio para chegar ao outro lado, e eu não sabia nadar, não sei nadar até agora. E aquilo pra mim era uma viagem, sei lá, num limiar, era uma viagem numa condição extrema. E esse outro lado, é aí que eu fui buscar a minha inspiração para construir essa pequena vida onde se passa essa história, o Luar-do-Chão. E depois, o maravilhoso é uma coisa que está completamente presente na realidade moçambicana, a fronteira entre aquilo que nós podemos dizer que é o fantástico e a realidade está toda reformulada lá. Portanto, eu acho que mesmo que um escritor moçambicano não tenha nenhuma relação com qualquer autor, eu não falo no Guimarães Rosa, mas qualquer autor latino-americano da escola do realismo mágico… ele só pode fazer isso, ele não pode escrever de outra maneira porque ali, aquilo que é percepção do mundo, aquela racionalidade é uma outra racionalidade. Os meus colegas que são bons cientistas, que são geneticistas, são gente da ciência, da linha de ponta da ciência, se lhe dissessem que de noite tu conversas com o mar eles acreditam que é possível. Elisa – Neste livro, por exemplo, você tem tanto o componente rural, quanto o urbano. M.C. – Em tantos livros passa sempre essa questão desse trabalho de alfaiate, dessa costura, dos mundos distintos que hoje existem em Moçambique, que não se conhecem, que nem sequer sabem como falar uns com os outros. Então, o mundo rural e o mundo urbano, meio que são mundos que se desconhecem. E, provavelmente, se é que a escrita tem alguma missão, o que os escritores podem fazer é desfazer, dissolver esses medos. Até convidar, neste sentido que essa viagem nos dá intenso prazer de entrar com realidade, urbanidade. E, entrar modernidade e a tradição, é uma espécie de convite para que os outros façam essa viagem sem temor. Uma coisa que me aflige, que me aflige muito, é que Moçambique passou estes dezesseis anos de guerra, perdeu um milhão de pessoas e nós somos só dezessete milhões, portanto foi um momento muito sofrido, um momento de luto. Nós ainda não fizemos o luto e de repente Moçambique esqueceu-se, se fores hoje a Moçambique ninguém fala do que se passou. É uma esponja que passou ali, não há resquícios. E isso não é bom, quer dizer, isso significa que nós perdemos aquilo que deixou de ser nosso, nós temos que ter acesso àquela memória. E os escritores podem ter aqui um outro papel ao escrever, ao abrir portas, ao fazer uma espécie de catarse sobre esse momento. Elisa – Tem muito, então, de autobiográfico nesse livro? M.C. – Sim, esse Marianinho sou um bocadinho eu [risos]. Eu também nunca conheci um avô meu, então é uma espécie de tentativa de escrever a minha própria história. Elisa Andrade Buzzo São Paulo, 14/9/2006

Maputo - Avenidas: 24 de Julho, Brito de Camacho e o Liceu Salazar (2005)

Maputo - Avenidas: Craveiro Lopes, Augusto de Castilho e Pinheiro Chagas (2005)

4 de dezembro de 2008

2 de dezembro de 2008