10 de junho de 2021

Moçambique: Mouzinho, herói em Chaimite

 


Mouzinho de Albuquerque escreveu uma página de ouro na história de Portugal. À frente de um punhado de soldados, penetrou no reduto da revolta anti-lusitana e capturou o imperador vátua, Gungunhana. Enquanto o “Leão de Gaza” era levado preso para Lisboa, o herói concluía a pacificação de Moçambique.

Apesar da cedência do Governo ao humilhante Ultimato britânico de 1890, que impusera a retirada do nosso país dos territórios entre Angola e Moçambique incluídos no chamado Mapa Cor-de-Rosa, os ingleses continuaram a manobrar contra a presença portuguesa na África Oriental.

Em 1894-1895, agentes britânicos baseados na África do Sul incentivaram – e financiaram – a revolta dos vátuas, indígenas do sul de Moçambique, que chegara a ameaçar a própria capital, Lourenço Marques.

As tropas portuguesas, comandadas pelo comissário régio António Enes, contra-atacaram, conseguindo, em Novembro de 1895, conquistar Manjacaze, a principal praça-forte do imperador vátua, Gungunhana, que retirou para Chaimite, no território moçambicano de Gaza. António Enes pediu a Lisboa reforços para concluir a pacificação de Moçambique – e, na falta de uma resposta satisfatória, apresentou a demissão.

Sucedeu-lhe no comando das operações o então capitão Mouzinho de Albuquerque, nomeado, a 10 de Dezembro, governador militar da província de Gaza. Mouzinho decidiu então dar um golpe de mão audacioso.

À frente de poucas dezenas de soldados de cavalaria e umas centenas de auxiliares africanos, internou-se no mato e, ao fim três dias de marcha, pôs cerco a Chaimite, a “capital” vátua, onde residia Gungunhana.

Às 7 da manhã do dia 28 de Dezembro, Mouzinho de Albuquerque entrou no povoado através de um pequena abertura na paliçada, à frente dos militares portugueses. Os cerca de 300 vátuas que compunham a elite guerreira dos insurrectos – armados de espingardas fornecidas pelos ingleses – fugiram sem disparar um tiro.

Filha de Franco Nogueira doa espólio nunca visto por historiadores (Bárbara Reis)

 


É o maior espólio alguma vez oferecido ao arquivo do Instituto Diplomático. São milhares de documentos, talvez mais de um milhão. O PÚBLICO leu algumas centenas.

Rodeada por dragões chineses e cartas secretas do Estado Novo, Aida Franco Nogueira abre caminho pela sala-de-estar do apartamento onde o seu pai foi preso no Verão Quente de 1975. É preciso andar com cuidado. Os caixotes, arquivadores, sacos, pastas, malas e torres de papel cobrem tudo em todas as direcções. E as marquises estão cheias.

Vinte e cinco anos depois da morte de Alberto Franco Nogueira, leal ministro e amigo de António de Oliveira Salazar, a filha decidiu doar o seu espólio ao Arquivo Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE). O gesto será formalizado na cerimónia de evocação dos 100 anos do nascimento do diplomata, hoje às 18h, na Biblioteca da Rainha, no Palácio das Necessidades.

O auto de doação não é minucioso — seriam necessários anos de trabalho. Na casa do Restelo, em Lisboa, para onde a família Franco Nogueira se mudou em 1968, há centenas de milhares de documentos, talvez mais de um milhão. Todos, menos a correspondência privada (como as cartas trocadas entre Alberto e Vera Wang Franco Nogueira, a sua mulher), são património do Estado a partir de hoje e, dentro de alguns meses, estarão disponíveis para consulta pública.

À excepção das pessoas a quem o próprio Franco Nogueira possa ter mostrado os seus papéis, o espólio nunca foi lido por nenhum historiador ou especialista. Há investigadores que procuram há anos documentos concretos do último chefe da diplomacia de Salazar — e rosto oficial da defesa do colonialismo na década de 1960, quando a ideia já era tida como inaceitável e anacrónica pela maioria dos Estados-membros das Nações Unidas.

Aida Franco Nogueira, que trabalhou na PLMJ durante 20 anos e hoje é advogada independente e tradutora, começou há dois meses a organizar os papéis do pai. O espólio atravessa meio século e vai, pelo menos, de 1946 a 1990. “Infelizmente, o meu pai não era muito organizado. Sabia onde estava cada papelinho e notava sempre que alguém mexia em algum, nem que fosse para o endireitar. Mas cá em casa o escritório foi sempre conhecido como ‘o caos’: ‘Está no caos’, ‘aqui é o caos’...”

A primeira tarefa foi agrupar a documentação em grandes temas: a pilha dos papéis “secretos”, “secretíssimos” e “confidencialíssimos”, a pilha dos originais de livros publicados, a pilha dos manuscritos de livros com títulos desconhecidos, a pilha da correspondência com a família, a pilha da correspondência política, a pilha das cartas do exílio em Londres, a pilha da crise de Goa, a pilha dos recortes de imprensa, a pilha dos discursos, a pilha das Nações Unidas, a pilha das fotografias… “Não tenho um sistema. Vou vendo o que são os papéis e vou abrindo pilhas novas. Quero dar os papéis ao Arquivo Diplomático minimamente organizados.”

O estilo, a garagem e o homem

A tarefa é difícil por três razões. A primeira é o estilo de Franco Nogueira, que parece ter-se preocupado pouco — ou nada — com o futuro dos seus papéis. “O meu pai tinha zero de arquivista”, diz a filha.

Após ler centenas de cartas e telegramas — uma ínfima parcela do espólio —, fica-se com a ideia de que os papéis são a acumulação de anos de despacho quotidiano e que não foram guardados com uma intenção ou para memória futura. Não parece, também, terem sido seleccionados para a escrita dos muitos livros que o diplomata publicou — o último em 1992, pouco antes de morrer. Mas isso só será possível confirmar com a leitura do conjunto.

Sem complexos, Instituto Diplomático homenageia ministro de Salazar (Bárbara Reis)



Nos 100 anos do nascimento de Franco Nogueira, último ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar, família doa espólio de centenas de milhares de documentos que nunca foram lidos por nenhum historiador.

Convencido de que a “política africana” do regime de Oliveira Salazar não era realista, em 1964 — quando a guerra em Angola ia no terceiro ano e o regime perdera o apoio de muitos aliados — o jovem diplomata Francisco Grainha do Vale pede uma audiência com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Alberto Franco Nogueira.

“Achei que devia dizer alguma coisa, por uma questão de lealdade”, conta o agora embaixador reformado, de 86 anos. Franco Nogueira, que defendia o colonialismo com paixão, aceitou e ele, “com cuidado, disse-lhe que ser ministro era muito interessante, mas que havia dificuldade em atingir o resultado”. Resposta: “Mas o que quer que eu faça? Quer que entregue Angola aos americanos ou aos russos?”; “estava a pensar mais numa solução diplomática, que não fosse tão drástica”; “enquanto nós lá estivermos, temos que ter a porta bem fechada: sugere que se entreabra a porta. No dia em que fizermos isso, é o desastre”. Na sala estavam o ministro da Defesa e o secretário de Franco Nogueira, António Bandeira. É ele quem, depois de os ministros saírem, lhe pergunta: “’E agora, para onde é que vais?’ E eu respondo: ‘Estava a pensar ir jantar a um bistrô na Ópera.’ E ele: ‘Não é isso: para onde é que vais trabalhar? Depois do que disseste ao ministro, vais ter de sair da carreira!’.”

Francisco Grainha do Vale, que tinha 32 anos, conta o episódio na Biblioteca da Rainha, no Palácio das Necessidades. Os seus colegas embaixadores — alguns dos quais trabalharam com Franco Nogueira e eram amigos dele — estão a sair. A sala encheu-se para a cerimónia de evocação dos 100 anos de nascimento do último chefe da diplomacia de Salazar mas, de todos os que ali estão, ele terá sido o único a questionar frontalmente aquilo que, no Estado Novo, se chamava “política ultramarina”. “O que mais me impressionou é que, nos anos a seguir, sempre que nos cruzávamos num corredor, ele vinha falar comigo, um mero 1.º secretário de 30 anos, para discutir alguma notícia do dia que tinha lido nos jornais.”

Na sua intervenção no púlpito, o embaixador Marcello Duarte Mathias falou da “alma livre e espírito independente” de Franco Nogueira, “à semelhança de tantos que nesta casa serviram Portugal”, e sublinhou como sendo “saudável” a evocação organizada pelo Instituto Diplomático, que funciona na parte sul do Ministério dos Negócios Estrangeiros. “É corajoso. Vivemos no politicamente correcto e no ortodoxo. Como serviu o Estado Novo, há logo reservas. Mas foi um grande diplomata e deve ser homenageado.”

O reencontro da filha e do pai que Salazar e Mao separaram (Leonídio Paulo Ferreira)

 


Vera Wang era filha de um chinês e de uma portuguesa. Com o pai preso na China, refugiou-se no Japão. Conheceu lá Franco Nogueira, futuro MNE de Salazar, e casaram-se. Só depois do 25 de Abril conseguiu rever o pai. Quem contou a história foi Aida, a filha, em artigo hoje republicado porque é lançado o livro Tóquio, Diário 1946, de Franco Nogueira, sobre esse ano que conheceu o Japão e a sua Vera.

Aida Franco Nogueira mostra-me a foto dos avós maternos. Uma lindíssima jovem portuguesa e um atraente diplomata chinês, com o cabelo puxado para trás graças à brilhantina, que tinha vindo em missão a Lisboa. Otília Machado Duarte e Wang Shuyao. Conheceram-se numa festa, dançaram toda a noite, apaixonaram-se e casaram-se, alheios à diferença de culturas, embora ele ser católico tenha facilitado o sim. O retrato a preto e branco, agora protegido por uma moldura de vidro, exibe um pequeno rasgão, como que a relembrar que passou quase um século desde aquela inesperada paixão em Lisboa na década de 1920 que acabou por se transformar numa história trágica de separação, com a política a ter muitas culpas.

Apanhado na China pela invasão japonesa e pela guerra civil entre nacionalistas e comunistas, o casal teve de se separar. Wang foi mesmo preso, mas ainda conseguiu enviar Otília e as duas filhas, Vera e Teresa, para o Japão, como refugiadas. Seguiram-se décadas de separação, e Otília, professora de Francês, morreu sem nunca reencontrar o marido. Vera, a mais velha das filhas, foi quem um dia conseguiu ir a Xangai rever o pai, já muito frágil. Como o destino fez que a luso-chinesa se casasse com Alberto Franco Nogueira (que viria a ser ministro dos Negócios Estrangeiros), enquanto Salazar e Mao viveram e Portugal e a China estiveram de relações cortadas, nada pôde ser feito. Foi preciso acontecer o 25 de Abril e voltarmos a ter representação diplomática em Pequim para que uma filha e um pai separados há 35 anos se revissem.

"A minha mãe estava emocionadíssima com a viagem à China. Mas ela, com a dignidade habitual, nunca mostrou exuberância nos sentimentos, percebe? Nunca chorou, nunca riu, mas estava emocionada, claro! E eu, à pressa, arranjo dois álbuns das minhas filhas - o da Filipa foi um bocadinho maior porque ela já tinha 14 meses e mais fotografias do que a Joana que nascera havia três meses. A minha mãe levou em 1981 esses álbuns para mostrar as bisnetas. Ele nunca as conheceu, nem a mim", conta Aida, sentada num sofá numa salinha cheia de fotografias de família, várias dos já três netos. Numa estante alguns livros de encadernação antiga que pergunto se eram do pai, advogado como ela, mas que afinal pertenceram ao avô paterno, juiz. A conversa é num sétimo andar no Restelo, no mesmo prédio onde Alberto Franco Nogueira e Vera Wang Franco Nogueira viveram.

Franco Nogueira e Salazar: dois nacionalismos (Jaime Nogueira Pinto)


No centenário do nascimento de Alberto Franco Nogueira

Conheci pessoalmente Alberto Franco Nogueira no Outono de 1969, tinha ele deixado o Ministério dos Negócios Estrangeiros e sido eleito deputado como independente na lista da União Nacional. Falámos pela primeira vez na sede da Companhia do Caminho de Ferro de Benguela, de que acabara de ser nomeado administrador. Tinha lido o primeiro número da Política que eu dirigia, e queria conhecer-me. Eu tinha começado a publicação da Política naquele tempo de transição do regime, de Salazar para Marcelo Caetano.

Estava no centro do debate político a reforma ou liberalização do Estado Novo, ou do salazarismo, porque a partir da vitória das democracias anglo-americanas e da União Soviética, em 1945, o Estado Novo passara a ser, com o franquismo, um regime exótico na Europa ocidental. Um regime que sobrevivera muito graças à vontade, à determinação e ao sentido político do próprio Salazar, aproveitando a conjuntura internacional criada pela Guerra Fria. E dado o poder dos comunistas na Europa Ocidental e na oposição portuguesa, as potências anglo-saxónicas abstiveram-se de o tentar derrubar e o regime aguentou-se.

E depois, Portugal não era Espanha: enquanto o franquismo tinha um caudilho militar vitorioso de uma guerra civil dura de três anos, tinha instituições e uma competição política acirrada dentro da classe governante, (neo-falangistas, monárquicos afonsistas e carlistas, católicos conservadores e liberais, da Opus Dei e fora dela), em Portugal não havia a mesma vida ou tensão ideológica e as divisões eram mais entre grupos ou mesnadas ligadas aos "barões" do Regime. A doutrina política e a política eram com Salazar. E Salazar era um nacionalista conservador e católico de uma extrema racionalidade e pragmatismo, que avaliava com realismo e frieza os seus compatriotas, partidários e colaboradores. Sabia com o que contava e o que valiam.

Assim, mais até por ausência de outras instituições e protagonistas, o Presidente do Conselho e chefe do Governo foi moldando e desenhando o Estado Novo à sua vontade e imagem. A ambiguidade institucional era inerente à própria auto-designação do regime, que se definia como uma "democracia orgânica".

A tradição ideológica da direita portuguesa seguiu sempre os modelos clássicos da direita europeia, sobretudo francesa: o conflito entre o liberalismo e o tradicionalismo traduzira-se na luta dinástica e fratricida entre os filhos de Dom João VI, D. Pedro e D. Miguel; e a vitória do liberalismo constitucional em 1834 fora também determinada pela mudança da conjuntura internacional em 1830, com a queda dos legitimistas em França e dos conservadores do duque de Wellington na Grã-Bretanha. A balança da Europa decidia muita coisa.