15 de setembro de 2021

Destruir o Padrão dos Descobrimentos é um disparate (António Cardoso)

Destruir o Padrão dos Descobrimentos, por ser um “monumento ditatorial”, seria um crime lesa-Pátria

O Deputado do Partido Socialista, Ascenso Simões expressou na comunicação social, que o Padrão dos Descobrimentos deveria ser demolido, enquanto “monumento do regime ditatorial”. O país ficou escandalizado, com tamanha besteira, proferida por um alto Representante da Nação!

Durante vários anos, fui seu colega de bancada, na Assembleia da República, onde pude constatar a inteligência das suas intervenções parlamentares, pelo que fiquei estupefacto e preocupado com as considerações feitas sobre a sobre um monumento que marca no passado, a presença imperial de Portugal nas colónias ultramarinas. Como era esperado, gerou-se uma onda de indignação, com natural mal-estar, envolto em reações de profunda rejeição, considerando essas considerações vergonhosamente infames à nossa história.

O Senhor Deputado Ascenso Simões, como representante dos portugueses, foi longe demais ao classificar o Padrão dos Descobrimentos, como um "mamarracho", que num país respeitável, devia ter sido destruído. Classificar o Padrão dos Descobrimentos, como um mamarracho, é uma opinião pessoal discutível por mais bizarra e infeliz que a possamos considerar. Agora, propor a destruição de um património histórico edificado, é uma ideia pré-histórica, que envergonha a história de Portugal, país moderno, civilizado e orgulhoso do seu passado.

Ao ser citada por um alto responsável político, pode perigosamente ser comparada como uma “regressão civilizacional”, semelhante às invasões muçulmanas do século VI, que levaram a arrasar edifícios públicos e religiosos em Mérida, depois da queda do Império romano cuja motivação foi o “fanatismo religioso”.Já agora, a mesma motivação levourecentemente, no final do século XX, as milícias islâmicas Taliban, a dinamitar a cabeça da estátua de um Buda, com cerca de 55 metros de altura, depois de ter já destruído outras estátuas património histórico, alusivas à religião budista, no Iraque. Estas antigas esculturas de arenito, de um valor histórico incalculável, datadas do século VI, chocaram o mundo, ao serem destruídas, abrindo um precedente de vandalismo sobre muitas outras antiguidades iraquianas, pelo mesmo autodeterminado “Estado Islâmico”, que recorreram ao terror para mostrar poder, amedrontando populações, cuja motivação foi o “fanatismo religioso”.C WORLD SERVICE

Na onda destes chocantes episódios de destruição de símbolos históricos, marcas negras na história da humanidade, só faltava que Ascenso Simões, por “motivação política”, defendesse a demolição de um monumento edificado no centro da capital, dedicado ao Marquês de Pombal, figura marcante do século XVIII, considerado por muitos como um governante ditatorial sanguinário!

Feita esta introdução, apesar do estado de pandemia que o país atravessa, não podemos ficar indiferentes aos efeitos desencadeados por esta aberrante declaração política, sem condenar este lamentável incidente, cujas repercussões públicas, só servem para fortalecer os extremismos dos movimentos radicais. Mais, a proliferação de casos semelhantes, traduzem casos perigosos que estão a enlamear a opinião pública, como estão a ser as recentes declarações prestadas por responsáveis políticos, que afirmam que “temos democracia a mais”, ou que “o país está amordaçado”, etc. casos que devem ser repudiados com a nossa maior indignação.

Portugal assiste a movimentos perigosos, que só podem ser neutralizados através de ações de valorização da cidadania, que honrem orgulhosamente a herança que recebemos dos nossos antepassados, que tudo fizeram por engrandecer Portugal.

Quer seja a nível nacional ou local, temos que preservar a identidade das nossas gentes, usos e costumes das nossas terras, valorizar o nosso património histórico e cultural. Temos que ser combatentes activos de defesa e afirmação do nosso passado, rejeitando as tentativas de destruição das referências identitárias de um povo.

A preservação histórica de lugares, caminhos, mamoas, pegadinhas, espigueiros, crastos, alminhas, parques florestais, nascentes, rios, açudes, moinhos, caminhos de cabras, florestas, montanhas, fauna, flora, usos e costumes, tradições, (folclore, dança, música), desporto, histórias, lendas etc. são referências da identidade de uma comunidade que fazem a sua história!… 

Resumindo, devemos repudiar todos aqueles que atentam contra o nosso património histórico, legado deixado pelos nossos avós, que deve ser preservado de forma intocável e imortal.

Fonte: Correio da Feira, 29 Março 2021

Padrão dos Descobrimentos. A nau da discórdia (Maria João Martins)

Construído em materiais perecíveis em 1940, para a Exposição do Mundo Português, o Padrão dos Descobrimentos tornou-se parte da paisagem ribeirinha de Belém em 1960. O deputado Ascenso Simões "envolveu-o" numa polémica.

Teve imponência e beleza a cerimónia de inauguração do Monumento dos Descobrimentos", lia-se na primeira página do Diário de Notícias de 10 de agosto de 1960. "Os chefes de Estado do Brasil e de Portugal, os ministros e embaixadores estrangeiros", continuava o repórter no local, "os chefes de missões especiais, todas as entidades que se deslocaram ao nosso país para assistir ao ciclo maior das comemorações, assim como os membros do governo e as mais altas entidades, assistiram à cerimónia inaugural do Padrão dos Descobrimentos, na Praça do Império defronte do Tejo."

Momento alto das comemorações do quinto centenário da morte do infante D. Henrique, que passaram ainda pela realização de congressos internacionais e o lançamento de várias edições de luxo, a data da inauguração do monumento fora escolhida em função da visita de Estado do Presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek (que ocupou o cargo entre 1956 e 1961). Chamado, como impunha o protocolo, a discursar na cerimónia, Kubitschek diria ser "o mar a base da glória de Portugal", mas não deixava de frisar: "Exaltamos os nossos heróis pretéritos, não declinamos porém, do dever de participar dos eventos do nosso tempo."

Com esta caravela estilizada, levando à proa o infante D. Henrique, o grande patrono das viagens de descoberta que pessoalmente nunca foi mais longe do que Tânger, o governo atribuía caráter definitivo, através do betão e da cantaria de pedra rosal de Leiria, ao monumento em gesso e outros materiais perecíveis que, 20 anos antes, integrara a Exposição do Mundo Português. No final dos anos 1930, o monumento começou a ser pensado pelo arquiteto (mas também realizador de cinema, figurinista e até autor de banda desenhada) Cottinelli Telmo como uma homenagem ao infante D. Henrique, na sequência de vários projetos e concursos idealizados para Sagres, sem que nenhum chegasse a ser construído. Por ocasião da Exposição do Mundo Português - de que Cottinelli Telmo foi arquiteto-chefe -, esta intenção daria lugar ao Padrão dos Descobrimentos, celebrando não apenas o infante mas também outras grandes figuras dos Descobrimentos esculpidas por Leopoldo de Almeida (ao todo, são 35): entre outras, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Fernão de Magalhães, Bartolomeu Dias, Diogo Cão, o infante D. Pedro, Filipa de Lencastre, Camões, Gil Eanes ou Nuno Gonçalves.

Segundo Leitão de Barros, realizador de cinema, mas também cenógrafo e cunhado de Cottinelli Telmo, tudo teria nascido numa das visitas de Duarte Pacheco, ministro das Obras Públicas, ao ateliê do arquiteto e de uma sugestão do próprio Leitão de Barros, que anos depois evocaria o momento na revista Turismo: "Acho que é uma "Exposição dos Portugueses", que foram ao mundo inteiro - resmunguei eu. Tem muitos palácios, muitos pavilhões parados, muitas relíquias... Mas falta-lhe o sentido de PARTIDA! É estática, vertical, terrestre. Ao contrário, eu quereria alguma coisa que desse a sensação de deslocação, de movimento, de arranque para a aventura. Mais D. Henrique - e menos para o seu homónimo D. Duarte"...

Erguido em oito meses, o Padrão foi considerado uma peça emblemática da Exposição do Mundo Português, e foi amplamente elogiado por críticos de vários quadrantes estéticos e políticos como Fernando de Pamplona, na revista Ocidente, a Costa Lima, na Brotéria, ou mesmo por Adriano de Gusmão no jornal O Diabo, que já nessa ocasião desejou, como outros, vê-lo "para sempre transposto para o mármore ou granito". Esclareça-se que O Diabo, que teve diretores como o escritor Ferreira de Castro, era um jornal tão pouco alinhado com o regime que viria a ser definitivamente encerrado pelo governo em dezembro desse ano de 1940.

O caráter provisório desse primeiro padrão ditou a sua remoção do local em 1943. Em 1959, quando se decidiu a reconstrução, Cottinelli Telmo já tinha morrido (aos 50 anos, em circunstâncias nunca totalmente esclarecidas no mar de Cascais) e a conceção da obra foi entregue a Pardal Monteiro, que voltaria a chamar Leopoldo de Almeida para assumir a estatuária. Tinham passado 20 anos, o mundo mudara, as vanguardas artísticas também, e as reações já não seriam tão unânimes como em 1940. Apontava-se, antes de qualquer outra coisa, o classicismo desusado das figuras representadas.

Completado o conjunto com um painel em mosaico no chão fronteiro à entrada do Padrão, com uma rosa-dos-ventos de 50 metros de diâmetro, oferecido pela África do Sul a Portugal, o interior do monumento seria intervencionado, em 1985, já em democracia, quando se transformou em Centro Cultural das Descobertas, dotado de um programa de animação cultural. Hoje (ou melhor, antes que a pandemia ditasse a todos, turistas e residentes, uma brutal mudança de comportamentos), o Padrão dos Descobrimentos é, até pela paisagem que se divisa do seu topo, um dos monumentos mais visitados de Lisboa. Segundo dados da EGEAC (empresa municipal que gere o espaço), em 2019 o Padrão recebeu 309 159 visitantes, 90% dos quais turistas estrangeiros.

A polémica frase de Ascenso Simões

O Padrão dos Descobrimentos foi nesta semana envolvido numa polémica provocada por um artigo de opinião do deputado Ascenso Simões que, no Público, escreveu que este monumento, tal como os brasões florais na Praça do Império, também poderia ser destruído: "Mesmo o Padrão, num país respeitável devia ter sido destruído." Foi o suficiente para desencadear uma polémica entre direita e esquerda.

Fonte: Diário de Notícias, 25 Fevereiro 2021

Deputado do PS defende demolição do Padrão dos Descobrimentos (Rita Dinis)

Deputado defende que as "revoluções servem para fazer cortes" e sugere que "devia ter havido sangue" no 25 de abril. Não é literal, diz ao Observador. Mas demolição do Padrão dos Descobrimentos sim.

Quando, esta semana, o Parlamento aprovou um voto de pesar pela morte do tenente-coronel Marcelino da Mata, Ascenso Simões (e outros dois deputados do PS) votou contra, contrariando o sentido de voto indicado pela sua bancada. Um dia depois, num artigo publicado no jornal Público, defendeu que “o país esquece rápido o seu passado” e que, nesse sentido, o Padrão dos Descobrimentos “devia ter sido destruído”. Mais: no 25 de Abril “devia ter havido sangue, devia ter havido mortos”.

Ao Observador, o deputado socialista explica que não foi literal quando escreveu que “devia ter havido mortos” no 25 de Abril, mas sim “simbólico”. “Não se trata de mortos físicos nem de sangue derramado nas ruas, mas de cortes epistemológicos. Cortes verdadeiros do ponto de vista da política, da transformação da sociedade”, diz. Quanto ao Padrão dos Descobrimentos, mantém o que disse: da mesma forma que estátuas foram derrubadas e que a ponte Salazar mudou de nome para ponte 25 de Abril, também o Padrão devia ser destruído enquanto “monumento do regime ditatorial” que é.

“Quando não temos leitura da história achamos que a normalidade é passar por um qualquer momento sem nos questionarmos. Mas se nos questionássemos, enquanto sociedade, perguntaríamos porque é que não derrubamos aquele que é um dos grandes monumentos do regime ditatorial”, diz em declarações ao Observador, afirmando que as revoluções servem para “fazer cortes” e que, nesse sentido, o 25 de Abril não “fez os cortes suficientes para limpar da nossa memória elementos que são danosos da construção de uma democracia plena”.

No artigo publicado no jornal Público, Ascenso Simões afirma que, “em Portugal, o salazarismo foi muito eficaz na construção de uma história privativa, garantindo, até hoje, a perenidade dos mitos do desígnio português, dos descobrimentos, ou do império”. Mas, no entender do deputado socialista, não existiu império nenhum. Esse império foi apenas uma construção do salazarismo e, mantendo de pé monumentos como o Padrão dos Descobrimentos, faz com que essa construção permaneça viva.

“Falta o conhecimento da história. Falta perceber verdadeiramente que não tivemos império nenhum. Que os tempos que vivemos desde o século XV até ao 25 e Abril foram tempos de grande instabilidade que nunca consolidaram império nenhum, mas esse império que está na nossa cabeça é o império salazarista. É uma construção simbólica do império salazarista”, diz o deputado ao Observador, sublinhando que ao fim de 40 anos de democracia ainda “não nos queremos confrontar com o passado” e que a primeira vez que a Constituição da República Portuguesa fala de império é a Constituição de 1933, a “Constituição Salazarista”.

Sobre a morte de Marcelino da Mata, o deputado socialista — que se opôs a que o PS votasse a favor de um voto de pesar — afirma que as condecorações de Marcelino da Mata que “serviram para aprovar um voto de pesar pela sua morte” não são mais do que “cruzes de ferro da nossa doméstica vida das décadas de 1960 e 1970”. “O ser humano, todo ele, merece o maior respeito na morte. Porém, são os que se aproveitaram e aproveitam de Mata, do seu passado e das suas medalhas fascistas, quem o desrespeita, quem lhe nega a paz eterna como salvação do seu passado abusador”, afirma.

Fonte: Observador, 2021/02/19

Gorongosa, lugar do silêncio (Ana Cristina Pereira)


Dias de deslumbre no Parque Nacional da Gorongosa, que já foi o palco de um dos mais sangrentos cenários de Moçambique. 

Populações inteiras de animais selvagens quase desaparam. Agora, recupera o fulgor.

O homem magro, de testa enrugada, não largava a espingarda. Nem quando se encostava a um canto e apoiava a cabeça no braço direito. Dir-se-ia que se esforçava para manter os olhos abertos, mas não deixava de captar tudo o que se passava em volta. Também "vê" com os ouvidos e com o nariz. Mesmo à noite cerrada, percebe-se a proximidade de uma manada de búfalos silenciosos.

Não é que Njinga desvalorize os riscos. É que conhece bem a fauna bravia do Parque Nacional da Gorongosa. Refugiou-se aqui da guerra civil de Moçambique. Comia raízes, frutos silvestres, carne de ratazana, cágado, inhala, piva, impala. "Não comia massa. Só coisas do mato. Tinha uma roupa caducada. As pessoas deitavam fora. A gente apanhava no rio, levava, cosia, punha. Só à frente. Atrás ficava sem nada."

Há qualquer coisa de esmagador numa extensa zona que a humanidade visita, mas não ocupa. É o "meio do nada". O lugar do silêncio, de quando em quando cortado por um vozear estranho - o rosnar de um leão, o grasnar de uma águia, o bramir de uma impala, o mugir de um búfalo, o chorar de um crocodilo, o trombetear de um elefante , o grunhido de um porco do mato ou o guincho de um macaco.

Dispenso, de muitíssimo bom grado, o silvar de qualquer cobra e o zunido de qualquer mosquito. Fora isso, paz.

Saíramos cedo do acampamento sazonal montado no centro do parque. Era uma daquelas manhãs luminosas que abrem a estação seca. Do jipe, seguindo a picada, víramos cudo, pala-pala, inhala e outros antílopes que não fogem mas que se afastam ao ouvir o ronco do motor, como se quisessem salvaguardar como devidas distâncias do mais perigoso bicho. De súbito, leões a acasalar. Deixámo-nos estar, talvez uma hora, a observá-los.

Não sei como seria a Gorongosa antes de, "menino e moço", Njinga ter sido levado da palhota de seus pais e forçado a pegar numa arma. Posso ter uma ideia, por exemplo, lendo o que sobre ela escreveu, na sua Ronda de África, Henrique Galvão, em 1948: "Em todos os percursos [se podem] admirar as multidões de antílopes em corrida ou em alertas estatuários, as manadas portentosas de búfalos, as fugas destrambelhadas dos macacos, as galopadas das zebras - e, com frequência, levantar leões das suas camas, surpreender leopardos, ouvir os elefantes na sua faina de lenhadores e ver os hipopótamos em concentração que é decerto a mais densa e numerosa do mundo. "

aquele tempo, o extremo sul do Grande Vale do Rift Africano não era bem um éden de vida selvagem. A Gorongosa começou por ser uma reserva de caça de administradores da Companhia de Moçambique. Em 1941, finda a concessão, o Governo colonial tentou banir as caçadas e criar uma estância turística. Só em 1960 a parque nacional. No final dos anos 1960, a equipa do ecologista sul-africano Kenneth Tinley fez a primeira contagem aérea: 200 leões, 2200 elefantes, 14 mil búfalos, 5500 bois-cavalos, três mil zebras, 3500 pivas, duas mil impalas, 3500 hipopótamos.

À Gorongosa vinha gente de muito lado. Não só pela quantidade de animais. Também pela beleza paisagística. José Maria d "Eça de Queiroz, neto do escritor maior, registou-a quando a visitou em 1964." A Gorongosa é como o mar: sempre igual e sempre diferente. Existem centenas de éguas no mar; na Gorongosa a estepe tem uma centena de estepes e a savana uma centena de savanas. "

Depois, escolhido como guerras. A primeira, a da independência, poupou a reserva; uma segunda, uma civil, não.