15 de setembro de 2021

Gorongosa, lugar do silêncio (Ana Cristina Pereira)


Dias de deslumbre no Parque Nacional da Gorongosa, que já foi o palco de um dos mais sangrentos cenários de Moçambique. 

Populações inteiras de animais selvagens quase desaparam. Agora, recupera o fulgor.

O homem magro, de testa enrugada, não largava a espingarda. Nem quando se encostava a um canto e apoiava a cabeça no braço direito. Dir-se-ia que se esforçava para manter os olhos abertos, mas não deixava de captar tudo o que se passava em volta. Também "vê" com os ouvidos e com o nariz. Mesmo à noite cerrada, percebe-se a proximidade de uma manada de búfalos silenciosos.

Não é que Njinga desvalorize os riscos. É que conhece bem a fauna bravia do Parque Nacional da Gorongosa. Refugiou-se aqui da guerra civil de Moçambique. Comia raízes, frutos silvestres, carne de ratazana, cágado, inhala, piva, impala. "Não comia massa. Só coisas do mato. Tinha uma roupa caducada. As pessoas deitavam fora. A gente apanhava no rio, levava, cosia, punha. Só à frente. Atrás ficava sem nada."

Há qualquer coisa de esmagador numa extensa zona que a humanidade visita, mas não ocupa. É o "meio do nada". O lugar do silêncio, de quando em quando cortado por um vozear estranho - o rosnar de um leão, o grasnar de uma águia, o bramir de uma impala, o mugir de um búfalo, o chorar de um crocodilo, o trombetear de um elefante , o grunhido de um porco do mato ou o guincho de um macaco.

Dispenso, de muitíssimo bom grado, o silvar de qualquer cobra e o zunido de qualquer mosquito. Fora isso, paz.

Saíramos cedo do acampamento sazonal montado no centro do parque. Era uma daquelas manhãs luminosas que abrem a estação seca. Do jipe, seguindo a picada, víramos cudo, pala-pala, inhala e outros antílopes que não fogem mas que se afastam ao ouvir o ronco do motor, como se quisessem salvaguardar como devidas distâncias do mais perigoso bicho. De súbito, leões a acasalar. Deixámo-nos estar, talvez uma hora, a observá-los.

Não sei como seria a Gorongosa antes de, "menino e moço", Njinga ter sido levado da palhota de seus pais e forçado a pegar numa arma. Posso ter uma ideia, por exemplo, lendo o que sobre ela escreveu, na sua Ronda de África, Henrique Galvão, em 1948: "Em todos os percursos [se podem] admirar as multidões de antílopes em corrida ou em alertas estatuários, as manadas portentosas de búfalos, as fugas destrambelhadas dos macacos, as galopadas das zebras - e, com frequência, levantar leões das suas camas, surpreender leopardos, ouvir os elefantes na sua faina de lenhadores e ver os hipopótamos em concentração que é decerto a mais densa e numerosa do mundo. "

aquele tempo, o extremo sul do Grande Vale do Rift Africano não era bem um éden de vida selvagem. A Gorongosa começou por ser uma reserva de caça de administradores da Companhia de Moçambique. Em 1941, finda a concessão, o Governo colonial tentou banir as caçadas e criar uma estância turística. Só em 1960 a parque nacional. No final dos anos 1960, a equipa do ecologista sul-africano Kenneth Tinley fez a primeira contagem aérea: 200 leões, 2200 elefantes, 14 mil búfalos, 5500 bois-cavalos, três mil zebras, 3500 pivas, duas mil impalas, 3500 hipopótamos.

À Gorongosa vinha gente de muito lado. Não só pela quantidade de animais. Também pela beleza paisagística. José Maria d "Eça de Queiroz, neto do escritor maior, registou-a quando a visitou em 1964." A Gorongosa é como o mar: sempre igual e sempre diferente. Existem centenas de éguas no mar; na Gorongosa a estepe tem uma centena de estepes e a savana uma centena de savanas. "

Depois, escolhido como guerras. A primeira, a da independência, poupou a reserva; uma segunda, uma civil, não.

Renamo, Frelimo, paz

Quem me falara na Gorongosa para a minha amiga Irene Grilo: um dos lugares da sua infância estava a recuperar de sistemáticas matanças. Incansável defensora dos direitos dos animais, agente de viagens especializado em safaris, queria ver como estão as espécies a reagir, que estruturas existem para visitantes e que forma tudo isso se relaciona com as comunidades locais. Volvidos alguns meses, todos independentemente nós, num todo-o-terreno conduzido por Beato, um guia que não lhe caiu bem, sob o olhar de Njinga, um guarda que lhe inspirava grande confiança.

Njinga nasceu em Cheringoma, distrito da província de Sofala, que faz fronteira com a Gorongosa. Aos 14 anos foi levado pela Resistência Nacional Moçambicana (Renamo) - pouco depois da independência, ex-militares portugueses e dissidentes da Frelimo tinha-se instalado na Rodésia e lá criado aquele movimento; com a independência do rebaptizado Zimbabwe, assentaram arraiais na África do Sul e, com o Acordo de Nkomati, em 1983, ergueram o quartel-general, a Casa Banana, no sopé da serra da Gorongosa. Era um bom sítio para escapar à observação aérea.

A vida tornou-se infernal para os homens e para os animais selvagens que ali viviam. O parque foi encerrado.

Na muita papelada que imprimira para ler durante a viagem, havia um livro do politólogo Jaime Nogueira Pinto sobre a guerra civil. Nele aparece o líder da Renamo, Afonso Dhlakama, a teor o modus operandi: "Actuávamos em grupos muito pequenos, dispersos pela serra, com grande do conhecimento, e eles pensavam que nós éramos como que espíritos da serra da Gorongosa, que em todo o lado ao mesmo tempo. Um só homem nosso podia fazer muitos estragos no inimigo teatro de operações! ".

Rapazes como Njinga eram treinados para improvisar. Sobreviviam com muito pouco. Não usavam farda. Camiseta Vestiam e calças de ganga ou fazenda. Só alguns calçavam sapatos ou botas. Njinga lembra-se de haver 30 quilos de farinha para 500 homens. Odiava aquilo. Fugiu com um amigo. Ainda passou por casa. "" Papá, eu não vou mais à Renamo, vou viver no mato. Eu sou pessoa. Meus irmãos já morreram. Eu quero ficar vivo. ""

Viveram cinco anos no mato. Fizeram uma casa numa árvore para melhor se proteger de leões e de outros predadores. Dormiram lá dois anos. À medida que as temperaturas, à noite, podem cair a pique. "Estávamos a sofrer muito com o frio. Construímos uma cabana na floresta." De meses a meses, noite cerrada, Njinga ia à palhota da irmã. Foi ela que lhes deu a notícia: Renamo e Frelimo assinado a paz.

Os dois rapazes não eram exclusivos. Nos últimos anos de confrontos, muita gente se tinha refugiado dentro do parque. Havia quem caçasse só para comer, mas também quem caçasse para extrair o marfim aos elefantes e trocá-lo por armas. As maiores matanças aconteceram entre 1992 e 1994. Houve descontrolo total desde a assinatura do Acordo Geral de Paz às primeiras modificações multipartidárias, que reconduziram Joaquim Chissano. Do parque, saíam umas 60 toneladas de carne por mês.

O Banco Africano de Desenvolvimento, com o apoio da União Europeia e da União Internacional para a Conservação da Natureza, tentou resgatar a reserva. Os meios revelaram-se escassos para uma tão desmesurada tarefa: populações de animais de grande porte estavam reduzidas a 10% ou menos; o acampamento de Chitengo, construído na era colonial, estava desfeito. Homens como Roberto Zolho e Baldeu Chande passaram anos em tendas a tentar salvar o que restava.

O charmoso veterinário

Quando o Governo e a Fundação Carr combinaram restaurar a Gorongosa, em 2004, era preciso captar cientistas, engenheiros, gestores, fiscais. Dezenas de ex-combatentes foram contratados. Njinga pediu para o ser. E foi. É um fiscal do Parque Nacional emprestado à primeira concessão privada, a Explore Gorongosa.

Gostava muito de o ter, no banco de trás do jipe, nas incursões pelo mato, ao princípio da manhã ou ao final da tarde (nas horas mais quentes, os animais abrigam-se). Sentia-me segura. E segura perdi a conta aos animais que vi - perto das picadas ou longe e, nesse caso, de binóculos para não os tomar por mancha animada.

Estava maravilhada. Queria ir para lá da mil vezes contada história do milionário norte-americano Greg Carr, que decidiu investir 40 milhões de dólares na restauração da Gorongosa. No Chitengo, estava o informadíssimo Vasco Galante, português, director de comunicação. Onde estava o charmoso veterinário que aparecia no documentário da National Geographic, O Éden Perdido em África?

A Irene queria muito conhecer Carlos Lopes Pereira. Queria dar-lhe um abraço, expressar gratidão pelo trabalho feito, mas o diretor dos serviços de conservação acabara de ser promovido um assessor técnico do Governo para todas as reservas e parques naturais de Moçambique: não estava. Haveríamos de encontrar-lo em Maputo e de ouvir-lo contar como desistira de ir para o Botswana e ficara em Moçambique por metade do salário. "Era um grande desafio técnico."

A equipa delineou um plano para recuperar fauna bravia, reconstruir infra-estruturas, fomentar o desenvolvimento económico. O número de fiscais duplicou - alcançou os 120. Criou-se um santuário de vida animal. Previu-se fazer reintrodução massiva, recorrendo ao Zimbabwe. "A situação política não dava", recordou o homem alto, de barba grisalha, botas de montanha, roupas de cores neutras, chamadas ao mato. "As pessoas querem fornecer os animais. Pagamos por eles, mas, quando chega a hora, a licença de exportação, por razões que ninguém percebe, não chega."

Não dependente dependente da situação no Zimbábue. Quem sabe quando se alterará? O Kruger Park, no Norte da África do Sul, estava a terminar um programa de reprodução de búfalos livres de tuberculose e tinha o destino daqueles animais. Carlos Lopes Pereira foi lá dizer-lhes que o lugar certo era na Gorongosa.

Em Agosto de 2006, principal os primeiros 54. Havia um risco: a doença transmitida pela mosca tsé-tsé, coisa que os búfalos do Kruger desconhecem há cem anos. O médico veterinário prepara-se para intervir. Não foi necessário. Continuavam resistentes. E os búfalos abriram caminho aos elefantes.

Os grandes machos quase desaparecidos da Gorongosa. Só havia elefantes com dentes pequenos ou sem dentes. Em 2008, divididos dois machos mais velhos e quatro machos mais jovens, escolhidos a dedo, pensar na regeneração do fundo genético da população que foi massacrada durante anos.

Se fosse hoje, não traria os mais velhos. "O elefante não é um animal comum - pensa, investiga, reage. Os jovens eram meios medrosos. Andavam perto das manadas, mas não se integravam. Depois, lá conseguiram. Os mais velhos punham-se a andar para a frente e para trás como qualquer macho. "

Usavam colares transmissores de sinal via satélite. Era assim que equipa a equipa sabre a sua posição. Carlos Lopes Pereira até coçava de cabeça ao perceber como se afastavam da reserva. Um chegou a estar a 279 quilómetros do parque. "Lá descobriu a rota dos elefantes. Foi para o rio Zambeze e voltou. E tornou-se a ir. E foi o azar dele. Houve uns que o apanharam."

Os caçadores furtivos tentaram destruir o colar. Carlos Lopes Pereira notou o movimento anómalo. Pediu ao centro de controlo o número de acesso do sinal. Prepare-se para avançar de helicóptero, à procura do animal. De repente, viu uma linha recta em direcção à cidade da Beira. Não podia ser o elefante. Inseriu as referências geográficas no Google: o colar estava dentro de uma casa.

Eram dois caçadores: um francês e um português. "Apanhámos os precisamos com a mão na massa. Apanhámos os restos do nosso elefante, apanhámos uma ponta que tinha 3,75 metros de um elefante que tinha sido abatido na Zambézia, apanhámos troféus, armas ilegais, munições, uma coisa impressionante."

O outro também teve um fim trágico. Afastou-se do parque por causa dos incêndios, que na Gorongosa são capazes de queimar macacos nas árvores. Caminhou em direcção ao sul. "Nós tentamos trazê-lo de volta e ele acabou morrendo numa combinação de inalação de fumo e estresse de transporte." Agora, a ideia é trazer uma família inteira. Os elefantes são muito sociáveis. Vivem em famílias que incluem uma matriarca idosa, vários descendentes e suas crias. Amiúde, diversas famílias partilham um território. Quando se identifica em poços ou no mato, cumprimentam-se com suas trombas.

São grandes bebedores de água. Para ver a Gorongosa, o melhor será seguir uma picada que se estende ao longo do rio Urema. Uma pista: mato alto pisado e ramos e troncos de acácias amarelas partidos. Mas há que manter distância. Há quem diga - veja-se o documentário Elefantes de Guerra, protagonizado por Bob Poole e Joyce Poole - que reencontro de traumas de guerra. É ajuizado evitar picadas muito fechadas ao anoitecer. Só nos deparamos com eles quando já estamos muito perto e eles não gostam.

Chitas incompetentes

Houve outras aparatosas reintroduções de animais selvagens. Vieram 180 bois-cavalos do Limpopo. Vieram mais 132 búfalos, cinco hipopótamos, quatro chitas.

Cada animal desempenha o seu papel na natureza. Os búfalos, por exemplo, têm uma língua comprida que lhes permite comer ervas grandes e espessas evitadas por outros animais de pasto. E isso ajuda os outros animais a acessar a ervas mais baixas ea descobrir os caminhos para a água.

Já ninguém pensa em fazer reintroduções maciças no Parque Nacional da Gorongosa, como nos primeiros tempos. Surpreendidos com a recuperação registada entre 2004 e 2007 em várias espécies, como piva, chango, javali africano, os peritos redefiniram estratégica. O parque já se gaba de ter das maiores grupos de papai-palas, gondongas e oribis. Boa notícia para os predadores, como as chitas.

Vimos uma chita macho a andar, sozinha, no verde da savana. Morreram duas das quatro que para ali cortar: uma no transporte, outra na caça. "Meteu-se com uma imbabala", explicou Carlos Lopes Pereira. "As imbabalas são animais muito sérios. Lutam. Essa chita ... não sei o que lhe deu para ir à procura de imbabalas. Enquanto esteve a ser alimentada, no santuário de fauna bravia, comeu impalas!"

Apesar de selvagens, as chitas viveram algum tempo em cativeiro. Estavam "meio incompetentes". O que lhes valia era como presas também sofrerem de inaptidão. Não havia ali predador tão veloz. Que outro animal terrestre consegue atingir 120 km / hora? O veterinário encontrou-os mortos. "Estavam um ao lado do outro e o irmão a olhar. Nem sequer comeu. A vida real é esta. O resto é poesia."

Eu diria que foi poesia que obteve. Vimos leões dois dias seguidos. E não haverá nada que dê tanto prazer à minha amiga Irene como a presença dos maiores felinos de África, que ali têm uma juba mais curta do que o habitual - um mistério que intriga quem, como ela, tanto se preocupa, uma das muitas razões para voltar a esse lugar co-gerido pelo Governo de Moçambique e pela Fundação Carr. "É um dos sítios mais selvagens de África", apanhar. "Tem um ecossistema muito variado e muito bonito." Uma savana de copa fechada a que chamam "miombo", palavra suaíli que nomeia a árvore preponderante, cobre os dois planaltos. No vale, capim polvilhado de acácias altas, diversos géneros de savana, florestas secas, charcos.Na serra, florestas tropicais, capim de montanha, floresta de galeria. "A ida à serra é imperdível."


A Fugas esteve na Gorongosa a convite da Into África Viagens e Safaris Lda.


Fonte: Público, 9 de Junho de 2012