20 de julho de 2021

Trilogia da Contestação: Bispo de Quelimane Dom Manuel Vieira Pinto (Por Jorge Ferrão 04 de Maio 2020)


Dom Manuel Viera Pinto foi alguém que nos habitou às múltiplas despedidas, tantas foram as vezes que partiu e regressou. Quando recebi a notícia do final da sua missão, ainda consternado, tratei de ligar ao Padre Filipe Couto e, acto continuo, conversamos sobre um sem número de facetas e episódios. 

Uma trilogia de memórias me vem à cabeça, sempre que falamos no Bispo Dom Manuel Viera Pinto, que nos deixa uma saudade e o sentido de que a sua missão está distante do final.

Primeiro, quando foi expulso de Nampula, ali no aeroporto, bem próximo de sua residência, em 1974, afirmando para os microfones da rádio “…saiu pela porta grande e com as minhas malas, todavia, quem me expulsou, sairia pela janela e sem nada em suas mãos…”. Não foi apenas uma saga, pois, meses depois se confirmava o que antes parecia sonho.

A minha geração ainda teve o privilégio de escutar muitas das homilias. Falava com sentido de oportunidade e de forma convincente. Repetia, bem alto e em bom tom, que gostaria de morrer em Nampula e de ser sepultado à entrada da Sé Catedral, para continuar próximo de seus fiéis. 

Em segundo lugar, me recordo da famosa carta dele e dos sacerdotes da sua diocese, sob o título "Imperativo de Consciência", que eu nunca cheguei a ler, aparentemente redigida pelos padres Combonianos, um documento demasiado famoso para ser ignorado, em contexto moçambicano. Aliás, essa carta não agradou ao Governo de Marcelo Caetano, ao exigir uma resposta corajosa aos problemas graves do povo moçambicano. 

Finalmente, a carta que Dom Manuel Viera Pinto escreveu a Samora Machel, em Setembro de 1986, um mês antes do factício acidente que o roubou do nosso convívio. Esta carta, aliás, merece uma releitura.  Samora e Vieira Pinto conversavam e debatiam este país com profundidade e respeito. Assim, com a devida vénia, transcrevo à carta. Oxalá, um dia o seu maior desejo em vida, seja satisfeito e regresse à sua cidade de coração, Nampula. 

O povo não sabe onde pôr o coração

A confiança que Vossa Excelência nos merece, como Presidente da Frelimo e da República Popular de Moçambique, leva-nos a falar, mais uma vez, das violências que não cessam de humilhar e destruir o nosso povo. A guerra continua e com ela a violência, a humilhação, os abusos, os excessos, as atrocidades e os crimes. Permita-nos, Senhor Presidente, que falemos, concretamente, das violências que, neste momento, mais humilham e esmagam o nosso Povo, mais destroem o país e o encobrem de vergonha e de sangue: os massacres, as execuções sumárias, os assassinatos, as n.... e as torturas.

“D. Manuel Vieira Pinto Arcebispo de Nampula – Cristianismo: Política e Mística” (Guilherme d’Oliveira Martins)

 



O livro de Anselmo Borges (Edições Asa, 1992) é uma obra que espelha a ação de uma das maiores figuras da Igreja portuguesa contemporânea, com uma extraordinária coerência entre a palavra, o espírito e a ação.

CUIDAR DE UM MUNDO MELHOR

Muitos de nós começámos a ouvir falar do Padre Vieira Pinto a propósito dos encontros do Movimento por um Mundo Melhor (MMM) e da sua capacidade de mobilizar os cristãos portugueses, desejosos de verem horizontes abertos. Era o espírito do Concílio que estava a germinar e o carisma do Padre Manuel era capaz de tornar os sinais dos tempos marcas efetivas de mudança… Nascido em Amarante em 1923 foi ordenado presbítero no Porto em 1949, tendo sido assistente da Ação Católica, diretor espiritual do Seminário Diocesano no Porto, além de ter desempenhado funções nas paróquias de Campanhã e Cedofeita. Envolvido no MMM, visita Roma em 1960 e na sequência do Concílio Vaticano II, participa com o Padre Vítor Feytor Pinto num conjunto de ações no sentido da renovação da Igreja. A renovação da vida cristã, a leitura dos sinais dos tempos, o lançamento de estratégias que favorecessem a mudança e a conversão, bem como a promoção da justiça social, a paz e a reconciliação entre os povos e nações constituíram prioridades defendidas pelo Padre Riccardo Lombardi, S.J., fundador em 1952 do Movimento. A teologia do Concílio constituiu um corolário lógico desse espírito e um exigente desafio em que o então jovem sacerdote se envolveu com muito entusiasmo e com uma especial preocupação teológica e pastoral. E assim impulsionou em Portugal esse movimento e essa motivação. E muitos recordam a sua grande capacidade mobilizadora no sentido de uma Evangelização renovada e aprofundada, na linha da “Gaudium et Spes” e da “Lumen Gentium” – em iniciativas que ficaram na memória de todos no Pavilhão dos Desportos em Lisboa e no Palácio de Cristal no Porto. O Povo de Deus não era uma abstração, era um apelo concreto, para tornar o mundo melhor, com mais atenção e cuidado, mais justiça e paz. Em abril de 1967, o Papa Paulo VI nomeou-o Bispo da nova Diocese de Nampula, tendo recebido a ordenação episcopal no dia 29 de junho desse ano, festividade de S. Pedro.

Moçambique: A Carta de D. Manuel Vieira Pinto que Samora Machel não leu

 


Samora Machel e Manuel Vieira Pinto fazem parte da História de Moçambique. O primeiro foi o líder incontestável líder que conduziu o país à independência tornando-se no primeiro presidente durante 11 anos. O segundo foi o único bispo português que se insurgiu pública e abertamente contra a dominação colonial, pronunciando-se, em coerência, pela autodeterminação do povo moçambicano o que lhe custou a expulsão, dias antes do 25 de Abril. Nos 11 anos de independência, as relações entre o Estado e a Igreja estiveram longe de ser as melhores. Apesar disso, Vieira Pinto e Samora Machel nutriam uma sincera admiração e respeito um pelo outro. Eles procuravam manter encontros pessoais. Em 25 de Setembro de 1986, Manuel Vieira Pinto escreveu a carta que não chegaria ao destinatário, em virtude deste morrer (19 de Outubro) antes de a receber, num encontro a dois. Era um inventário frontal das inúmeras situações provocadas pela guerra provocadas pelos dois lados e do apontar dos caminhos julgados mais eficazes para a obtenção da paz.

Eis o conteúdo da carta:

O Povo não sabe onde pôr o coração.

A confiança que Vossa Excelência nos merece, como Presidente da Frelimo e da República Popular de Moçambique, leva-nos a falar, mais uma vez, das violências que não cessam de humilhar e destruir o nosso povo. A guerra continua e com ela a violência, a humilhação, os abusos, os excessos, as atrocidades e os crimes. Permita-nos, Senhor Presidente, que falemos, concretamente, das violências que, neste momento, mais humilham e esmagam o nosso Povo, mais destroem o país e o encobre de vergonha e de sangue: os massacres, as execuções sumárias, os assassinatos, e as torturas.

Massacres:

As informações de que dispomos dizem-nos que os massacres, cometidos por uns e por outros, não são um boato ou uma pura invenção, mas, sim, uma triste e dolorosa realidade. Sabemos que ao longo destes anos de guerra, os massacres de pessoas e de populações inocentes e indefesas foram muitos, contando-se por milhares, o número de vítimas: homens, mulheres, velhos e crianças, jovens e adolescentes, mães lactantes e mães grávidas. O povo pergunta pelas razões destes crimes, destes actos executados, e pergunta igualmente por quem os comete ou manda cometer. Julgamos que não basta responder com a desculpa de que a guerra é guerra ou de que na guerra não há lei, nem há moral.

O povo entende que na guerra há uma inelutável irracionalidade congénita, o que necessariamente dá origem a abusos e a violências arbitrárias. O povo entende que a irresponsabilidade, a indisciplina, o descontrolo, o espírito de represália e de vingança podem tornar, num dado momento, os homens armados em homens ferozes, homens sem lei e sem um mínimo de respeito pela vida, pela dignidade da pessoa humana e pela segurança a que as populações têm inegável direito, mas, bastarão estas razões para explicar os numerosos massacres, cometidos contra pessoas inocentes, populações indefesas e contra o próprio Povo? Não haverá outras causas, além da lógica diabólica da guerra e da irresponsabilidade de quem os comete, permite ou manda cometer?