10 de junho de 2021

Franco Nogueira e Salazar: dois nacionalismos (Jaime Nogueira Pinto)


No centenário do nascimento de Alberto Franco Nogueira

Conheci pessoalmente Alberto Franco Nogueira no Outono de 1969, tinha ele deixado o Ministério dos Negócios Estrangeiros e sido eleito deputado como independente na lista da União Nacional. Falámos pela primeira vez na sede da Companhia do Caminho de Ferro de Benguela, de que acabara de ser nomeado administrador. Tinha lido o primeiro número da Política que eu dirigia, e queria conhecer-me. Eu tinha começado a publicação da Política naquele tempo de transição do regime, de Salazar para Marcelo Caetano.

Estava no centro do debate político a reforma ou liberalização do Estado Novo, ou do salazarismo, porque a partir da vitória das democracias anglo-americanas e da União Soviética, em 1945, o Estado Novo passara a ser, com o franquismo, um regime exótico na Europa ocidental. Um regime que sobrevivera muito graças à vontade, à determinação e ao sentido político do próprio Salazar, aproveitando a conjuntura internacional criada pela Guerra Fria. E dado o poder dos comunistas na Europa Ocidental e na oposição portuguesa, as potências anglo-saxónicas abstiveram-se de o tentar derrubar e o regime aguentou-se.

E depois, Portugal não era Espanha: enquanto o franquismo tinha um caudilho militar vitorioso de uma guerra civil dura de três anos, tinha instituições e uma competição política acirrada dentro da classe governante, (neo-falangistas, monárquicos afonsistas e carlistas, católicos conservadores e liberais, da Opus Dei e fora dela), em Portugal não havia a mesma vida ou tensão ideológica e as divisões eram mais entre grupos ou mesnadas ligadas aos "barões" do Regime. A doutrina política e a política eram com Salazar. E Salazar era um nacionalista conservador e católico de uma extrema racionalidade e pragmatismo, que avaliava com realismo e frieza os seus compatriotas, partidários e colaboradores. Sabia com o que contava e o que valiam.

Assim, mais até por ausência de outras instituições e protagonistas, o Presidente do Conselho e chefe do Governo foi moldando e desenhando o Estado Novo à sua vontade e imagem. A ambiguidade institucional era inerente à própria auto-designação do regime, que se definia como uma "democracia orgânica".

A tradição ideológica da direita portuguesa seguiu sempre os modelos clássicos da direita europeia, sobretudo francesa: o conflito entre o liberalismo e o tradicionalismo traduzira-se na luta dinástica e fratricida entre os filhos de Dom João VI, D. Pedro e D. Miguel; e a vitória do liberalismo constitucional em 1834 fora também determinada pela mudança da conjuntura internacional em 1830, com a queda dos legitimistas em França e dos conservadores do duque de Wellington na Grã-Bretanha. A balança da Europa decidia muita coisa.

A dependência nacional

É importante sublinhar aqui estes factos históricos, porque a guerra civil de 1828-34 (e sobretudo os seus custos financeiros, como o famoso empréstimo de D. Miguel em Paris) e o período de "liberalismo instável" que se lhe seguiu até à Regeneração vão trazer como consequência uma realidade e um sintoma de dependência do exterior determinantes para explicar o sucesso da Ditadura Militar e do salazarismo.

Como o observou Oliveira Martins no Portugal Contemporâneo e no resto da sua obra, o deficit das contas públicas e o recurso permanente da classe política ao crédito externo tornaram-nos vassalos do exterior, sobretudo da Grã-Bretanha. Os dois grandes romancistas portugueses do século XIX, Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós, não deixaram de retratar o quadro e as personagens desse tempo. Eça, sobretudo Lisboa; Camilo, a província, o Norte, o Entre Douro e Minho - basta ler ou reler O Conde de Abranhos e A Brasileira de Prazins. Curiosamente, século e meio passado, muitas das suas figuras, modos e dizeres continuam a aparecer-nos nos telejornais, sob a forma de certos comentadores, analistas ou autarcas.

Esta veneração pelo exterior, este "síndrome macedónico", continua a ser uma constante nas classes dirigentes, sobretudo políticas mas também sociais, numa espécie de mimetismo e servilismo acrítico do que é visto como as "luzes" da época. Ontem Paris, hoje Bruxelas. Há, ao mesmo tempo, nesta classe, uma enorme insegurança quando ao seu próprio lugar no país e no mundo. E em alguns, mais grave, o sonho de serem feitores ou capatazes do próprio povo, ao serviço dos poderes externos.

Ora é na rejeição desta subserviência que vai também assentar a aproximação espiritual e intelectual entre dois homens geracional e ideologicamente tão diversos como Oliveira Salazar e Franco Nogueira.

Raízes diferentes

Salazar, "pobre, filho de pobres", vindo do mundo rural, fora educado no Seminário, fazendo a carreira dos estudos jurídicos em Coimbra. Fiel militante de uma Igreja católica perseguida, leitor de Maurras e dos Papas Socias, homem de direita conservadora desde sempre, era um pessimista antropológico extremo, com raízes doutrinárias e filosóficas bem assentes e pouco flexíveis, o que não o impedia de ser lúcido no pensamento e pragmático na acção.

Franco Nogueira era bem diferente. Além das origens sociais e do tempo (era filho de um magistrado e nascera em 1918, quase trinta anos depois de Salazar, tendo passado toda a sua infância e juventude nos anos da Ditadura Militar e do salazarismo), os seus interesses e formação pouco tinham que ver com os de Salazar. É um aluno médio da Faculdade de Direito de Lisboa que se interessa desde muito novo por Literatura e se dedica à crítica literária em vários jornais diários e semanários.

Não são muito marcadas as suas posições político-ideológicas, mas mostra-se mais sensível a autores estrangeiros conotados com a esquerda - como Gide, Malraux, Aragon, Steinbeck e Graciliano Ramos. Ou mais próximo dos portugueses Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Castro Soromenho, Manuel da Fonseca, Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, sobre os quais escreve abundantemente. À direita, Francisco Costa, Joaquim Paço d'Arcos ou Domingos Monteiro também merecem a sua atenção. Mostra, no geral, um grande eclectismo e abertura intelectual.

Não tem militância política alguma, nem na direita nem na esquerda. É só em 1941, quando entra para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, em plena Guerra Mundial, que contacta com Salazar.

Um dos primeiros contactos, o primeiro, penso eu, ou assim me o contou o próprio Franco Nogueira, espelha bem o humor um tanto sarcástico que caracterizava Salazar:

Quando Franco Nogueira, então novato, teve a sua primeira noite de serviço na Cifra, o seu superior imediato apontou-lhe solenemente um telefone negro pousado sobre a secretária, ligado directamente a Salazar, que ocupava a pasta dos Negócios Estrangeiros desde o início da guerra de Espanha e lá ficaria até ao fim da Segunda Guerra. Que estivesse atento e atendesse imediatamente se o aparelho desse sinal de vida, pois que se o telefone tocasse, só podia ser o Ministro. Acrescentou ainda com a mesma preocupada solenidade que, se dos telegramas recebidos, algum tivesse conteúdo "importante e urgente" deveria imediatamente ligar ao Ministro fosse a que horas fosse, que seria sempre pessoalmente atendido por ele.

Franco Nogueira, algo preocupado com a perspectiva de interromper o sono de Salazar, fez então a pergunta que se impunha:

- Mas qual é o critério para classificar uma mensagem como "importante e urgente"?

Não havia critério, respondeu-lhe o superior, a decisão era deixada ao bom senso e ao discernimento pessoal e político do funcionário. E muito "à portuguesa", para tranquilizar o interlocutor, acrescentou: - Fique sossegado que à noite nunca chega nada de importante.

Mas chegou. E mesmo a meio da noite, pelas três ou quatro da manhã, enquanto Salazar dormia.

Franco Nogueira hesitou. Acordar Salazar a meio da noite sem razão, era grave; mas não cumprir uma norma era ainda mais grave... Por fim, decidiu-se e ligou. Ao terceiro ou quarto toque ouviu-se a inconfundível voz de Salazar:

- Aqui Ministro!

Franco Nogueira, embaraçado, apresentou-se e foi pedindo desculpa, ressalvando que tinha instruções do seu superior para lhe ligar, fosse a que horas fosse, no caso de chegar um telegrama "importante e urgente".

E Salazar:

- Então leia lá o telegrama, para vermos se é importante e urgente!

Foi assim, pelo telefone, o seu primeiro encontro com Salazar.

O diplomata

Durante a guerra, Franco Nogueira ficou em Lisboa; a seguir foi mandado como Encarregado de Negócios para o Japão, que acabara de se render, e conheceu em Tóquio o general MacArthur, procônsul americano junto dos vencidos. Também no Japão, conheceu e casou com a mulher de toda a sua vida, que morreu o mês passado, em Agosto: Vera Machado Wang, filha de uma senhora portuguesa e de um diplomata chinês.

Desse tempo, de um interessante Diário inédito com notas sobre o Japão, dos seus relatórios e escritos profissionais e das impressões do mundo e dos Estados que registou, ressalta uma percepção geopolítica e uma concepção de vida claramente realistas. E pessimistas, acrescente-se, na medida em que assentam na convicção da imutabilidade da natureza humana, mal-grado os discursos ideológicos. Para o futuro Ministro dos Negócios Estrangeiros, as ideologias pouco ou nada contavam perante os interesses nacionais constantes que era o que movia a política das potências e dos países. Este seu realismo vinha de uma longa tradição histórica e geopolítica, próxima das teses, entre os contemporâneos, de Hans Morgenthau. Franco Nogueira achava que, independentemente dos regimes políticos, as nações e os Estados tinham condutas ditadas pelos seus interesses permanentes, baseados em necessidades de defesa e agressão, de sobrevivência e expansão; interesses e necessidades que, tal como aos seres vivos, as condicionavam.

Das Notas e Relatórios Anuais de Política, referidos por Manuel de Lucena na fundamental nota biográfica do Dicionário de História de Portugal e coligidos e publicados por Fernando de Castro Brandão, emerge precisamente esta concepção do mundo. Analisando, por exemplo, os imperialismos, fossem os totalitários da Alemanha hitleriana e da Rússia comunista, fossem os liberais ingleses e franceses, achava que, no limite, se assemelhavam e identificavam.

A carreira diplomática de Franco Nogueira é rápida e ascensional: em Março de 1954, sendo conselheiro da Legação, é nomeado para a Repartição dos Negócios Políticos, mas parte para o exterior outra vez, um ano depois, como Cônsul-Geral em Londres.

Os ministros Paulo Cunha e Marcello Mathias seguem com atenção a sua carreira e a actividade multilateral que vai desenvolvendo, sobretudo a partir de finais dos anos 50. Dá nas vistas em múltiplas missões nas Nações Unidas e nas suas agências especializadas, como a OIT, onde começa a envolver-se na defesa da política ultramarina portuguesa que, desde Bandung (1955) - primeiro a propósito do Estado da India e depois dos territórios africanos - começava a ser objecto de fortes ataques.

Marcello Mathias nomeia-o, em Janeiro de 1959, Director-Geral dos Negócios Políticos. E é Mathias quem o recomenda a Salazar como seu sucessor nas Necessidades, vindo a ser nomeado para o cargo em Maio de 1961, na sequência da reacção de Salazar à tentativa de golpe militar liderada por Botelho Moniz, em Abril desse ano, quando renova o Governo, nas pastas dos Estrangeiros, do Ultramar e da Defesa.

Ministro, preso político e exilado

A partir daí, Franco Nogueira vai ser o principal rosto externo e interno da política nacional de defesa do Ultramar. Uma política que é a política de Salazar mas a que ele - que à partida não vem das hostes conservadoras, nem do Regime, nem, muito menos, da União Nacional - vai aderir por prática, razão e convicção.

Inicialmente muitos, sobretudo na direita, pensaram que ele seria apenas um executor de uma política de outro, do chefe do Governo, uma espécie de tecnocrata das relações exteriores, na tradição da obediência devida da Diplomacia. Ao contrário, Franco Nogueira adere à política de Defesa das então províncias ultramarinas com convicção e devoção.

Porque, na sua formação de patriota e de republicano realista, estava convencido de que a projecção ultramarina era a garantia última da independência de Portugal. E de que no dia em que o país ficasse reduzido ao rectângulo europeu e às ilhas atlânticas, além de perder poder nacional, se transformaria num país de terceira classe, comprometendo a sobrevivência da sua soberania a médio e longo prazo. Sobretudo perante uma Espanha que ele via unida e economicamente forte graças à autocracia franquista, e uma Europa que se integrava sob o comando do eixo franco-alemão e que visava dominar, pelos mecanismos financeiros e do comércio, os países da periferia. Foi um batalhador incansável desta causa.

Quando Marcelo Caetano substituiu Salazar, Franco Nogueira terá levantado dúvidas fundamentadas sobre a vontade do Governo em continuar a política de defesa do Ultramar, sem contudo avançar como alternativa ou lutar por fazer vingar a sua própria candidatura. Quer no ano em que serviu ainda como Ministro dos Negócios Estrangeiros, quer até ao final do Regime, Franco Nogueira ficará como o representante e o vigilante de uma política que considerava essencial para a sobrevivência nacional e que sentia ameaçada pelas hesitações do poder, do próprio Governo.

Foi neste comum propósito que nos conhecemos e iniciámos uma longa relação de amizade. Franco Nogueira ajudou a Política e escreveu ali sob o pseudónimo de Lusitanus uma secção de "soltas" críticas, intitulada "Setas".

O alvo das suas críticas eram os euro-entusiastas, os tecnocratas, os liberais; não porque ele fosse um ferrabrás reaccionário ou viesse da escola antiliberal e antidemocrática da direita tradicionalista ou fascistizante; mas porque o seu nacionalismo ultramarinista, a sua ideia de que em África, sobretudo na África Austral, estávamos a criar sociedades plurirraciais, comunidades integradas, o levava a lutar contra os protagonistas do reformismo liberal tecnocrático e europeísta, que via como representantes das elites estrangeiradas, obcecados em cair nas boas graças da comunidade internacional e dos poderes deste mundo. No seu livro As Crises e os Homens, fundamentará a tese de que, historicamente, as elites do país se mostravam muito mais sensíveis ao charme discreto dos poderes e das modas estrangeiras e que era o povo, enquadrado por uma minoria dessas mesmas elites, que geralmente resistia nos momentos mais difíceis.

Por isso ele, o patriota republicano e liberal, amigo de escritores e políticos esquerdistas, suspeito pela área conservadora do Regime de grandes heterodoxias, acabou por transformar-se - também por ausência de outros - no grande representante da "ortodoxia salazarista"...

E depois do 25 de Abril, os mentores e dirigentes da política contrária, os comités pretorianos como a Comissão Coordenadora do MFA e os seus instrumentos repressivos, como o COPCON, apressaram-se a detê-lo, com um mandado de captura vindo do Gabinete de Vasco Gonçalves. E perante a indiferença de Pilatos dos pais fundadores da democracia portuguesa, vão encarcerá-lo no 28 de Setembro, com o qual nada tinha a ver. Uma prisão por "suspeição", de proscrito, de suspeito, prática muito comum na tradição dos "democráticos" e dos antifascistas domésticos.

Nos oito meses em que esteve preso, passou um mês no "isolamento", sofrendo, em consequência, um grave acidente cardíaco. E enquanto estava na UTIC de Santa Maria, deu-se um desses aberrantes incidentes do PREC, que a correcção política e a censura das memórias silencia: os antifascistas do MRPP decidiram fazer-lhe um julgamento popular nas próprias instalações hospitalares. E só devido à enérgica oposição dos médicos e do pessoal da unidade não levaram a sua avante.

A pressão de figuras da política internacional e o medo de ficarem com um mártir no cadastro, que perturbou os responsáveis políticos do PREC, mais o gesto de retribuição de uma importante figura político-militar que Franco Nogueira, enquanto ministro, resgatara de um humilhante cativeiro no Zaire, acabaram por determinar a sua libertação em 13 de Maio de 75. Seguiu-se o exílio voluntário em Londres onde, durante anos, escreveria a exemplar biografia de Salazar, a que todos os historiadores subsequentes recorreram e recorrem, embora às vezes não a citem.

Consegui sair de Angola em 1974, depois de me terem tentado prender em Lisboa; por isso, foi no exílio que voltei a encontrar-me com Franco Nogueira: no Brasil e em Londres e, regularmente, no nosso clube político de Bendern, no Liechtenstein, para onde ele me tinha convidado e que frequentámos juntos durante anos. E depois, claro, em Portugal, até à sua morte em 1994.

Além do patriotismo, da cultura, da inteligência, da coerência, da capacidade dialéctica e pedagógica, devo aqui salientar outros aspectos pessoais que nesses 25 anos de convívio amigo e próximo com Franco Nogueira fui descobrindo; aspectos que às vezes ficavam escondido por uma capa externa de secura: a sua bondade e humanidade, o seu sentido de humor, a sua capacidade de autocrítica. Quando a Zezinha esteve internada em Londres, aparecia todos os dias para a visitar, com um carinho e uma atenção excepcionais. E sempre ele e a Verinha nos acolheram como amigos do coração.

Sem reinvenções de conveniência

Outro aspecto importante e que sempre admirei em Franco Nogueira foi a sua coerência em relação ao passado e a assunção das responsabilidades, a recusa em reinventar biografias democraticamente correctas, revisionistas, interpretações fictícias e convenientes de si mesmo. Ele, o crítico literário de pendor liberal, o amigo pessoal de escritores oposicionistas, e mesmo comunistas, o suspeito de falta de credenciais "estado-novistas"; ele que nunca esteve envolvido em quaisquer acções ou actividades repressivas, evitou todo e qualquer Ralliemment à nova situação, evitou a desculpa fácil ou até plausível, nunca sucumbiu à tentação de se reinventar como "lutador antifascista" retorcendo a História - ligeira ou subtilmente que fosse.

Ao contrário de outros que, menos credenciados para o poderem fazer, o fizeram, Franco Nogueira não o fez; e foi com grande dignidade que o não fez.

Consumada a perda do Império, continuou a lutar pela independência nacional, a denunciar o iberismo e o europeísmo federalista e a defender a soberania nacional e a nação que, para ele (como ainda há dias no MNE sublinhava Marcelo Mathias) era o valor mais importante. E previu a ascensão da China, a crise da União Europeia, o reforço da importância das identidades nacionais. Também nunca renegou a política portuguesa de integração e o seu potencial futuro, com a criação de sociedades étnica e religiosamente plurais, na altura, das mais desenvolvidas do continente africano. Hoje, o plurirracialismo que Franco Nogueira sempre defendeu continua vivo, por exemplo, em países lusófonos como Angola e Cabo Verde.

Para além da Esquerda e da Direita

De qualquer forma, o itinerário político-ideológico de Franco Nogueira assenta numa aparente contradição: a de um patriota republicano, sem quaisquer ligações históricas com a direita nacional-conservadora ou nacionalista radical, que veio a tornar-se seu aliado estratégico. Com o evoluir dos tempos, já depois da queda do Regime e da implantação da Terceira República, consagrou-se como biógrafo de Salazar e tornou-se o principal responsável pela recuperação histórica do líder do Estado Novo.

Concluindo, a direita - nunca me canso de dizê-lo - é muito menos conhecida do que a esquerda. Por culpa da História, dirão alguns, ou por obra da esquerda hegemónica, sem dúvida, mas também por culpa e ausência dessa mesma direita, que, nas suas manifestações públicas, ora sucumbe a um temor reverencial e conveniente que a faz acompanhar-se sempre de um qualificativo topográfico - o "centro" -, ou de adjectivos como "liberal", "democrática" ou "moderada"; ora cai num saudosismo roncante, numa espécie de velório permanente, num masoquismo de vencidos da História que se esforçam a posteriori por tornar presentes, convenientemente transformados em heróis de um radicalismo pueril e deslocado, aqueles que outrora denegriam como comedidos, vendidos ou ignóbeis.

A esquerda portuguesa, nos anos pré-25 de Abril, tinha essencialmente três tribos - a comunista do PCP e dos grupúsculos trotskistas e maoistas; a democrática-republicana dos neo-reviralhistas, descendentes dos saudosos da Primeira República e seus aderentes; e a liberal-progressista vinda dos católicos e ex-católicos dissidentes sociais do Regime.

A direita tinha também as suas famílias: a direita monárquica, semi-arreliada com Salazar por não ter restaurado a monarquia e por uma infinidade de queixas e agravos, às vezes quase pessoais e familiares; mas patriótica, sem querer confusões com as oposições comunistas ou anti-ultramarinas; a direita conservadora, onde salazaristas, ex-salazaristas e marcelistas conviviam às vezes com alguma dificuldade e que ia sustentando o Governo; e uma direita nacionalista, radical ou revolucionária, onde persistiam ideais justicialistas, ligados ao fascismo revolucionário ou ao nacional-sindicalismo José-antoniano. (Não vale a pena exemplificar ou alongar a explicação destas categorias. Basta dizer, para esclarecimento, que me incluo, por geração e convicção, nesta última).

Onde ficava Franco Nogueira neste panorama? O seu pensamento tinha por base um patriotismo de raiz, com valores republicanos que eu diria muito próximos do republicanismo conservador da Primeira República, da qual admirava alguns caudilhos. Mas a sua concepção do mundo, muito marcada pela experiência da vida diplomática no Oriente, em Londres e da familiaridade com os Estados Unidos e com a História e a cultura anglo-saxónica, levava-o para o realismo da vida das nações. E esta vida internacional era uma luta constante: pelo espaço, pelos recursos, pela sobrevivência. E não era um jogo a feijões, sobretudo para os derrotados.

Por isso, muito ao contrário das esquerdas e direitas do tempo, Franco Nogueira era alheio às ideologias (e quase poderá dizer-se que as abominava); mais, ao modo das escolas de pensamento marxista ou elitista, de Marx ou de Pareto, via nelas uma mera retórica de camuflagem do que efectivamente contava - o interesse das Nações. No fundo, a Rússia dos czares tinha determinados objectivos geopolíticos que a Rússia dos sovietes e de Estaline manteriam. Bismark, os generais de Guilherme II, Stresemann ou Adolf Hitler reflectiam uma continuidade de hegemonia germânica, que se exprimia pela cultura, pela indústria, pela diplomacia, pela guerra. O dilema alemão era sobreviver e afirmar-se entre a França, a Oeste, a Rússia, a Leste, e a Grã-Bretanha, a Noroeste e no mar.

Do mesmo modo, o Reino Unido, apesar das suas instituições plurais, da panóplia dos direitos constitucionais da tradição liberal secular, não hesitava em eliminar os seus inimigos com determinação e maquiavelismo.

Este pensamento não estava distante do de Salazar, embora Salazar, por sensibilidade e formação, percebesse e sublinhasse a importância das doutrinas, das ideias e das ideologias políticas, como um corpo vivo e actuante na determinação dos comportamentos e da acção política.

E afinal, o nacionalismo é também uma doutrina e uma ideologia política que até começou por ser "de esquerda". É também, por vezes, uma ideologia de circunstância, de momentos trágicos da História em que uma comunidade política se sente ameaçada na sua existência, de dentro ou de fora. Os franceses em 1793 foram nacionalistas contra os exércitos da coligação monárquica; mas os portugueses e os espanhóis, em 1808, foram-no sido contra o exército dos franceses. Como o seriam os russos do Czar em 1812 e os prussianos do levantamento contra Napoleão em 1813. Todos eles reconhecem que a Nação é a comunidade mediadora por excelência, entre o indivíduo e a humanidade, no quadro da qual se defendem os valores e a estabilidade e a integração social. Os valores tradicionais "de direita" - da religião, da família, da propriedade - mas também os valores ditos "de esquerda" - da liberdade, da solidariedade, da igualdade perante a lei. Quer na esquerda, ou vindos da esquerda, quer na direita, ou vindos da direita, sempre houvera e haveria patriotas e nacionalistas.

Por estas razões, Franco Nogueira pôde colaborar e trabalhar com Salazar na defesa desses interesses nacionais ameaçados e sentiu-se no dever de contar a vida do fundador e líder do Estado Novo, que passou a admirar como exemplo de patriotismo e austeridade.


Diário de Notícias, 25 Setembro 2018