Religião islâmica é violenta
Podíamos ter ficado pelas reportagens de guerra ou pelas histórias de colonização em “O Anjo Branco”, onde as tropas coloniais e os guerrilheiros da Frelimo trocavam alimentos e usavam os mesmos hospitais para se tratarem. Mas com José Rodrigues dos Santos, escritor e jornalista da RTP, experimentámos “A Fúria Divina” e a violência na religião muçulmana.
Com “A Fúria Divina”, José Rodrigues dos Santos pareceu ter entrado para o complexo mundo religioso, correndo risco de mexer com as paixões existentes quando se trata da fé. Quando o encontrámos, quarta-feira, a conversar, calmamente, com o realizador do “Último Voo de Flamingo”, João Ribeiro, estendemo-nos as mãos, surgiu-nos mentalmente a questão – como se entra no reino islâmico? – que tinha de esperar até à hora da entrevista.
Para José Rodrigues dos Santos, a religião islâmica é violenta. Olha para todos os fundamentos e presta atenção à irregularidade dos ataques da Al-Qaeda ao Ocidente. O ataque aos EUA, diz Rodrigues, foi ilegal, pois devia ter sido ordenado pelo profeta. Mas como este morreu, tinha de ser o seu substituto, o Kalifa.
Mas, antes de enfrentarmos “A Fúria Divina”, começámos por um profundo olhar à reportagem de guerra para descobrirmos as várias verdades da mesma história, que as televisões nos mostram.
Recuperemos um debate que não é novo. Há fronteiras entre o jornalismo e a literatura ou estamos perante a mesma disciplina?
Existem sim. São coisas diferentes, embora um pouco complementares. Muitos escritores importantes eram, originalmente, jornalistas. Na língua portuguesa temos Eça de Queirós, José Saramago (...). Há bastantes autores que se iniciaram como jornalistas. Mas são diferentes uma vez que o jornalismo procura contar a verdade usando a técnica de não ficção e a literatura, muita das vezes, procura contar a verdade usando a ficção. O caminho é um pouco diferente, mas o destino é o mesmo.
Assumir a ideia de “jornalismo como estágio superior da literatura”, como algumas correntes defendem, não seria uma forma egoísta da imprensa?
Não acho que seja uma definição correcta. Há géneros de escrita. O jornalismo remete-nos para um género não ficcional, enquanto a literatura pode ser ficcional ou não. Pode-se escrever um texto de qualidade literária que é um não ficcional. Mas não vou dizer que um é superior a outro. É uma questão de gosto pessoal. Se gostamos mais de um, achamos que é superior que outro. Mas não diria que um é superior ao outro. São complementares, diferentes e semelhantes em certos aspectos.
Quando lançou “O Anjo Branco” foi visto como uma forma de regressar à terra que o viu nascer. Foi essa a melhor maneira de voltar?
“O Anjo Branco” é a história do meu pai, que era médico e montou serviço médico aéreo, que voava de aldeia em aldeia a partir de Tete. Fazia campanhas de vacinação e tratava as pessoas das doenças predominantes no distrito de Tete. Um dia entrou numa aldeia onde tinha havido massacre, Wiriamo. Foi o primeiro civil a entrar lá. Este romance conta essa história. Naturalmente, tem algumas histórias de amor e algumas de ficção, mas, no essencial, é verdadeira. Eu achei interessante também recriar o Moçambique daquele tempo. Para uma pessoa que não conhece Moçambique ou que conhece, era interessante pegar no livro e viajar no tempo, ver como é que as pessoas falavam; o tipo de produtos que consumiam; aquele tipo de anúncios que eram característicos naquela altura, é preciso recuperar. Era interessante, também, pôr personagens diferentes e ver toda a situação que se passava no país com os olhos de cada um. Portanto, tenho o guerrilheiro, tenho o homem da PID, tenho o médico e cada um deles tem um olhar diferente da situação. Cada um deles tem a sua verdade.
Passado este tempo todo, como é que Portugal hoje olha para este período da história?
É difícil dizer, cada pessoa tem a sua visão sobre o que foi a colonização e a guerra colonial, mas é mais ou menos unânime que esse foi um período de história que existiu e está lá e já estamos noutra etapa e, portanto, não podemos renegar o passado, temos que conviver com ele, com o bom e o mal que tinha. Quando fiz “O Anjo Branco”, o que eu achava é que a literatura sobre aquele período era, ideologicamente, envolvida. Havia autores que demonizavam uma parte do conflito e os outros eram santinhos. Estava para fazer um romance que fosse neutral, que colocasse as personagens a exporem as suas opiniões e, através do que elas iam dizendo, saberíamos o que pensavam; perceberíamos o ponto de vista de qualquer uma, independentemente de concordarmos ou não com elas. De certo modo, é o primeiro romance imparcial sobre a guerra colonial.
Está a dizer que as diferentes ideologias – política e religiosa – interferiram na construção da literatura sobre a guerra colonial?
Absolutamente, todos os romances publicados, seja em Portugal, assim como em África sobre a guerra colonial, são engajados. São romances ideológicos, em que o autor está a expor a sua visão. O que ele pensa, muita das vezes, é a visão que ele sente ser dominante, é o que é o politicamente correcto. Eu saí desse caminho, fui falar com muitas pessoas; fui falar com o comandante que fez o massacre de Uiriamo e perguntei-lhe por que ele fez aquilo, como é que se explica que tenha morto crianças e apanhei coisas que eram contraditórias. A presença portuguesa em África estava cheia de contradições. Por exemplo, a PIDE apanhava o pessoal da Frelimo, punha-os na cadeia e maltratava-os. Mas, por outro lado, houve uma greve de trabalhadores negros do Porto de Maputo e a PIDE pôs-se de lado deles, dizendo que tinham razão de exigir o mesmo salário que os trabalhadores brancos. A PIDE escreveu num relatório (que) têm razão, devem ter o mesmo salário. Os americanos (...) a Ford Fundation financiava a Frelimo. Apanhei uma história em Tete em que, num hospital montado por portugueses, aparece um americano indignado, porque foi colocado na fila de espera juntamente com os negros. Ele dizia “sou branco, tenho de passar a frente” e os médicos portugueses diziam “está na fila tem de esperar pela sua vez”. Encontrei muitas contradições da presença portuguesa, no comportamento de várias partes, até um certo conluio entre as partes. Falei com militares que me diziam que viviam num quartel em que ao lado havia um aldeamento e eles diziam que os guerrilheiros estavam lá. Diziam que trocavam comida com os guerrilheiros. A outra contradição é que a tropa portuguesa e os guerrilheiros matavam-se no mato, mas depois estavam no hospital um soldado português com o pé engessado e tinha oficiais portugueses a visitá-lo e ao lado estavam dirigentes da Frelimo a visitarem um guerrilheiro. E essas histórias, normalmente, não são contadas porque quando o autor tem uma ideia pré-concebida do que deve ser a história, todas as outras que contrariam essa vão sendo eliminadas para se ter um discurso uniforme.
Geralmente, quando se ignoram outros elementos que possam contradizer a história principal teme-se que possa faltar coerência no argumento. Quando escreveu “O Anjo Branco” não temia incorrer na incoerência?
Não, porque a realidade era essa, estava cheia de contradições. Esta coisa ficou muito clara para mim, “cada pessoa é uma pessoa”. Claro que havia um conjunto de pessoas que pensavam mais ou menos da mesma maneira, mas as pessoas tinham comportamentos diferentes e muito contraditórios. Acho que isso era importante e, quando você lê o romance, emerge uma certa confusão que, na verdade, tem a ver com a situação de guerra. Há uma parte invisível na situação de guerra, que é a colaboração entre as duas forças. No meu outro romance que é “A Filha do Capitão”, as tropas portuguesas na primeira guerra mundial estavam na França e combatiam os alemãs, mas eles tinham horas combinadas para os bombardeamentos, hora para consertar as coisas.
Está a dizer que a guerra é também um campo de negociações?
Constantemente. Uma história que não pus neste romance (“O Anjo Branco”), porque se passa na Guiné. Há uma pessoa que me disse que ao fazer patrulha com os fuzileiros tinham combinado com PAIGC que num determinado ponto deixavam umas cervejas. Faziam isso, bebiam as cervejas e não chateavam a ninguém. A guerra está cheia disto, há coisas que nunca nos são contadas. A PIDE fez um relatório sobre o que estava mau do ponto de vista português da guerra em Moçambique e dizia assim: “Os comandos andam atrás dos Turas (Frelimo), os Turas andam atrás da tropa e a tropa anda atrás das gajas. Isto nunca nos é contado, mas era interessante para nos mostrar o comportamento das tropas. Diversas forças portuguesas tinham comportamento militar diferente. Havia a tropa geral, de infantaria, que não queria saber da guerra para nada, era uma chatice. Os que tinham uma postura de combate eram os comandos e pára-quedistas. Os outros só queriam sobreviver, beber umas cervejas e andarem atrás das raparigas.
A guerra é um assunto dos políticos e dos governos e os militares não se identificam com ela?
Há motivações diferentes consoante o tempo. A tropa regular portuguesa no início dos anos 70 não tinha vontade de combater.
Podemos fazer uma ponte entre “O Anjo Branco” e “A Verdade da Guerra”, que fecha a trilogia iniciada com os dois volumes de “Crónicas de Guerra”. Que tipo de guerra as televisões mostram?
O que pretendia explicar nesse livro é que, primeiro ponto, não há objectividade. Nós nunca conseguimos objectividade e isso é valido em qualquer acto de comunicação humana. Vimos as coisas segundo um determinado prisma, não conseguimos escapar disso. Isso acontece também com a reportagem de guerra. Quando vimos na televisão uma reportagem de guerra, ela apresenta-nos apenas um fragmento da realidade, de certo modo até é artificial. Há teóricos que defendem que não só em termos jornalístico, o próprio discurso histórico é de ficção é de ficções, é construído por autores com determinadas intrigas, que depois dialogam ao longo da história. O que procurei nesse livro é mostrar como é que se faz a reportagem de guerra, que tipo de motivação os jornalistas têm, que tipo de dificuldades encontram e que tipo de confiança podemos ter e que quando estamos a ver uma reportagem, quer de guerra ou outra, temos confiança que nos conta a verdade.
Quando se lê o livro fica-se com a impressão de que as verdades construídas nas reportagens de guerra são “não reais”
Que há combates ... bom, muita das vezes há combates. Mas como é que nós construímos as coisas, a forma como as câmaras filmam de uma maneira e não da outra, tudo isso condiciona nossa percepção e adultera. Mas isto é valido para jornalismo de guerra como para outro tipo de jornalismo.
Qual é a importância de não se dizer a verdade numa guerra?
Devemos sempre tentar dizer a verdade, mas, muitas vezes, não temos acesso à verdade, porque quando chegamos a um sítio pode a coisa estar manipulada.
Para os que comandam as linhas de combate, até que ponto têm no jornalismo um aliado e quando é que este funciona como um entrave?
Os militares quando aceitam que hajam jornalistas do seu lado procuram os enquadrar de maneira que não prejudiquem a sua causa; procuram usá-los para fazer prevalecer o seu ponto de vista. Portanto, os jornalistas quando estão numa guerra têm de ter noção disso e arranjar uma maneira de dar a volta. Mas o facto é que nós não conseguimos ir a determinados pontos porque os militares não nos deixam, portanto, não conseguimos perceber qual é a verdade. Agora, na Líbia, curiosamente do lado rebelde, não estavam muito organizados e os jornalistas conseguiam ir para a linha da frente, mas quem estava de lado de Kadafi, por vezes, nem conseguia sair do hotel. Mas isso no final acaba por se virar contra quem restringe os movimentos, porque cria a impressão aos jornalistas de que tem algo a esconder.
“A Fúria Divina” não teve uma boa recepção por parte da religião muçulmana. Por que a religião se virou contra este romance?
Curiosamente, é um romance que foi revisto por um dos fundadores da Al-Qaeda, um homem que trabalhou com Bin Laden e fez os primeiros atentados da Al-Qaeda na Europa. Fez uma revisão do romance para certificar que aquilo que foi escrito era verdadeiro. Recebi muitos e-mais de muçulmanos de Moçambique, curiosamente. Mas acho que as pessoas não conhecem muito bem a sua própria religião. O islão tem um conjunto de características. É uma religião muito diferente do cristianismo, do budismo e hinduísmo. O islamismo tem mais semelhança com o judaísmo, aliás, vão beber à mesma fonte. São religiões que admitem que a violência pode ser solução em determinadas circunstâncias. O judaísmo e o islamismo prevêem que se pode matar à pedrada quem comete adultério. Há um famoso episódio escrito nas crónicas da vida do profeta Maomé, em que foram apanhados dois jovens que cometeram adultério e estavam a ser julgados pelos judeus. Então, Maomé chegou lá e disse: “Rabino, qual é a pena que vais aplicar?”, e ele disse: “Vão ser expulsos da aldeia”. Maomé perguntou, “Rabino, o que é que está escrito na Bíblia?”. Rabino começou a ler, mas tapou a parte que dava a ordem de matança. Rabino lê e diz que “têm que ser apedrejados”. Maomé diz “então mate-os!”. O mesmo episódio existe no novo testamento em relação ao cristianismo, em que levam uma adultera a Jesus e perguntam: “agora o que fazemos?”, e ele pergunta o que é que diz a lei: “A lei diz para matá-la à pedrada”. E Jesus diz: “atira a primeira pedra para quem nunca pecou”. Quer dizer, a religião cristã é muito pacifista. A religião judaica e a muçulmana prevêem violência em determinadas circunstâncias. Se alguém for encontrado a roubar na religião islâmica, estica a mão direita e pronto. Existe um pilar importante no islão que é a guerra em nome da fé, chamamos Jihadi, que é uma faceta menos conhecida por parte de muitos muçulmanos. Existe uma forte pródiga para uso da guerra para o impor o islão. A ideia é que o islão deve crescer pacificamente, preferência. Mas, se não for pacificamente, deve ser à força. Deve-se impor e submeter os infiéis à lei do islão como cidadãos da segunda classe; têm que pagar a jizyah (imposto) e são tratados como cidadãos de segunda classe. Muitos muçulmanos não conhecem isto porque estes são ensinamentos perigosos. Fazem sentidos no tempo em que Maomé existia. Não credito que se hoje Maomé viesse outra vez fosse defender isto. Mas como ele morreu e não anulou estas ordens, muitos muçulmanos que vão aos fundamentos da sua religião começam a aplicar isto cegamente. Depois, vamos ver os fundamentos teológicos que apresentam ao perguntar por que fazem isto e dizem que o profeta é que mandou fazer. Vão buscar o Alcorão e está lá uma citação do profeta, realmente a dizer isso. Nas crónicas do profeta há uma declaração que diz “eu vim com Alcorão numa mão e espada na outra e quem não me obedecer será humilhado”. O jihadismo cita estas declarações que são verdadeiras. Este tipo de interpretação literal não existe em Moçambique, mas, em certos países muçulmanos, sim. Os talibãs o que fazem é isto, aplicam à letra tudo que lá está escrito, eles não se adaptaram aos tempos, não perceberam que os tempos mudaram e que o seu próprio profeta se estivesse no novo tempo encararia as coisas de uma maneira diferente, porque as pessoas têm de viver em conjunto e respeitar a fé dos outros.
O discurso que prevalece, baseado nos últimos conflitos, é que Ocidente está em guerra contra o islamismo. É um cenário real?
Não há nenhuma guerra contra o islamismo. No Ocidente só se começou a estudar jihadismo, isto é, parte de Alcorão e das crónicas da vida de profeta chamada jahadi, depois do 11 de Setembro. Quando os americanos invadem o Iraque, não o fazem por ser muçulmano, mas porque tem petróleo. Não é questão religiosa que foi preponderante para a acção dos americanos. Aliás, na Europa os americanos puseram-se ao lado dos muçulmanos na Bósnia contra os cristãos da Sérvia. A questão religiosa coloca-se da parte de alguns muçulmanos. O que se coloca é que algumas pessoas no mundo islâmico pensam que colocando à letra tudo o que vem lá o islão torna-se dominante. Depois olham à volta e vêem que o islão não é dominante. O islão não domina o mundo, portanto, isto é uma contradição que faz com que eles se sintam humilhados. Esses Osama Bin Laden o que tentam é mostrar ao Ocidente que eles são superiores, mas as coisas são um bocado estranhas, porque, quando atacam Nova Iorque, o fazem com aviões americanos, feitos pelo Ocidente, porque não é uma tecnologia dos muçulmanos. Quando usam uma arma, usam Kalashinkov, feita por um infiel russo, usam telemóvel finlandês. Esta maneira de funcionar dos fundamentalistas – não é de outros muçulmanos – apenas remete para o atraso e só um país muito atrasado é que pode aderir a isto, como, por exemplo, o Afeganistão, que é um Estado falhado ou Paquistão que também, de um certo modo, é um Estado falhado. Só neste tipo de países é que este tipo de raciocínio pode existir. Qualquer pessoa iluminada percebe que são histórias que fazem parte do passado do século VII e que eram válidas para aquele tempo, porque, hoje em dia, não se pode funcionar daquela maneira. Hoje temos que ter conhecimento e as pessoas devem-se relacionar umas com as outras. Estamos a viver hoje uma crise que mostra que todas as economias dependem umas das outras. Este tipo de raciocínio está condenado ao fracasso. Acho que os fundamentalistas islâmicos não vão a sítio nenhum, eles apostam na ignorância como meio de desenvolvimento. Mas muitos outros muçulmanos não funcionam assim. A Fundação Haga Khan é um farol de luz no nosso mundo. Há um perigo que é Arábia Saudita, que é onde se pratica mais fundamentalismo. Eles financiam escolas muçulmanas com curriculum fundamentalista. É por isso que o fundamentalismo se está a espalhar.
Policarpo Mapengo
O País, 15 Outubro 2011