"Contra factos não há argumentos e um facto dentro de um copo é Laurentina.
Laurentina a grande cerveja para grandes sedes" (Autor: Mozindico - MOZ)
A Laurentina dispensa apresentações, a 2M é hoje a mais vendida. Estas duas cervejas, criadas na época colonial portuguesa, contam a história de Moçambique nos últimos oitenta anos. E rimam com calor.
Sentado na esplanada do restaurante Piri-Piri, em Maputo, Manuel Teixeira recorda o tempo em que pedia uma cerveja Laurentina ou uma 2M e os empregados lhe traziam um prato de camarões para acompanhar. «Eram os nossos tremoços», diz. Foi há mais de 35 anos e a cidade, então chamada Lourenço Marques, era a capital da província ultramarina de Moçambique.
O empresário português, que ao longo das últimas décadas viajou para o país regularmente, foi testemunha da prosperidade da época colonial, da miséria dos anos da guerra civil (Moçambique chegou a ser o país mais pobre do mundo) e do renascimento da última década em que os índices de crescimento atingem os sete por cento ao ano.
Mesmo assim, Manuel Teixeira não conseguiu evitar o choque quando regressou a Maputo em 1986, 11 anos após a independência de Moçambique. «Já não havia camarão para comer, quanto mais para petiscar. Foi todo levado para a China e para a Rússia em meganavios que aspiravam o fundo do mar sem critério. Por cá só se comia peixe frito, normalmente carapau, que os russos mandavam congelado como contrapartida pelo peixe e pelo camarão que levavam.» O acompanhamento era, normalmente, repolho e, com alguma sorte, arroz. Cerveja e outras bebidas alcoólicas eram um luxo ainda mais difícil de arranjar. «Só com cunha e, mesmo assim, era preciso enfrentar filas de várias horas. Estava tudo racionado», conta o português de 62 anos.
José Moreira, administrador das Cervejas de Moçambique, proprietária das marcas Laurentina e 2M, admite que nessa época era impossível abastecer eficazmente o mercado. «Tínhamos grandes dificuldades de produção. Faltava dinheiro para a matéria-prima e para substituir as peças que se iam avariando. No máximo, conseguíamos enviar dois ou três barris por semana para cada restaurante, o equivalente a sessenta-noventa litros. Mal chegava para um dia.»
João dos Santos, publicitário e responsável pela imagem destas duas marcas de cerveja, confirma: «Nos restaurantes estava estabelecido que só se podia vender uma cerveja por refeição. Quem queria beber mais, ia pedindo mais pratos de comida que se iam amontoando nas mesas, completamente cheios, ao lado das garrafas de cerveja vazias.»
A história das cervejas Laurentina e 2M começou, no entanto, muito antes destas convulsões. No início do século xx, um imigrante grego chamado Cretikos, que percorria os bairros ricos de Lourenço Marques a vender água fresca de porta em porta, apercebeu-se de que não existia gelo para conservar o peixe que todos os dias era descarregado nas docas da cidade. Foi assim que, em 1916, Cretikos abriu a primeira fábrica de gelo e de água mineral de Moçambique, mesmo em frente ao porto de pesca. Chamava-se Victoria Ice and Water Factory e foi um êxito imediato. Em poucos anos, começou também a produzir refrescos e a sonhar com a primeira marca de cerveja feita em Moçambique. Aconteceu em 1932, quando o grego viajou até à Alemanha para contratar um mestre cervejeiro que desenvolveu uma receita de cerveja de estilo europeu a que Cretikos chamou Laurentina, em homenagem aos naturais de Lourenço Marques - laurentinos.
A receita desta cerveja permanece secreta, mas sabe-se que uma parte do seu sucesso resulta da mistura de três maltes e de uma dupla filtragem a frio que lhe confere estabilidade. A Laurentina é até hoje a mais premiada de todas as cervejas de Moçambique. E as suas variantes clara, preta e Premium já lhe valeram diversos prémios internacionais, entre eles a medalha de ouro Monde Selection, na Bélgica.
No entanto, se costuma comprar cerveja Laurentina em Portugal, saiba que a verdadeira, produzida a partir da receita original de Cretikos, só está à venda em Moçambique, na África do Sul e em algumas lojas especializadas do Reino Unido. «A que aparece nos supermercados portugueses é uma imitação registada na Alemanha depois do 25 de Abril por um português que viveu em Moçambique no tempo colonial», esclarece o responsável de imagem da Laurentina, João dos Santos.
Depois de 36 anos a trabalhar diariamente com estas cervejas, o administrador José Moreira conhece bem estas e outras histórias. Abandonou o sonho de estudar Medicina para começar a trabalhar nas Cervejas de Moçambique assim que terminou o 12.º ano, pouco antes da independência do país. Acabaria por ir para a universidade mais tarde, mas para estudar Economia. «De um momento para o outro a fábrica perdeu mais de metade dos quadros, entre eles todos os técnicos qualificados que [em consequência da descolonização] partiram repentinamente para Portugal, para o Brasil e para a África do Sul», conta. «Por causa disso, o presidente Samora Machel [primeiro presidente de Moçambique, morto em 1986] decidiu que todas as pessoas que já tivessem concluído o ensino secundário tinham de começar a trabalhar nas áreas mais urgentes para manter o país a funcionar», esclarece José Moreira, 56 anos, que trabalha até hoje na fábrica da cerveja 2M, abreviatura de Mac-Mahon, uma marca quase tão icónica como a Laurentina, criada durante o período colonial português, em 1962. O nome desta cerveja é, aliás, uma homenagem ao antigo presidente francês Marie Edmé Patrice Maurice, conde de Mac-Mahon, que, em 1875, decidiu a favor de Portugal numa disputa com a Grã-Bretanha sobre qual dos dois países deveria ficar com a posse do Sul de Moçambique.
Ao contrário da Laurentina, conhecida por ser a cerveja das elites, a 2M - atualmente a cerveja mais consumida no país - afirmou-se, sobretudo, entre a classe mais pobre, chegando a ser vendida sem rótulo durante os anos da guerra civil, de 1976 a 1992. «Naquele tempo, só era possível reconhecer uma 2M pelo símbolo estampado na carica», conta João dos Santos, autor da primeira grande campanha de publicidade da marca, uma das principais responsáveis pelo êxito atual da 2M.
José Moreira lembra-se bem desta fase e diz que os rótulos eram o de menos. «As máquinas que usávamos na fábrica estavam completamente obsoletas. Trabalhávamos dois dias, parávamos uma semana», conta. Um dos episódios mais marcantes deste período foi a avaria irreversível da máquina pasteurizadora que fez descer o prazo de validade das cervejas de três meses para uma semana. «Após cinco dias, começavam a aparecer sedimentos dentro da garrafa e a cerveja começava a apodrecer.»
O administrador conta que, durante esses anos, a maior parte da cerveja vendida em Moçambique era imprópria para consumo. «O transporte para fora de Maputo era feito por barco. Só para chegar ao porto de Nacala, no Norte do país, demorava vinte dias - quando lá chegava já estava completamente fora do prazo. E dali ainda tinha de ser descarregada e distribuída até aos pontos mais remotos. Quando chegava ao consumidor já tinha pelo menos 45 dias.» No entanto, garante, nunca ninguém ficou doente nem apresentou qualquer queixa sobre a qualidade da cerveja.
O presidente Samora Machel conhecia bem as dificuldades de José Moreira. Costumava fazer inspeções à fábrica pessoalmente. Estas vistorias de surpresa, conhecidas como visitas-relâmpago, mantinham as empresas moçambicanas em sobressalto. «Uma vez apareceu cá à uma da manhã e encontrou a maior parte do pessoal a dormir, muitos homens bêbedos, de barba por fazer, descalços.» Foram despedidos.
José Moreira assistiu de perto à glória, à decadência e ao renascimento da Laurentina e da 2M e diz que as duas cervejas são também um reflexo da história recente de Moçambique. A empresa, que começou por ser privada, sofreu uma intervenção do governo de Samora Machel após a independência de Moçambique, em 25 de junho de 1975, e foi privatizada de novo já nos anos 1990 quando a multinacional Castel, proprietária da famosa cerveja Cuca, de Angola, comprou a Laurentina. Em 2002, a marca foi vendida, por fim, à multinacional sul-africana SABMiller, que comprou também a 2M e a cerveja Manica, muito popular na região centro/norte de Moçambique.
A primeira cerveja de mandioca do mundo
Neste mês, a empresa Cervejas de Moçambique, dona das marcas Laurentina e 2M, anunciou a criação da primeira cerveja de mandioca do mundo. Chama-se Impala e, de acordo com José Moreira, administrador da empresa, tem um sabor parecido ao das cervejas de malte, mas um preço mais baixo. Foi desenvolvida com um duplo objetivo: para ser consumida pelas camadas mais pobres da população, que se alimentam sobretudo desta raiz, e para ajudar os pequenos agricultores do Norte de Moçambique a escoarem os excedentes de mandioca que ficavam a apodrecer nos campos.
Neste mês, a empresa Cervejas de Moçambique, dona das marcas Laurentina e 2M, anunciou a criação da primeira cerveja de mandioca do mundo. Chama-se Impala e, de acordo com José Moreira, administrador da empresa, tem um sabor parecido ao das cervejas de malte, mas um preço mais baixo. Foi desenvolvida com um duplo objetivo: para ser consumida pelas camadas mais pobres da população, que se alimentam sobretudo desta raiz, e para ajudar os pequenos agricultores do Norte de Moçambique a escoarem os excedentes de mandioca que ficavam a apodrecer nos campos.