1º de Maio de 1974, momento ímpar de mobilização colectiva de que os portugueses rapidamente desistiram, o dr. Soares fez-se notar por um trabalho oratório, glosando, com toda a razão e propriedade, o mote “Que raio de país era aquele!?” – aludindo ele ao Portugal de Salazar e Caetano, da Pide e dos banqueiros, da guerra e da brutalidade, da miséria e ausência de direitos que, julgavam os presentes e muitos ausentes, acabara de ficar para trás.
Uns lembram-se, outros não, outros ainda fazem por esquecer, mas o facto entrou para a História. Agora acompanhem-me um pouco na evocação de acontecimentos dos últimos dias, escolhidos ao acaso entre outros do mesmo jaez, nesse país chamado Portugal. Dizem as notícias que a PSP, o corpo de polícia que manda os seus agentes comprar as fardas de trabalho e que deve dinheiro a três mil deles, gastou 300 mil euros na compra secreta de instrumentos marítimos e aéreos, entre os quais dois drones (aviões sem piloto), máquinas assassinas que têm feito as delícias do presidente Obama e das autoridades israelitas quando se trata de proceder a execuções extra judiciais de “terroristas” – seja lá o que isso for – através do mundo. Digamos que o drone tem funcionado como um longo braço de foras de lei, definição que assenta que nem uma luva ao caso de Portugal, onde, como têm afirmado as instituições competentes, não há enquadramento legislativo para uso de tais meios – deve ser culpa da Constituição. E tal como a compra foi um acto secreto, também as finalidades reservadas aos engenhos potencialmente letais são apenas do conhecimento das almas do negócio.
E por falar em negócio, recordo que, também segundo as notícias, o signatário da transacção, então comandante da PSP e entretanto demitido por, segundo o governo, não ter estado à altura dos acontecimentos na escadaria da Assembleia da República por ocasião das manifestações de agentes de forças policiais, foi colocado em Paris num cargo milionário que não existia. Falta-nos saber de quem são e em que apertos estarão presos os rabos dos envolvidos nesta criação de uma prateleira dourada na cidade luz para um alto funcionário do Estado demitido por indecente e má figura – foi essa, então, a interpretação governamental.
Dizem ainda as notícias que os quinhões principais dos CTT, essa empresa pública que sabia merecer os esforços dos contribuintes portugueses, ficam nas mãos de duas conhecidas entidades privadas, logo de bem, o Goldman Sachs e o Deutsch Bank. Do Goldman Sachs sabemos que o seu presidente se define como “um banqueiro a fazer o trabalho de Deus”, coisa meritória se partirmos do princípio de que foi abolido – o mais certo é ter sido em segredo - o mandamento “não roubarás”. O mundo vai conhecendo as tropelias de tal instituição e os portugueses também sabem que, além do falecido gestor responsável pelas privatizações, também o secretário de Estado do primeiro-ministro de Portugal tutelando as privatizações e as ligações com a troika foi um alto quadro do Goldman Sachs. Ele há coincidências, é verdade, mas em dois anos o governo português rifou a preço de saldo a EDP, a REN, os aeroportos, os CTT e os Estaleiros de Viana, e o mais que vier a seguir se lhe derem tempo.
Tudo boas áreas de negócio e que por um qualquer desígnio divino, quem sabe se devido à intermediação privilegiada entre o presidente do Goldman Sachs e o Senhor, têm de pertencer ao sector privado – ao mercado, pois, como sinónimo de liberdade e democracia. Quarenta anos depois, e dispensando o labor oratório, basta perguntar exclamando ou exclamar perguntando – que raio de país é este!?
Jornal de Angola, 17 de Dezembro, 2013