29 de dezembro de 2013

Ruy de Lacerda: Um dente que gerou uma amizade duradoura



Eu estava a cumprir o Serviço Militar, Obrigatório, no Batalhão de Engenharia, em Lourenço Marques, quando sou fulminado com dores na boca. Estávamos em pleno Janeiro de 1956. Procurei um médico dentista e aconselharam-me um que há pouco tempo tinha chegado e que dava consultas no Prédio African Life no segundo andar, mesmo ao lado do Cinema Gil Vicente.

Ali chegado, entrei para a sala de espera. Estava lá uma senhora e pouco depois abriu-se a porta do consultório. Saiu um homem e apareceu o médico. Era um homem bastante alto e já de cabelos brancos. Disse-lhe que estava com muitas dores. Ele pediu licença à senhora e mandou-me entrar. Esteve a analisar a minha boca e disse-me: Vou-te dar uma carta para entregares na tua Unidade, toma já este comprimido e amanhã de manhã, vais ter comigo ao Hospital.

Quando cheguei ao Hospital Miguel Bombarda, perguntei por ele na Portaria. Ligaram para ele e fui acompanhado por um servente a onde ele estava. Acompanhava-o o Dr. Pais, médico-chefe da Estomatologia. Fizeram-me radiografias e disseram-me que eu teria que ser operado, às gengivas. Marcaram-me para dois dias depois e deram-me uma carta para apresentar no Quartel e que eu lá estivesse às sete da manhã e em jejum.

Quando ali, fui com uma guia, soube que o médico tinha tido um desastre de viação na véspera e que seria o Dr. Pais que me iria operar. Eram onze da manhã, acordei num corredor, deitado numa maca. Sai dali, passei a Portaria, destranquei a motorizada e arranquei. Duzentos metros, mais adiante, a luz dos semáforos encadeou-me e estatelei-me, pois eu ainda estava com os efeitos da anestesia geral. Alguém me apanhou, meteu-me numa carrinha de caixa aberta e com a motorizada e levou-me à Engenharia, pois reconheceu o emblema das transmissões.

Depois fui internado, pois tinha dois golpes nos joelhos. O Comandante da Unidade, Tenente-coronel, Albano Moreira, ainda quis processar o Hospital, porque me abandonaram, quando eu estava à guarda desse hospital. Soube mais tarde que houve grandes pedidos ao Comandante para que ele não levasse avante o problema. Aquele comandante era um homem recto, muito respeitado por todos os Oficiais e que o diga o então Comandante da Companhia, Capitão Almeida Pina, que haveria de ser o Ministro das Obras Públicas do Primeiro Governo, após a Revolução dos Cravos. Depois fui ver o Dr. Lacerda ao quarto onde estava internado.

Assim nasceu uma amizade, duradoura, tendo-me franquiado a sua casa e família. Ele levou para ali um dos primeiros carros “Ford Taunus”. Como tinha o volante à esquerda, foi uma distracção dele, que provocou o desastre, onde teve fractura duma perna e várias escoriações.

Na sua secretária do consultório, tinha uma foto de duas belas mulheres jovens. Eram suas filhas do primeiro casamento. Deste seu novo casamento, tinha duas meninas. Quando casei, estiveram no meu casamento e tanto aparecia-mos na sua casa, como eles iam á minha. Ambas as filhas queriam ser madrinhas da minha filha. Resolvemos que uma seria madrinha no Civil e a outra na Igreja. Só que quando fomos registar, a Irene, não podia, por ser menor. Acabou por ser a mãe, que também se chamava Irene. Fui das primeiras pessoas em L. Marques a ter uma placa esquelética. Foi feita no Largo do Carmo, em Lisboa, com molde que ele tirou

O Dr. Ruy de Lacerda, era um homem bastante alto e robusto. Não era de muitas borgas e não tinha muitos relacionamentos, mas era duma gentileza fantástica. Tinha um vício. Filmar em 8 m/m, a natureza. Muito especialmente os animais selvagens. Todos os bocadinhos que tinha, aí estava ele e família a caminho do Kruger Park. Foi das primeiras pessoas do mundo, que consegui filmar o acto sexual de um casal de leões.

Dizia-me ele: “Olha…só há dois animais de que tenho medo. São as cobras e as mulheres.”

Tinha alguns segredos que nunca quis compartilhar. Também nunca me interessou. Não gostava de falar da vida passada e que tinha ido para África para esquecer. Dizia-me: “Sabes, eu só sou Estomatologista há pouco tempo, um dia talvez te conte.” Um dia, sua mulher, disse-me: “Olha Humberto. Ele perdeu na sala de operações, o filho dum grande amigo. Tudo porque o Hospital, onde prestava serviço, não tinha a ferramenta necessária. Jurou a si mesmo que nunca mais.”

O Dr. Lacerda era uma pessoa com muitas ideias viradas para a igualdade de tudo e de todos (esquerda). Uma coisa que o afligia era o Apartheid.

Quando começou a guerrilha, ele embora não o dissesse abertamente, era todo Frelimo. Ele era pela Independência de Moçambique, pois Lisboa era um atraso na maioria das coisas e em Portugal, não se via ao longe. Só que por ironia do destino, teve que fugir com a família, através da Africa do Sul, pois de contrário deixaria ali a sua cabeça. Ele desapareceu e como lá fiquei um ano após a Independência, o nosso elo de ligação, acabou.

Um dia, ia eu no comboio na Linha do Norte e oiço uma pequena conversa, entre duas senhoras de Santarém. Uma dizia para outra: “E o que te disse o Dr. Ruy de Lacerda?” Os meus ouvidos pareciam ter ouvido música celestial. Perguntei se era um homem alto e de cabelos brancos. Que sim. Dava consulta na Caixa. Saí em Santarém e fui á sua procura. Estava de férias, mas deram-me o número do seu telefone.

Ninguém atendeu. Depois de algumas tentativas, durante algum tempo, um dia atendeu-me a minha comadre Irene. Foi uma festa. Passámos a falar de vez em quando, mas nunca chegámos a estar juntos. Até que um dia o telefone toca. Era o Dr. Ruy. Estava nas termas de São Pedro do Sul. Perguntava se eu lhe dava asilo por uma noite. O tempo que queira, disse eu. Então conta connosco, eu e a Irene amanhã para o almoço. Antes de sair telefono. Apareceram era quase meio-dia, vindo de táxi.

Nesse dia fechei a minha Perfumaria, pois já não haveria nada para ninguém. Estavam velhotes. A Irene muito mal das pernas, embora fosse muito mais nova do que ele. O Dr. estava com 94 anos de idade. Isto aconteceu, há uma dúzia de anos. Já não preciso, mas foi antes de eu ter acabado com a Perfumaria em 1998. Pus o meu quarto á disposição deles. Almoçámos, falámos, falámos e então, abriu uma pasta e começou a mostrar-me documentos, a maior parte com os selos de Universidades e outros documentos em papel selado.

Ele tinha sido o Assistente do PROFESSOR DOUTOR EGAS MONIZ. Esse era um dos seu segredos tantos anos guardado. Pediu-me para o levar a Avanca, à Casa-Museu do seu MESTRE. Foi um momento, que me tocou muito fundo, ao ver um homem, que metia respeito, a chorar como uma criança. Passaram aqui a noite e depois levei-os de carro a Aveiro, onde apanharam o comboio. Telefonou-me, já de casa, a agradecer tudo e a pedir desculpa, de me ter tantos anos ocultado o caso.

Ele tinha um nome muito comprido, mas é daquelas coisas, que sendo amigos, não interessa. A mulher, sei agora ao ver o acento da minha filha, chamava-se Irene Lucinda Brames de Lacerda. Depois disso falámos algumas vezes. Um dia telefono e nada. NUNCA MAIS SOUBE NADA DELE.

Já depois de escrever, este pequeno tributo aquele grande homem, somente devido a ter estado a digitar fotos antigas, consultei o Wikipédia. Muitos Ruy de Lacerda. Nada sobre o meu amigo. Lembrei-me de consulta, Egas Moniz. Lá está o Dr. Ruy de Lacerda, como colaborador, mas nada mais diz.

Fonte: Recardenense (Humberto Almeida)