9 de janeiro de 2015

Conto de Natal: -u-cão de fogo (Altino Serrano, Cidade da Praia)



Jacinto era uma criança feliz de sete anos, que vivia em Chã das Caldeiras, na Ilha do Fogo, em Cabo verde. Nasceu a 25 de dezembro, dia em que celebrava o Natal e o aniversário. A sua terra era um paraíso de frutas e alegria: em casa, entre pais e irmãos, na escola, com os companheiros e no campo, com os animais e, especialmente, Bobi, o cão do qual nunca se separava.

Mas houve um ano em que não teve festa de Natal nem de aniversário. É que o vulcão da sua ilha zangou-se, começou a descer o monte, ameaçando a felicidade de Jacinto. Em poucos dias, tudo engoliu o vulcão: a casa, a igreja, a escola, os campos… Chã das Caldeiras, arrasada, desapareceu engolida pelo fogo e levada para o ventre da Terra como Jonas para o da baleia!

A maior dor de Jacinto foi não ter salvado Bobi, o cão, trancado no quarto, pela lava que entrou casa adentro!

Os pais ficaram sem nada. A família foi deslocada para outra parte da ilha. Mas nada aí encontrava do seu paraíso perdido… Ao fim de uns meses, como outros foguenses ao longo da história, a família partia para os Estados Unidos, a “terra prometida” de muitos cabo-verdianos. E, numa manhã, raiada de luz, desembarcam em Ellis Island, em Nova Iorque, recebidos pela estátua da liberdade.

São levados para as margens do lago Erie, onde Jacinto, no início, parecia imaginar a sua ilha, feliz, e reencontrar o monte do vulcão, a água do mar, a verdura do campo, os animais… Apenas Bobi lhe não saia da cabeça e nada lho fazia esquecer.

Jacinto cresceu, estudou e especializou-se em geologia: queria conhecer o interior da Terra, seus segredos e mistérios…

Era agora um homem maduro e, aos sábados, de verão e de inverno, o seu passatempo era pescar no grande lago e ver o seu filho, Roby, brincar na relva e andar de bicicleta… Aí tinha a impressão de estar na sua ilha. Por vezes, vinham-lhe à mente ecos da verdade cabo-verdiana, ouvida sempre, “não há partida sem regresso…”.

Nessa altura, houve um inverno com tanta neve e frio que não puderam dar o passeio durante três sábados. Foi na véspera de Natal que voltaram ao lago. Havia blocos de gelo por toda a parte. Roby passou a tarde a brincar com eles. Mas gostou especialmente de um, muito transparente, que parecia uma casa e, no meio, era muito vermelho. Parecia que tinha fogo. Pegou nele enquanto o pai pescava e, sem que ele visse, zás… meteu-o no saco térmico do pescado.

De regresso a casa, foi a ceia de Natal com a família alargada, os tios, os primos, que cheaeram de outras regiões… Roby e os primos ouviram histórias de Cabo Verde, da Ilha do Fogo, da vinda dos mais velhos, depois do vulcão do grande Novembro. Cansados, já tarde, todos foram deitar-se.

Era a hora de Jacinto ir pôr as prendas na árvore de Natal, no salão. Ao entrar, dá de caras com um vermelhão num ramo. Uma prenda, que já lá estava… Era um cão de fogo que, em suave melodia da sua infância, lhe canta e conta:

– Atravessei o ventre da Terra, dentro da tua casa, o fogo, a água e o gelo do lago, onde Roby me tomou. E sem ele ver, plantei-me aqui: sou um presente do mistério da vida, da terra e da poesia… para ti!

Sem palavras, Jacinto limpa duas lágrimas furtivas, que não contém.

Altino Serrano

Cidade da Praia, Cabo Verde

Recebido por email pelo autor. Altino Serrano é pseudónimo.