Ministro dos Negócios Estrangeiros logo após o 25 de Abril de 1974 (I, II e III Governos Provisórios), Mário Soares, em entrevista com Dominique Pouchin, apresenta a sua versão sobre o processo de descolonização.
Na medida em que nele foi parte activa, editamos aqui o que faz registar sobre o assunto.
Referência bibliográfica:
Mário Soares. Memória viva. Entrevista com Dominique Pouchin. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2003 (Biblioteca "Primeiras Pessoas"- vol. I).
A DESCOLONIZAÇÃO PORTUGUESA
- A revolução nascera das guerras coloniais, e a primeira das urgências era pôr fim a essas guerras. Nessa altura o senhor começa a negociar com cada um dos movimentos nacionalistas. Começou, de certa forma, pelo mais fácil, pela Guiné, a seguir trabalhou em relação a Moçambique, e finalmente Angola. Como se passaram as coisas com os Guineenses?
É preciso começar por dizer que não existia uma visão política homogénea no seio do governo provisório. Na ausência de coordenação, cada um fazia mais ou menos aquilo que entendia. Quando aceitei a pasta dos Negócios Estrangeiros, tinha uma ideia para levar a bom termo a descolonização. Pretendia fazer assinar rapidamente um cessar-fogo nos territórios em guerra, para acabar com ela localmente. Mas tinha de respeitar o presidente Spínola, o qual possuía os seus próprios pontos de vista nessa matéria. Ele desejava a constituição de um processo sob controlo armado, para chegar a uma espécie de "Commonwealth portuguesa". Numa altura em que a opinião pública apelava à manifestação nas ruas a favor das independências, da fraternidade e da paz, isso era claramente impossível. A população reclamava o regresso dos seus soldados ao País. As tropas portuguesas estacionadas no Ultramar começavam, também elas, a confraternizar com os nacionalistas. A política de Spínola era, por conseguinte, irrealista. Do lado oposto, havia a visão do Partido Comunista. Convém lembrar que, naquela época, nos aproximávamos do período da máxima expansão da União Soviética no Mundo. Os comunistas portugueses desejavam fazer entrar as antigas colónias portuguesas na esfera de influência soviética, uma vez que elas albergavam no seu seio movimentos de tendência comunista. Estávamos então em 1974. Finalmente, uma terceira tendência era a que preconizava Melo Antunes, um tenente-coronel do Exército português e ao mesmo tempo um intelectual, que me sucedeu no ministério dos Negócios Estrangeiros. A sua ideia de descolonização negociada estava mais próxima da minha, sem ser exactamente a mesma. Ele era muito "terceiro-mundista". Então cada um começou a trabalhar para seu lado.
Encontrei-me com Agostinho Neto, dirigente do Movimento Popular de Libertação de Angola, no dia 2 de Maio de 1974, em Bruxelas, mas dois dias mais tarde, Spínola enviava um embaixador (...), para se encontrar com ele na Suiça. Quanto aos comunistas, esses avançavam com os seus negócios através de Moscovo. Os dirigentes africanos compreenderam então que cada um de nós conduzia uma política própria, o que lhes abria possibilidades de negociação. Naquela altura, enquanto ministro, estabeleci os primeiros contactos com Aristides Pereira, o dirigente guineense que encontrara em Dakar, no Senegal, com quem consegui negociar um cessar-fogo. No próprio dia do cessar-fogo a guerra estava terminada na Guiné, sem nada acordar em troca. Isso para nós foi um importante sucesso. Relativamente à minha proposta, a seguir encontrámo-nos em Londres, para pôr a funcionar as modalidades da transição do poder, porque naquela altura ainda não se falava de independência. Mas, no momento em que chegámos a Londres, fomos informados das ordens estritas de Spínola, que não queria conceder a autodeterminação. Ora ao proibir ao PAIGC que se exprimisse, não era possível manter o cessar-fogo. O ministro dos Territórios das antigas colónias, o meu amigo António de Almeida Santos, e eu estávamos francamente embaraçados, pois não dispúnhamos das menores condições para uma verdadeira negociação. A seguir, estabeleci contactos com os Angolanos, eles próprios divididos em três movimentos nacionalistas diferentes. Precisávamos de negociar com os três, o MPLA pró-soviético, a UNITA de Jonas Savimbi, que naquela época estava muito próxima dos Chineses e a FNLA, o movimento de Holden Roberto, próximo do Congo e dos Americanos.
O xadrez tornou-se ainda mais complexo, quando foi igualmente necessário levar em conta Moçambique. Encontrei-me então com Samora Machel, presidente da FRELIMO, o movimento da independência, o qual veio a ser Presidente do seu país em 1975. Isso aconteceu na Zâmbia. (...). Encetámos então as negociações. Mas estas vieram a verificar-se mais difíceis, porque Chissano, o número dois de Samora, e actual Presidente, avisara-nos que o cessar-fogo só seria respeitado uma vez obtidas as garantias solenes da nossa parte quanto ao reconhecimento da FRELIMO como representante legítimo do povo Moçambicano. Houve um acordo verbal, abraços e novos aplausos, mas quando nos sentámos à mesa das negociações, eles recusaram-se a assinar. E os Guineenses regressaram com a mesma disposição.
- Portanto, a FRELIMO por um lado, o PAIGC por outro, tal como Angola, exigiam que Portugal os reconhecesse como representantes dos seus povos antes de qualquer cessar-fogo.
E isso, no preciso momento em que o cessar-fogo entrava espontaneamente em aplicação no terreno. (...)
- O caso mais difícil continua a ser, mesmo assim, o de Angola.
Angola foi sem dúvida o caso mais complexo, em virtude da realidade dos movimentos pró-independentistas. As outras colónias ainda não pensavam na descolonização. Nem Cabo Verde, nem São Tomé, nem Timor estavam em guerra, e os Indonésios, naquela altura, não queriam ouvir falar de descolonização. (...)
- O senhor assinou os acordos de descolonização em Alvor, no Algarve, em Janeiro de 1975?
Nessa altura, Spínola já estava afastado do poder. O Presidente da República era o general Costa Gomes, e eu ainda era ministro dos Negócios Estrangeiros. Os acordos de Alvor, com os três movimentos angolanos, que estabeleciam a independência de Angola, foram assinados em Janeiro de 1975, por Almeida Santos, Melo Antunes e por mim. E, pela parte de Angola, por Jonas Savimbi, Agostinho Neto e Holden Roberto, os líderes dos três partidos nacionalistas: UNITA, MPLA, FNLA. Esses acordos de Alvor fixaram as modalidades de independência. O último soldado português deveria abandonar o território angolano antes de 11 de Novembro de 1975. Em contrapartida, não assinei os acordos com Moçambique, mas apenas assisti, após os acordos, ao acto de independência de Moçambique, no Maputo, assim como também não negociei, uma vez que já não era ministro dos Negócios Estrangeiros, a independência de Cabo Verde e São Tomé. Em Março de 1975, tive de abandonar a minha pasta. Após o 11 de Março de 1975- data do golpe militar atribuído ao general Spínola, que teve de fugir para o estrangeiro- tornei-me ministro sem pasta... e sem poder. (...)
- Que balanço faz dessa descolonização portuguesa, que representa o último império ocidental?
Com o distanciamento e a perspectiva histórica que hoje possuo, julgo que não havia outro caminho senão conceder a independência às colónias, o que fizemos num tempo recorde. Fomos forçados a isso pela pressão internacional e pelas condições internas portuguesas. Disse-se, posteriormente, que a descolonização tinha representado um trauma para aqueles que viviam nas colónias. Não nego que alguns dos que acreditaram poder lá ficar tivessem depois tido de fugir e regressar a Portugal, sem trabalho, sem dinheiro, sem casa. Isso é efectivamente traumatizante, mas todos os processos de descolonização passam por aí. Penso que, apesar de tudo, temos a nosso favor a rapidez com que concluímos o processo, e a generosidade que nos guiou nessa obra de descolonização. Foi isso que nos abriu o caminho do futuro!
- Mas deixaram em Angola uma guerra civil que nunca cessou depois disso.
Não se pode misturar guerra civil com descolonização. Quando a independência foi proclamada unilateralmente pelo MPLA, a UNITA contestou de maneira muito forte, e a isso seguiu-se uma guerra civil que durou até à morte de Savimbi. Em Moçambique, a guerra civil foi posterior à independência. A FRELIMO era naquela época um partido marxista-leninista, e a guerra só aconteceu depois de ter aparecido um outro partido, a RENAMO, não marxista, apoiado pela África do Sul. Ao princípio, todos os movimentos nacionalistas africanos de expressão portuguesa estavam próximos da União Soviética e pretendiam construir nos seus países regimes ditos democracias populares, de partido único. Ora isso não era possível em África, nomeadamente por causa do contexto europeu e da guerra fria.
Na perspectiva portuguesa, não poderíamos ter feito outra coisa: o 25 de Abril de 1974 era para nós sinónimo de liberdade, e não podíamos fazer outra coisa a não ser pôr fim às guerras coloniais. As condições sociológicas em que conduzíamos aquelas guerras condicionavam-nos completamente, e era-nos impossível continuar. Os militares portugueses, cansados de uma guerra colonial sem saída, recusavam-se a combater. Já ninguém acreditava na guerra, e a paz só poderia desembocar num mundo novo e na independência. Por conseguinte, fomos forçados a conceder a independência, de acordo com as Nações Unidas, e fizemos bem.
Salazar e Caetano eram incapazes de dialogar, incapazes de perceber a realidade. Eram autistas, no sentido político do termo, e deixaram a situação apodrecer. Pela nossa parte, conseguimos descolonizar sem demasiados choques, e actualmente temos boas relações com as nossas antigas colónias. (...)
Fonte: Internet