24 de maio de 2015

Retornados: a palavra possível nasceu há 35 anos (parte II)



"Os recentes acontecimentos de Moçambique e outros que se lhe possam seguir, devemo-los considerar como esporádicos, meramente emocionais, ação duma minoria que aproveita a falta de informação ou a informação desvirtuada em que o anterior regime deixava as populações das colónias." - Datada de 15 de Outubro de 1974, esta Informação de Serviço do Ministério dos Negócios Estrangeiros/Comissão Nacional da Descolonização contém as linhas mestras da atitude do Estado português sobre o que nesse mesmo período acontecia nos territórios sob sua administração em África e na Ásia. Ou seja, oficialmente não acontece nada que não esteja previsto e controlado. Tudo o que não coubesse nesta moldura era apresentado como o resultado duma minoria emocionalmente descontrolada e de forma consciente ou involuntária afeta ao regime anterior.

É também este paradigma que vamos encontrar nas pequenas notícias que até ao início de 1975 vão dando conta do "êxodo dos brancos"; da "fuga injustificada" e do "alarmismo temporário" dos colonos. Não interessa que os primeiros retornados não tenham sido maioritariamente brancos, pois se por retornado se entender aquele que abruptamente muda o seu local de residência para o sítio onde nasceu constataremos que os primeiros retornados não são brancos mas sim os negros dos musseques de Luanda que em Julho e Agosto de 1974 deixam a capital angolana rumando a Malanje e demais terras de origem; os mais de mil cabo-verdianos que nesse mesmo período são levados numa ponte aérea de Angola para o seu arquipélago; os nunca quantificados trabalhadores cabo-verdianos que no Verão de 1974 são embarcados em Lisboa com direcção a Cabo Verde, e ainda os comerciantes de origem libanesa que nesse mesmo Verão deixam a Guiné-Bissau. É certo que pelo mesmo tempo milhares de brancos começavam então a enviar os seus bens por via marítima e a tratar dos papéis para que os seus automóveis pudessem circular nas pequenas estradas daquilo a que chamavam metrópole, mas até Setembro de 1974 esse "retorno" em direcção a Lisboa ainda não é por eles encarado como definitivo.
Do ponto de vista informativo os retornados são vítimas de vários preconceitos, mas aqueles que não "retornaram" para Portugal mas sim dentro de África e que para cúmulo não eram brancos nem sequer são mencionáveis. No desacerto que os retornados eram, os negros e mestiços eram um desacerto ainda maior.
Retratados pelos governantes e jornalistas de então como "homens desejosos de viver num mundo que acabou", grupo "que quer manter privilégios", pessoas que entraram em pânico sem qualquer razão e "gente que não porfia", aos portugueses de África não só não foi permitida a expressão da sua vontade como, muito mais grave, foi-lhes proibida, sobretudo em Moçambique, a simples manifestação de opiniões contrárias ao que Lisboa decidia ou dizia que decidia.
A legislação aprovada pelo Alto-Comissário português em Moçambique, Vítor Crespo, só é equiparável à dos países totalitários: a 28 de Outubro de 1974, Vítor Crespo assinava o Decreto-Lei n.º 8/74 que estabelecia que "Todo aquele que dolosamente propalar notícias falsas ou tendenciosas que possam alterar a ordem ou a tranquilidade pública, paralisar as atividades económicas e profissionais, causar a intervenção desnecessária das autoridades públicas, ou por qualquer modo causar injustificado alarme público será punido com pena de dois a oito anos de prisão maior."
Dias depois, a 2 de Novembro, novo Decreto-Lei, o n.º 11/74, endurece ainda mais a repressão: não só os chamados crimes contra a descolonização têm as penas de prisão aumentadas como "os indivíduos suspeitos da prática de crime contra a descolonização ficarão sob a custódia das autoridades militares até à decisão com trânsito em julgado dos respetivos processos". No mesmo dia, 2 de Novembro, outro decreto, o n.º 12/74, depois de considerar que certas garantias individuais "só podem realizar-se inteiramente num clima de completa estabilidade social" determina que os detidos suspeitos da prática de crime contra a descolonização não beneficiarão de habeas corpus. Na prática podia prender-se quem se quisesse, porque na definição de crime contra a descolonização cabia tudo, desde a expressão de ideias numa esplanada até produzir menos vegetais numa fazenda. Podiam também colocar-se os detidos em parte incerta pelo tempo que se quisesse e entregá-los a quem se considerasse que exercia a autoridade militar, estatuto que em 1974/1975, em Moçambique, era perigosamente difuso. Aliás os portugueses de Moçambique, pelo menos aqueles que desempenhavam cargos na administração pública, correram ainda o sério risco de terem um estatuto próximo do de trabalhador forçado em país estrangeiro pois o Alto-Comissário português naquele território tentou impedir a transposição do decreto que previa o Quadro de Adidos, figura legal que permitia aos funcionários públicos nas ainda colónias pedirem a transferência para Portugal. Como explica num telegrama que envia para Lisboa, Vítor Crespo teme que a promulgação do decreto dos Adidos "implique saída mais ou menos imediata todos os funcionários", o que segundo ele violaria os acordos de Lusaka.
Impedir os funcionários públicos de deixar Moçambique torna-se a alternativa que chega a estar em cima da mesa: 4 de Novembro de 1974, a Comissão Nacional da Descolonização discute, em Lisboa, a proposta de se "estabelecer a obrigatoriedade de serviço pelo espaço de tempo de dois anos" aos funcionários públicos de Moçambique. Valeu a estes últimos uma intervenção de Almeida Santos explicando aos presentes que era impossível obrigá-los a ficar.
Assim, quando a sua fuga se torna um facto incontornável e apesar de tudo se passa a admitir que alguns têm razões para fugir, os retornados passam a ser vistos como um problema político, como se percebe por este texto incluído no Boletim Informativo das Forças Armadas quando em Maio de 1975 aborda finalmente esta questão: "Não menos graves serão para Portugal as consequências dum afluxo significativo a partir de Angola: aumento da taxa de desemprego para um valor crítico, com o consequente aumento da instabilidade social; enfraquecimento dos laços culturais, políticos e económicos a estabelecer com Angola, de imediato e primordial interesse para a revolução portuguesa; redução das possibilidades de ligação ao terceiro mundo; inserção na sociedade portuguesa de população traumatizada e talvez couraçada contra a revolução, que identifica como causa dos seus males; e, finalmente, o aproveitamento que a reacção interna e internacional não deixará de fazer, na tentativa de desacreditar a descolonização e, por ela, todo o processo revolucionário português e o MFA."
Na mesma linha de precaução contra esta gente "couraçada contra a revolução" que se recusa a ficar em África para fortalecer os laços culturais com o terceiro mundo temos tomadas de posição contra a sua integração por parte das estruturas sindicais: o Sindicato dos Delegados do Procurador da República manifesta-se contra o decreto que permitia "o ingresso indiscriminado dos magistrados judiciais e do Ministério Público das colónias na magistratura portuguesa". O caso dos professores é ainda mais grave: chega a ser convocada uma greve para protestar contra a decisão do Ministério da Educação de integrar os professores provenientes das colónias. Como o politicamente correcto não existia na época, ficaram também registadas as decisões de comissões de moradores e juntas de freguesia contra a inclusão dos "regressados de Angola" nos bairros sociais.
Mas mais uma vez as palavras pouco podiam contra os factos: os retornados existiam. E tal como apareceram muito antes de se admitir que existiam também vão terminar muito depois: até 1977 eles vão continuar a chegar. A todos os concelhos de Portugal chegaram retornados. Muitos transportaram para Portugal o espírito de auto-emprego que praticavam em África e abriram negócios nos mais adormecidos locais deste país. À falta de reconhecimento oficial, os cafés Nova Lisboa, as oficinas Cabinda, as mercearias Bilene, as pensões Mussulo... são o testemunho das suas histórias e que por causa da História não nos deu jeito ouvir.
Helena Matos
Fonte: Público, 11.03.2010