A 15 de Março de 1961, cinco a seis mil portugueses foram assassinados em Angola. Esses mortos nunca estiveram no lugar certo. Antes do 25 de Abril de 1974 eles foram inconvenientes porque, numa primeira fase, atestavam a imprevidência do regime que não acautelara a segurança daquelas pessoas como era sua obrigação, e posteriormente porque a vontade de mostrar que a guerra estava reduzida à Guiné e a algumas zonas de Moçambique levava a que estes mortos fossem esquecidos.
Após o 25 de Abril estes portugueses continuaram a ser omitidos, pois os seus corpos repetidamente violados, empalados e queimados atestavam na brutalidade de que tinham sido vítimas que aquilo a que se chamava movimentos de libertação não tinham nada de libertadores nem de civilização. Antes pelo contrário. E sobretudo porque esses cadáveres de brancos, pretos e mulatos não se coadunavam com o decálogo revolucionário que transformava os fazendeiros brancos em opressores contra os quais se tinham levantado os seus trabalhadores negros.
A forma como gerimos a memória da guerra do Ultramar entre 1961 e 1975 e como escamoteámos os outros períodos de guerra nesses mesmos territórios durante o século XX são sintomáticas de um dos nossos erros mais trágicos como país: identificamos quem governa com o povo. Confundimos o regime com o país. Em resumo, não distinguimos a política da História. Dos Descobrimentos aos Lusíadas, sem esquecer Aljubarrota ou a Mensagem de Pessoa, tudo é sujeito a essa captura da História pela política.
Ainda esta semana os EUA homenagearam o seu último combatente na I Guerra. Sem mais. Em Portugal, o Estado Novo nunca foi capaz de tratar com respeito as razões que levaram Afonso Costa e António José de Almeida a defender a participação de Portugal nessa mesma I Guerra, tendo as romagens ao monumento dos combatentes acabado por tornar-se uma manifestação da oposição ao regime. De igual modo, o monumento aos mortos na guerra do Ultramar é ainda uma espécie de incómodo para a democracia, que nem consegue chamar-lhe guerra sem lhe colar o adjectivo colonial.
Cinquenta anos depois dessas e de tantas outras mortes, esse mundo do colonialismo e do anticolonialismo em que se fundaram as independências africanas começa a esboroar-se. Hoje, além de Khadafi, que grita aos quatro ventos que é vítima de uma conspiração colonial, poucos recordarão que pelos anos 60 e 70 o mundo se dividia em três mundos, e que o Terceiro Mundo, esse de que faziam parte líderes como Khadafi e outros que agora passaram a ditadores, nos era apresentado (por exemplo nos livros escolares dos anos 70) como o mais puro e generoso de todos eles.
À luz deste entendimento do mundo, os mortos no ataque às fazendas de Angola em 1961 pagavam o preço de estarem no continente errado, pois “África era para os africanos” e os africanos só podiam ser negros. Assim dito, e à luz do politicamente correcto de hoje, soa a racismo, não é? Também me parece. E confesso que receio que algum francês adepto da família Le Pen descubra que, em pleno PREC, os portugueses fretavam voos para repatriarem os cabo-verdianos de Lisboa para o seu arquipélago, pois consideravam que era lá o seu lugar, coisa da qual eles não pareciam muito convencidos, apesar do esforço da Intersindical em motivá-los para que rejeitassem ser explorados por brancos na Europa e regressassem ao lugar donde, segundo esta concepção do mundo, nunca deviam ter saído.
Os tais líderes anticoloniais que começaram a ser incensados pela esquerda como revolucionários e que depois a direita transformou em parceiros e homens de Estado, ameaçam agora os governos da Europa com algo de que estes achavam que se tinham desembaraçado quando apostaram no sonho europeu: África. Khadafi sabe bem que a Europa treme perante a imagem de uma África desembarcando sob a forma de milhares de negros nas suas praias cheias de bandeiras azuis e bares homologados.
Mas uma coisa é a política e outra a História. Como provavam os cadáveres de negros, brancos e mulatos caídos nas fazendas de Angola em 1961 não era preciso ser negro para viver e morrer em África em 1961. Como também não deve ser necessário ser branco para viver na Europa de 2011.
PÚBLICO, 15 de Março 2011