20 anos depois, na sua casa da Rodrigo da Fonseca, o velho africano de Sumbe pede: “não me falem de Angola, não quero saber”; e contudo, durante anos, frequentou a tertúlia dos angolanos ao Rossio.
A conversa passa-se na varanda de uma vivenda algures na província do Quanza-Sul, numa cidade hoje chamada Sumbe (então Novo Redondo). Diz o militar recém-chegado da metrópole ao cunhado: “tira daqui o teu dinheiro, vende a casa, isto vai rebentar”. Responde o outro: “esta é a terra onde nasci meu caro, os meus filhos são do planalto, os netos crescerão angolanos e os meus ossos cá apodrecerão – só morto saio da minha terra”.
No ano de 1975 ocorreu uma das maiores e mais rápidas transumâncias humanas de que há memória: mais de meio milhão de pessoas deixaram casas e haveres e voltaram a uma terra de que boa parte delas não partira. O êxodo foi também um dos que se fez a maior distância, dos fundos de África à Ocidental praia lusitana.
O cunhado do militar não saiu de Sumbe até não ter outro remédio: os sul-africanos aproximavam-se e quase todos os europeus (eufemismo usado para evitar que me acusem de racismo) já tinham partido. Ao chegar ao exílio, desabafou: “só restava eu”.
De Angola veio o maior contingente, Moçambique foi logo a seguir, em muito menor número os exilados de Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, e foi tudo. Não foi tudo: acompanhou a ponte aérea – e a marítima, em muitos casos – um sofrimento que nenhuma notícia transmitiu fielmente, porque em Portugal, na velha metrópole, viviam-se dias de chumbo, e a comiseração pelo mal alheio, mesmo de compatriotas distantes, era bem escasso.
Vi com meus olhos visto o seguinte: algures em Janeiro de 1975, após os Acordos de Alvor (como os adjectivar?), um unimog (julgo) estacionou na Praça Maria da Fonte, antiga dos muatas, cerca do mercado do Kinaxixi. Dele desembarcou um grupo de soldados. Experiência efémera de integração, o contingente compunha-se de 2 membros de cada um dos movimentos de libertação e de 2 soldados portugueses. Destacavam-se estes, em comparação com os africanos, pelos cabelos compridos, barba por fazer e o geral estado de abandalhamento inspirado no PREC metropolitano. Portugal no seu pior?
Sobre a descolonização portuguesa foram muitas as vozes e poucas as nozes. Marcelo Caetano: “não é tão fácil (descolonizar) em territórios onde se formaram grandes e prósperas sociedades (…) já desenvolvidas economicamente (…) Em sociedades assim (…) não é possível de um dia para o outro levantar as tendas e partir, abandonando tudo a que se criou amor, – para quê…?”; Mário Soares em entrevista ao Der Spiegel em 1974: “P- O que será dos brancos que não querem ficar em África? Em Moçambique já se iniciou entre os brancos um grande movimento de fuga. R – É verdade. Mas estou certo que 2 anos após a independência e quando as instituições do País funcionarem razoavelmente, haverá mais portugueses em Moçambique que hoje…”; e a reivindicação: Nem mais um soldado para as colónias! De tudo um pouco se ouviu e, a cada cabeça, sua sentença. Ainda hoje, realce-se.
Mas não é a questão política que quero evocar. É o aspecto humano da descolonização. A ponte aérea. A noite de Luanda em que os aviões da Tap sobrelotados foram alvo de tiros provenientes dos musseques vizinhos e levantaram em quase total escuridão, rumo a Norte. Os caixotes nos cais, milhares. As casas abandonadas, as famílias dispersas. O medo. O medo.
20 anos depois, na sua casa da Rodrigo da Fonseca, o velho africano de Sumbe pede: “não me falem de Angola, não quero saber”; e contudo, durante anos, frequentou a tertúlia dos angolanos ao Rossio. Nos dias do fim, já quase não saía de casa, leu-me de um papel amarrotado um poema: “Parado junto à praia a olhar o mar,/Sozinho é da família o último membro./Arrasta-se a semana, a não passar,/Nos dias ainda frescos de Setembro.//Sem mais para fazer cruza a cidade/Num caminhar sem rumo desgarrado/E a cada passo entranha-se a saudade/E o chão que pisa é chão do seu passado.//Da áfrica mãe despede-se, o seu filho/Regressará a um país de que não veio./Cultivará batata e vinha e milho//e não mais o café do seu destino,/e nunca mais os trópicos no seio/papaia ou mandioca. Só pepino…”. Perguntei quem o escreveu, sorriu sem responder… morreu semanas depois.
Ao chegar à metrópole, angolanos, moçambicanos e os outros foram rotulados de retornados… mesmo os que nunca tinham posto pé em solo europeu. Foi criado o IARN, uma espécie de administração pública só para eles. Instalados em campos de férias e muitos outros locais, a maioria trazia no bolso apenas os 5 mil escudos dados pelos governo e no coração saudades do solo vermelho, do cheiro a terra. Do cacimbo pleno e dos horizontes rasgados. Do mítico raio verde que poucos entreviram, mas alguns viram. Ao chegar, foram recebidos como intrusos: eles eram os que tinham vivido a explorar os africanos, à tripa forra; pois agora que penassem, podia lá ser que viessem roubar os empregos aos de cá. Mas depressa foram aceites e poucos anos depois já ninguém falava dos retornados: cruzamo-nos todos os dias com eles sem sequer saber que o são e, se o soubermos, é-nos indiferente. Caso raro nas descolonizações, pois o estigma do explorador cola-se quase sempre à pele dos antigos colonos, como acontece com os “pied noir” da antiga Argélia francesa (tão perto de casa…).
“Tive alguns colegas negros no liceu, tipos espertos, mas eram uma excepção, a maioria não passava da primária ou dos primeiros anos”, conta um amigo expatriado, como prefere ser chamado. “Não havia uma classe média africana, pelo menos ainda não”. Saber se teria chegado a haver é interrogação de impossível contra factual sujeita a todas as especulações.
Nos últimos anos, finalmente, começaram a ser publicados livros e histórias muitas sobre a descolonização e o seu mais humano e pungente resultado: os retornados. Irá Portugal finalmente acertar mais esta conta – e pesada que é – com o seu passado e os fantasmas que o povoam?
Em 2015 passam 40 anos sobre o regresso a casa daqueles que não lhe pertenciam. Espero que este seja o ano em que lembramos o Ano de Todos os Retornados.
Fonte: Observador, 30 Dezembro 2014