12 de maio de 2018

Mia Couto, o canto magnético de Moçambique (por Sébastien Lapaque)



Testemunha engajada da independência de Moçambique, em 1975, e da guerra civil que se seguiu a ela, o grande escritor Mia Couto apropria-se do português para reinventá-lo. Como se o trabalho com a língua lhe permitisse oferecer aos seus concidadãos uma renovação do mundoSébastien Lapaque

Branco e moçambicano, Mia Couto, nascido em 5 de julho de 1955 em Beira, na margem do Oceano Índico, é biólogo de profissão e “escritor nas horas vagas”. Quando se evoca um escritor africano, imaginamos geralmente que este compõe suas obras em inglês, como o nigeriano Wole Soyinka e a sul-africana Nadine Gordimer, em francês, como o marfinense Ahmadou Kourouma, ou ainda em árabe, como o egípcio Alaa Al-Aswany…

Couto escreve em português.

Artesão de uma língua clássica, precisa e sóbria, distinta do crioulo empregado em Cabo Verde, na Guiné-Bissau e na Guiné Equatorial, mas prima do português quente e temperado falado em Angola e no Brasil, Couto reivindica o uso com muita humildade. “O português moçambicano – ou ainda, neste momento, o português de Moçambique – é por si só um lugar de conflitos e ambiguidades. A adesão moçambicana à lusofonia é carregada de reservas, aparentes recusas, aprovações desconfiadas”, explicava em 2001, em um discurso feito na Universidade de Faro, em Portugal.1 António Emílio Leite Couto, apelidado Mia quando ainda era criança porque amava os gatos, adora as posições desfavoráveis e as contradições produtoras de sentido. Continua: “Sou um branco que é africano; um ateu não praticante; um poeta que escreve em prosa; um homem com nome de mulher; um cientista que tem poucas certezas sobre a ciência; um escritor em terra de oralidade”. Filho do jornalista e poeta Fernando Couto (1924-2013), nativo da região do Porto, emigrado para Moçambique, ele olha com ironia para sua situação pessoal em um país de 25 milhões de habitantes. “Pertenço a uma tribo quase extinta. Somos hoje entre 2 mil e 3 mil.” Lendo sua obra, entendemos que essas considerações étnicas lhe importam pouco, pois para ele “cada homem é uma raça”,2 e aí se encontra, sem dúvida, sua única doutrina política. Mas ele não esquece que os habitantes de Moçambique aprenderam a desconfiar dos brancos, os mezungos, e da língua que falam, o português percebido como um instrumento de opressão. As caravelas desapareceram há muito tempo do porto de Lourenço Marques, que se tornaria Maputo, mas a libertação, ao final de cinco séculos de colonização, data apenas de 1975. Na obra de Couto, muitos personagens expressam esse sentimento de despersonalização. Assim é em A varanda do Frangipani, falso romance policial evocando o turbulento período pós-independência. “Sempre estudei a missão, com os padres. Eles moldaram meus modos, calibraram minhas expectativas. Eles me educaram em uma língua que não era materna…” E um branco que ficou em Moçambique se preocupa em se “desaportuguesar”: “Desculpem meu português, eu já não sei que língua falo, minha gramática está toda rebocada e da cor desta terra. Não é apenas meu falar que agora está diferente. É meu pensamento”.3

O português como butim de guerra

Em 1975, mais de 80% dos habitantes não falavam português; eles ainda são 60% nos dias de hoje. Pensando na proximidade da África do Sul, do Zimbábue, da Zâmbia e da Tanzânia, que falam inglês, os dirigentes da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) foram tentados a adotar o inglês como a língua oficial, para apagar qualquer traço da presença portuguesa. No primeiro congresso do movimento nacionalista, em 1962, essa questão foi debatida. A decisão (redigida em inglês…) de fazer do português um veículo de comunicação entre as diversas etnias e uma língua de unificação do país assinalou a transformação reivindicada de um instrumento de dominação colonial em seu oposto. “O português foi adotado não como uma herança, mas como o mais importante troféu de guerra”, observa Couto, ecoando a famosa frase do escritor argelino Kateb Yacine: “A língua francesa foi e continua sendo um butim de guerra”. Assim, “o governo moçambicano fez mais pela língua portuguesa do que os séculos de colonização, por seu próprio interesse nacional, para a defesa da coesão interna, para a construção de sua própria interioridade”.4

O Moçambique português era um país improvisado à beira da água e ao longo dos balcões da burocracia, “um vestígio de Estado, uma espécie de cadáver empoeirado conservando sua forma graças à imobilidade do meio onde se encontra, sem esperar nada além, para se dissolver, de um dedo que queira tocá-lo”, observava, estupefato, um viajante francês no meio do século XIX.5 No século XX, nada tinha mudado. Longe das cidades portuárias onde tinha sido educada uma minoria de “assimilados”, negros que se beneficiavam de um status que lhes permitia servir à administração, os moradores do interior continuavam usando as línguas bantus. Em 1975, 41 dessas línguas indígenas foram reconhecidas como “línguas nacionais” pela nova Constituição, e o português foi mantido como “língua oficial”. Se acrescentamos a isso a linguagem dos sinais, também registrada pela Constituição, usam-se em Moçambique 43 línguas – e minoritariamente o árabe, o indiano e o chinês. A obra de Couto nasceu nesse campo magnético linguístico inédito: o idioma português não é a língua dos moçambicanos, é a da “moçambicanidade”. Uma utopia? O país precisava disso ao final da guerra civil, que durou de 1976 a 1992 e fez 1 milhão de mortos.

“Uma boa história era uma arma mais poderosa do que um fuzil e uma faca”, descobre, maravilhado, o narrador de Jerusalém.6 A vida e o destino de Couto se baseiam nessa frase. Militante pela independência de sua terra natal, jornalista para a revista Tempo e para o jornal Notícias de Maputo nos anos 1970, ele se tornou um poeta engajado no início dos anos 1980, depois um prosador desengajado em busca de uma vibração mais justa, mais íntima e lírica.7 Ele escolheu promover o diálogo entre os vivos e os mortos, o visível e o invisível, “apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez”.8 Depois de uma primeira coletânea de poemas publicada em seu país em 1983,9 seus romances e contos traduzidos em cerca de vinte línguas lhe permitiram impor uma relação inédita com o mundo real, tributário ao mesmo tempo da tradição literária ocidental e da oralidade africana. “Amplifique-se de muito ouvido. É que nós aqui vivemos muito oralmente”, escreve em um de seus romances, em forma de arte poética e manifesto literário.10

Brincriar e falinventar

Acompanhando o nascimento de uma nação que ele quis que crescesse como um poema, Couto trabalhou para “moçambicar” o português, como Mário de Andrade e os modernistas de São Paulo o tinham abrasileirado no primeiro quarto do século XX, a fim de inventar um imaginário político e literário nativo. Por meio da capital angolana, Luanda, cujos intelectuais e artistas se comunicavam mais diretamente com o Rio de Janeiro do que os de Maputo, sua ambição o vinculou a modelos brasileiros como João Guimarães Rosa, Jorge Amado e Manuel Bandeira, que souberam inventar sua identidade com palavras de artista. Na obra de Couto, em que abundam os neologismos, as palavras-malas e os jogos de linguagem, esse exercício de apropriação é fascinante. Para qualificar seu trabalho, o escritor elaborou o verbo brincriar, nascido da conjunção de brincar e criar. Dopando o português mais puro de palavras emprestadas de todas as línguas nacionais de Moçambique para impor um modelo narrativo novo, ele reivindica o prazer de falinventar.

Com palavras que ele parece redescobrir a cada vez que digita uma letra em seu teclado, esse escritor tem o dom de tornar sensível a relação entre os homens e a terra, concretos os sonhos das crianças e quase suportável o peso da infelicidade. Nativo de um país onde dispõe de apenas alguns milhares de leitores, ele precisa contar com uma comunidade de 250 milhões de lusófonos e com as traduções para que seu canto seja ouvido. Assim, ele fala não apenas para Moçambique, mas para o mundo. Nele, o local nunca se fecha na singularidade e derruba sem cessar os muros para se articular com o universal, ilustrando a fórmula do poeta português Miguel Torga: “O universal é o local sem muros”. “A escrita não é nem uma função, nem uma missão”, certifica esse claro africano de prosa musical, intensa, criativa e afetuosa. “Escrevo para ser feliz. A poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner contava histórias para que seus filhos doentes dormissem. Escrevo para fazer dormir um mundo que me parece doente. E assim invento histórias.”11 Ao longo do tempo, estas últimas se casaram com as grandiosidades e as misérias da África contemporânea. Depois do ciclo das descolonizações e das guerras civis, brevíssimos sonhos de paz foram esmagados e humilhados pela “indecência daqueles que enriquecem graças a tudo e a todos”, lamenta um escritor menos desengajado do que se diz. Aos africanos de seu século, Couto quer oferecer as palavras que lhes permitirão revogar o desencantamento do homem ocidental. Pois “os tempos de hoje são alvejante esbranquiçando as maravilhas”, escreve ele em O fio das missangas.12Couto pretende contar tanto sobre o alvejante quanto sobre as maravilhas…



http://diplomatique.org.br, 4 de Fevereiro de 2015