27 de janeiro de 2019

Camelos e sultões: A festa das elites do Estado Novo (Raquel Lito)






O encontro temático reuniu 200 convidados de apelidos sonantes. O Palácio do Relógio (Sintra) foi palco da extravagância em Setembro de 1971.


O Jardim Zoológico de Lisboa forneceu as atracções exóticas exclusivas para a festa: dois camelos chegaram a São Pedro de Sintra num camião de transporte para cavalos, horas antes do evento - a 1 de Setembro de 1971. Mas as estreitas ruas impediram que a viatura chegasse ao destino, a 500 metros do Palácio de Seteais. Os bichos tiveram de andar o resto do trajecto. Por vezes mordiam, quando os transeuntes curiosos se aproximavam em excesso. Este foi o prólogo de uma história pouco conhecida do Estado Novo: uma sumptuosa noite das Arábias para famílias de elite, só equiparável à de Antenor Patiño, magnata boliviano que três anos antes recebera mil convidados em Cascais (incluindo celebridades, como a actriz Audrey Hepburn). 

A diferença em relação à recepção de Patiño é que naquele perímetro da Quinta do Relógio, em Sintra, entre paredes de estilo neo-árabe e parte dos jardins com plantas raras, os 200 convidados tinham de seguir o dress code das mil e uma noites. Elas, bronzeadas e de barrigas lisas, surgiam mascaradas de odaliscas; eles de sultões. Adornavam-se com jóias, lantejoulas, plumas, turbantes ou, à falta de melhor, improvisavam vestimentas com lençóis de cama e panos de cozinha na cabeça. Quem viesse de smoking era recambiado: devia trocar de roupa. 

Miguel Carvalho e Silva, então com 17 anos, sobrinho do anfitrião António Francisco (Bobsy, para a família e amigos) recorda à SÁBADO ter vivido um filme. Despediu-se em grande das férias de Verão, antes de mais um ano lectivo num colégio interno em Inglaterra (aulas a partir de 15 de Setembro). Animado por um namoro efémero (a Txica acompanhou-o à festa), vestiu-se a rigor com uma túnica roxa, feita à medida, e turbante. 

A produção foi planeada com semanas de antecedência e envolveu decorações temáticas idealizadas pela irmã mais velha de Miguel, Filipa, carpinteiros e costureiros para que no dia D o cenário estivesse irrepreensível. Miguel relata como tudo começou: "Foi ideia do meu tio em conversa com a minha mãe, a meio do Verão. O meu pai não era de festas, mas depois divertiu-se imenso. E os amigos alinharam." 

Apelidos sonantes, sobretudo de Cascais, estavam lá todos: Patiño, Champalimaud, Cadaval, Anahory, Espírito Santo, Ricciardi, Roque de Pinho, Sande e Castro, Mayer de Carvalho, Correia de Barros, D'Orey, Beja, Stilwell, etc. A vizinhança de elite, por exemplo da Villa Roma, moradia ao lado da festa e da Quinta da Regaleira, também apareceu. Não existiam aspirantes ao jet set, nem o culto das revistas do social. O acontecimento ficou reservado às memórias dos participantes e à máquina fotográfica de Telmo, "que fazia as festas de toda a gente e apanhava os momentos", conta Miguel (que cedeu algumas imagens do álbum, a pedido da SÁBADO, com o prévio consentimento da família). 

Exército de empregados

Jantar volante marcado para as 21h. Aconteceu nas traseiras do palácio, numa parcela dos jardins, mas já pelas 22h. Os convidados iam chegando, calmamente, e deparavam-se com um ambiente cinematográfico. À entrada, destacava-se o sobreiro com mais de 600 anos, elogiado no século XVIII pelo poeta britânico Robert Southey: "Há (...) aqui uma árvore tão grande e tão velha que um pintor deveria vir de Inglaterra só para a ver." 

Em 1886, a princesa D. Amélia de Orleães - que lá passou os primeiros 15 dias de lua-de-mel com D. Carlos (viriam a ser aclamados Reis em 1889) - também reparou na árvore: "Vale mais a sobreira dos fetos do que Cascais e Estoril, tudo junto." Os dois camelos à esquerda compunham o cenário, com o tempo a ajudar: o vento estava invulgarmente fraco; a humidade típica do microclima da serra não se fazia notar. 

Para não destoarem, os 21 empregados - um para cada 10 convidados - apresentavam-se com turbantes na cabeça em tons de laranja e amarelo. Andavam numa roda-viva, entre a cozinha e o jardim das traseiras. O cuscuz fazia parte da ementa. Mas tudo decorria numa área restrita, porque grande parte da quinta (mais de 20 mil metros quadrados de área descoberta), inclusive o lago com nenúfares, estava vedada à festa. 

Era um ambiente-mistério que, de resto, já dera origem a lendas e histórias fantasmagóricas. Miguel recorda: "Contava-se que aparecia alguém num barco, no lago lá em baixo. Mas o meu pai e o meu tio é que tiveram uma experiência naquelas noites sombrias. E o meu pai era completamente céptico. Chegaram ao pé do lago e estava lá o barco a andar sozinho. Passou-lhes à frente, sem ninguém, sem ser puxado. Eles eram novos, foi muito antes da festa." 

Mago das pombas 

Terminado o jantar, começou o segundo acto destas mil e uma noites de Sintra. A festa abriu aos filhos dos convidados e o número disparou para 600. O espaço não era problema, havia de sobra para circularem nos cinco salões do piso térreo do Pavilhão Árabe (o nome de origem do palácio). Cerca de 450 metros quadrados decorados com pufes de tecidos adamascados, almofadas com o mesmo material dos turbantes dos empregados, mesas baixas com motivos arabescos e panos coloridos. 

Era o enquadramento perfeito para alguns números exuberantes: o animador de pombas; ou ainda Quito Hipólito Raposo (advogado e político monárquico que fez parte do Integralismo Lusitano) a brincar ao tapete voador. Miguel explica como: "Pedia às pessoas para ficassem em cima do tapete e depois puxava-o."

Bar aberto. whisky, gin e vodka eram as bebidas dominantes. De copo e cigarro na mão, passeava um dos nomes do roteiro noctívago da moda: Manecas Mocelek, que em 1970 abrira na Lapa, com mais dois sócios, a discoteca Stone's, depois das bem-sucedidas Ad Lib (na Av. Barata Salgueiro) e Van Gogo (Cascais). Outro bon vivant, Mário de Araújo (Nicha) Cabral, piloto de Fórmula 1, dava nas vistas pelo turbante de plumas. 

António Carvalho e Silva, vulgo Bobsy, o anfitrião, estava radiante. Nunca dera ali uma festa tão grandiosa, ainda que estivesse habituado a oferecê-las em Paris - tinha deixado a sua marca quando recriou Veneza e encomendou gôndolas para uma ilha do rio Sena. "Ele herdou muito dinheiro e propriedades. A seguir à guerra, foi para Paris e comprou um palacete. Também fez festas em Copacabana", conta Miguel, que aos 6 anos se sentou pela primeira vez num Rolls-Royce ao colo do tio milionário. Bobsy deu depois início às obras de recuperação das paredes de tabique do palácio, que carregavam um passado obscuro. 

Manuel Pinto da Fonseca, traficante de escravos que fez fortuna, foi quem mandou construir o palácio, em 1835, numa espécie de redenção. "Depois da Quinta do Relógio, ajudou muito obras de caridade - tinha a consciência pesada, claro", diz Miguel. Pensava o negociante que, com o salão de festas do Pavilhão Árabe, conseguiria introduzir-se na corte que ia a Sintra passar férias, ao fresco. Porque sol e pele bronzeada eram menosprezados. Miguel recorda-se de ir lá passar o Verão, durante a infância até aos 6 anos, com os oito irmãos. 

Com o 25 de Abril, as elites ficaram mal vistas. As obras ao palácio pararam por falta de dinheiro. Dos convidados da noite das Arábias, que terminou a altas horas da madrugada, nem sinal. Muitos tinham desaparecido de cena. "Com esta dimensão, foi das últimas festas do Antigo Regime", defende Miguel. 

Houve quem se exilasse no Brasil, outros, em menor número, em Paris ou na Suíça. Mas a família Carvalho e Silva manteve-se em Portugal: "Achámos que não fazia sentido abandonar o barco, ficámos cá sempre." Na década seguinte, entre 1985 e 1989, Miguel foi viver para os Estados Unidos e quando regressou deparou-se com um boom imobiliário idêntico ao da Lisboa actual. As rendas eram proibitivas e ele, que faria carreira como fotógrafo da revista Grande Reportagem, não estava na disposição de pagar o equivalente a 900 euros por um T2. Alternativa à cidade? O palácio, então desocupado. 

As festas seguintes da XFM 

O edifício histórico estava a degradar-se, Miguel queria rentabilizá-lo e começou a organizar festas de música a partir de 1993 - devidamente autorizado pela mãe. 

As primeiras tiveram tanto sucesso, que os amigos da extinta XFM - a emissora que tinha o slogan "para uma imensa minoria" - desafiaram-no a fazer ali uma acção de marketing de angariação de fundos. Com festas de música no Pavilhão Árabe batiam-se pela sobrevivência da rádio antiplaylists. A maior afluência registava-se entre as 2h e as 4h da madrugada, à medida que fechavam os bares lisboetas. 

Rui Neves, director artístico do Jazz em Agosto da Gulbenkian, recorda à SÁBADO como "intelectualizou" a cabine de DJ com Charlie Parker. Isilda Sanches, da Antena 3, passou discos numa das ocasiões, entre 1994 e 1995. O alinhamento fugia aos hits da pop. "Quase tudo o que era a música de dança da época, da mais lenta (trip-hop, tipo Portishead e Massive Attack), à mais pulsante (como Underworld, Prodigy), house, techno, drum'n'bass, algum hip-hop, pouco rock", descreve. A localização contribuía para criar uma atmofesra diferente, admite a radialista: "A proximidade da [Quinta da] Regaleira foi importante, a mística tornou-se mais fácil." 

Em vez das elites de antes, andavam pelo palácio artistas, performers em andas, escritores anarquistas com capacetes iluminados, bailarinos. Pelos jardins, espalhavam-se spots de comida vegetariana. "Coisa muito avançada para a época. Toda a gente percebia a preciosidade do local e havia um grande respeito e cuidado por todo aquele património", descreve Nuno Reis, agora na Antena 3. 


A rádio não sobreviveu, não passou de 1997. Nesse ano, o palácio foi classificado imóvel de interesse público e a família de Miguel teve de o entregar ao banco. "O meu filho cresceu lá até aos 10 anos, e a minha filha até aos 8. O jardineiro era como se fosse avô deles", recorda o antigo morador, mas sem nostalgias. "Tenho óptimas memórias, já passou." 

O casal Berglund, suecos, comprou a propriedade ao banco no Verão de 1998, para passar a reforma ali. Christopher, o filho, chegou a divulgar planos de revitalização do espaço. Eva Christina, entretanto divorciada, deu uma entrevista à SÁBADO em Setembro de 2017 com a chave na mão. Contrariando todos os rumores, garantiu que aquela não seria a casa de Madonna. Continua à espera de comprador.


Fonte Sábado, 08.09.2018