Hasteámos a bandeira e parámos de discutir o projecto de nação – Alerta Paulina Chiziane, que convida moçambicanos para um debate afogado... pelo tempo (14 de Maio de 2008)
Paulina Chiziane é, definitivamente, uma mulher sedutora. Sim! Do ponto de vista do que escreve. Porque, dentre várias qualidades que a sua escrita reúne, tem a habilidade de fazer do senso comum um aliciante. Assim foi em “O Sétimo Juramento”, em que desmistificou a forma como a feitiçaria é abordada pelos moçambicanos, e em “Niketche”, fazendo falar a poligamia.
Desta vez traz “O Alegre Canto da Perdiz”, que vai lançar brevemente no país, sob chancela da Ndjira. No novo romance, Paulina Chiziane faz cantar várias perdizes a partir de um canto especial de Moçambique, a cidade do Gurué, na Zambézia, para onde foi trabalhar há alguns anos.
A partir daquele ponto procurou o “eu” de Moçambique, num contexto em que se fala de uma independência de que se não desfruta integralmente. E dessa procura o que sai é um debate tão actual quanto necessário, porque – defende – a sociedade moçambicana é mestiça. Esta representa a confluência entre o colonialismo e a africanidade, esta que às vezes sai ofuscada. E é essa mestiçagem, nas formas em que se manifesta no Moçambique de hoje, que dá corpo ao novo canto de Paulina Chiziane.
É um romance que fala abertamente do que é ser preto e ser branco; da “vantagem” e da “desvantagem” de ser mulato. Aliás, mulatos somos todos, porque culturalmente somos daqueles híbridos que nem sequer sabem que o são... Eis alguns trechos de uma conversa que tivemos com a escritora, depois de percorrermos as páginas de um livro que chama a nação para um debate nacional. Um debate nacionalista, porque está mais do que na hora de inicia-lo de peito aberto! !
- Vai no seu quinto livro, o romance “O Alegre Canto da Perdiz”. O título traz alguma curiosidade: o que é que a perdiz tem a ver com a história que traz desta vez?
- A perdiz é um animal, como muitos animais que poderia citar. Para eu usa-la aqui é porque há muita mitologia à volta dela. O nome da cidade do Gurué, onde eu trabalhei nos últimos anos, vem do canto da perdiz. Gurué, gurué... é assim que ela canta. Então, àquela cidade, há os que chamam Gurue e outros Gurué, imitando o canto daquela ave. E à volta disso há também os mitos da criação do mundo segundo os lomué e macuas. Portanto, dizem algumas vozes muito idosas que o mundo inteiro foi criado tendo como centro os montes Namuli. Quando falam do mundo inteiro referem-se ao dos macuas e lómuès. E os montes Namuli – dizem – foram criados no ovo de uma perdiz. Então, é daí que achei formidável criar o título a partir desta mitologia e destas estórias de uma terra também formidável. Toda a história também anda à volta dos montes Namuli, à volta da cidade do Gurué e à volta da Zambézia.
- O romance é fruto da sua experiência de vida naquele pedaço do nosso país ou é, digamos, uma espécie de visão de Moçambique como um todo no que se refere ao tema que agora explora: a mestiçagem e as suas manifestações?
- Gurué não é apenas centro de produção. Eu vivi e convivi anos lá. Emergi e bebi muito daquela cultura, que é bem diferente da minha. Aprendi muito dela, reconheço-a e respeito-a, como o devem ser todas as culturas, independentemente de se são nossas ou não, se nos são próximas ou distantes. Com tudo isso tive a vontade de fazer um registo de muitas das coisas de que se fala mas que na verdade não se conhece. Por exemplo, falamos muito do matriarcado, falamos do sistema matriacal e dizemos que o país é nesse aspecto dividido em duas partes a saber ..
- ... a norte e a sul do rio Zambeze com influência matrilinear e patrilinear, respectivamente...
- Isso mesmo!... Mas como é que se manifesta o matriarcado de que se fala no dia a dia? Tive a ocasião de viver neste mundo e então achei que devia partilhar um pouco desta experiência e vivência com outras pessoas que eventualmente passarão ter essa curiosidade.
- Exactamente que experiências é que quis partilhar sobre essas vivências e sobre aquela terra?
- Uma coisa que eu achei bonita é a filosofia do matriarcado. Quando falo da filosofia refiro-me à visão do mundo que eles têm. Como é que o mundo foi criado entre os macuas, fazendo comparação com a visão que se tem em sociedades patriarcais. Na visão patriarcal primeiro nasceu o homem e depois a mulher. Na matriacal primeiro foi a mulher e depois foi o homem. Vendo bem, este mito de origem é que determina comportamentos futuros, porque no matriarcado a mulher é o centro do mundo. É por isso que nos mitos de origem desse leito, nos contos à volta da fogueira, nós encontramos sempre a mulher brilhante, airosa, etc. Portanto, lá a imagem da mulher é muito mais forte que a imagem de um homem.
- Ao ler o livro deparamo-nos com uma história que não se refere só no Gurué, mas a uma esteira bem maior, que é Moçambique, e que algo lhe revolta na vivência do nosso país...
- Eu acho que são várias coisas e não apenas “um algo” a incomodar-me. Quando digo a nossa vivência e se me perguntarem exactamente o que é a nossa vivência como cidadã de um país eu não posso dizer, porque estou na lua, no ar... e não tenho um caminho nem uma norma. Nós como moçambicanos somos produtos daquilo que é a nossa tradição? De um sistema? De um contacto de culturas? Quem somos nós e aonde vamos? Como é que nos relacionamos uns com os outros? Então, estas são questões que não encontram respostas. Por vezes eu digo: houve ao longo do tempo, que a história conta, um período em que não tínhamos o colonialismo, depois veio o sistema colonial e houve muito debate, muita luta sobre várias coisas, incluindo a nossa identidade. Mas depois hasteia-se a bandeira da independência nacional e parece que tudo está bem. Nunca mais se voltou a discutir o projecto de nação. Como é que eu me relaciono com o meu antigo colonizador? Como é que eu me relaciono com o produto híbrido, que pode ser o próprio ex-colonizador que ficou por cá e pode ser até o próprio colonizado? Portanto, quem somos nós a partir de agora? A partir dessas questões fiquei com a vontade de usar a minha experiência da Zambézia para começar a falar da nação. Mas não é por acaso, porque a Zambézia, por aquilo que eu consegui constatar, foi uma região do país severamente afectada pelo colonialismo. Eu penso que a colonização naquela região foi muito mais violenta, pelos relatos que consegui ouvir, do que, se calhar, em algumas partes do país.
- Isso tem reflexo no comportamento e no perfil do zambeziano hoje, é isso que está a dizer?
- Sim, sim e sim! Eles são o que são por causa deste processo. Então, quando eu falo de indivíduo híbrido, estou a incluir aquele indivíduo que na sua aparência é autóctone mas que por dentro já não é; é uma mistura de tanta coisa, de violência, de colonialismo, de luta pela independência e de uma afirmação que nem sei se a independência lhes trouxe.
- Se tivesse que caracterizar o zambeziano, hoje, o que diria?
- É um povo muito sofrido, sei que outros povos que formam o povo moçambicano também sofreram, mas ali... É na sua terra onde o regime colonial português experimentou as suas grandes teorias de miscegenação, falando concretamente das teorias políticas de Gilberto Freire. É uma coisa que se sente, ou seja a pessoa entra naquela terra e sente que “aqui houve alguma coisa”. Eu colocava-me questões como “como foi possível, o que é que aconteceu, como é que se deu este processo?...” E foi com muita mágoa que eu percebi que a materialização destes grandes princípios políticos e filosóficos foi feito no corpo das mulheres. Portanto, é o sangue delas que, de certa maneira, esteve no prato da balança para a construção deste projecto de nação.
- E os homens? O seu corpo não deu alma nem construiu a nação?
- A situação do homem era outra! O homem é preto, o homem usa a força de trabalho, o homem é morto, o homem é deportado, etc., mas a mulher recebeu um tratamento diferente. Com isso pude também constatar um aspecto que é uma análise de género da história de Moçambique. Eu não sei se isso já alguma vez foi feito mas penso que é interessante analisarmos como é que o colonialismo influenciou as mulheres e os homens em Moçambique. Qual é o impacto de tudo isso na nossa vida, no nosso modo de ser e de estar? Para mim, o comportamento das mulheres, hoje, tem a ver exactamente com tudo o que a sociedade e particularmente elas foram viveram no passado. Tem muito a ver com todas essas políticas que eram ditas de desenvolvimento. As teorias são no papel muito bonitas, mas quando vamos ver na prática, as mulheres falam do seu sofrimento. Há marcas ainda hoje que testemunham isso. Trinta e poucos anos de independência são ainda muito poucos para apagar isso.
- Quais são essas marcas?
- Por exemplo, as nossas relações humanas: a relação da mulher negra diante de um homem branco! Eu às vezes digo, na aparência, pelo menos naquele tempo, a relação não era de amor! Nem sei dizer se as mulheres nessa altura, portanto as mulheres negras, atingiam o orgasmo. Era uma relação de dor e de submissão de alguém que diz “pronto, se eu faço o meu filho preto vai ser morto, então vale a pena fazer um mulato, pelo menos esse viverá”. É mais ou menos isso. Neste livro volto a perguntar: será que essas inquietações do passado já passaram? Quem é que já fez um balanço para saber como é que estamos e para onde estamos a caminhar?
- Na sua opinião a relação preta-branco é mera questão de sobrevivência e não necessariamente de amor? Referiu-se ao tempo colonial. E essa relação de interesse ainda ocorre hoje com a mesma frequência?
- Claro que sim! São sequelas do colonialismo. A situação do negro hoje ainda continua a ser o terror e o medo semeados e desenvolvidos pelo colonialismo. Porque foram muitos anos de violência colonial. A dominação portuguesa naquilo que é o nosso país começou há anos, antes mesmo de Moçambique ser formalmente colónia de Portugal. O mais importante, para mim, é de vez em quando discutirmos essas questões. O que eu coloco no livro é exactamente isso. Por exemplo: o homem negro, durante centenas de anos teve medo do branco, viveu aterrorizado por ele. E não deixará de ter esse medo nas três décadas em que formalmente conquistou a independência política. E isso é visível ainda hoje! A mulher negra, por sua vez, sempre teve medo do homem negro e do homem branco. Então, entre o homem negro e o homem branco ela teme mais o homem branco. Existem relatos soltos por aí assim do tipo num restaurante há vários negros à espera de serem atendidos e aparece depois um branco e ele é o primeiro a ser servido. Isso existe, porque se trata de uma sequela da violência do colonizador, que foi passando de geração em geração. Obviamente de outros factores também. Infelizmente o branco ainda representa em todos os sentidos o poder perante os negros. E a submissão dos negros tem a sua razão de ser. Penso que temos que discutir mais vezes estas coisas. Têm razão os historiadores quando recorrem ao passado para nos ajudarem a perceber algumas coisas e a interpretar aquilo que pode ser o nosso futuro. Em algum momento, durante a guerra de libertação nacional, que no fundo lutou e conseguiu uma libertação política, se discutiu a nação moçambicana. Definimos quem era o inimigo e defendemos que as diferentes raças têm que viver juntas. Alcançámos a independência e parámos de discutir essas coisas. Porquê? Esse debate tem que continuar, porque hastear a bandeira não é tudo. A minha intenção é provocar esse debate no seio da nossa família, a moçambicana, porque mais do que actual, esse debate é necessário.
- Acha que estamos numa situação de auto-desconhecimento, no que toca puramente à identidade, ou somos meros complexados nas relações entre uns e outros com base num mero detalhe que é a tonalidade de pele?
- Esse é um factor psicológico grande e que ainda está em peso nas mentes de muitos de nós. Pretos e brancos. E como factor psicológico isso vai levar muito tempo e muito mais tempo. E coloco as coisas de uma outra maneira: o colonialismo hoje ainda existe dentro de nós. E já não é estrangeiro. Nós somos os nossos próprios colonos. Nós é que nos rejeitamos a nós mesmos: eu como mulher negra rejeito-me, acho que a minha pele não é suficientemente clara e por causa isso tenho que comprar um clareador, que o meu cabelo não é suficientemente cabelo e tenho que ir buscar o verdadeiro modelo de cabelo. Portanto, por um lado temos o homem ou o ser branco a simbolizar o que o colonialismo foi dentro de nós. Mas por outro temos o próprio colonialismo que mudou e fez dos moçambicanos colonialistas de si mesmos. Não sei se estou a ser suficientemente competente, mas li muito Frantz Fanon, sobretudo “Pele Negra, Máscaras Brancas”, Eduardo Mondlane em “Lutar Por Moçambique” e em outros autores como estes encontramos o que aqui me refiro. E acho que não estou a fazer nada de novo. Os outros fizeram o seu pensamento político, as suas filosofias e eu pequei nos mesmos elementos e fiz o romance. De certa maneira, ao mesmo tempo que fazia as minhas leituras ia descobrindo que o colonialismo propriamente dito ainda não foi escrito.
- Não há nada escrito sobre o colonialismo? Os cientistas sociais, a começar pelos historiadores, avaliaram o colonialismo nas suas mais variadas facetas. Tanto aqueles de países colonizados como os dos colonizadores. E escreveram cientifica e sentimentalmente...
- Sim, é verdade. Mas o que eu digo é que nós falámos do colonialismo naquela parte que nos doía na altura. Queríamos a independência e pronto, falámos do colonialismo e o denunciamos. E a vivência, porquê não tratámos dela? Eu sou híbrida, filha de uma terra-macho, mas quando vieram com as armas, com a cruz e com a espada, de tanto a maltratarem, tornaram a minha terra fêmea, porque puseram o povo de joelhos. E quando o meu país recupera o sexo, com a luta de libertação e com a independência o que fica na verdade é o produto às vezes meio hermafrodita que somos. Hoje um dia somos machos e noutro sentido somos fêmeas como povo. Falo disso porque quando surgem as grandes teorias de Gilberto Freire, por exemplo, fizeram da nossa terra uma fêmea, onde as mulheres podiam ser violadas e usadas de qualquer maneira. E ai do homem negro que dissesse “estamos numa era do lusotropicalismo e então eu quero ter uma branca”, ele era morto imediatamente. Então, há que reflectir: o que é que nos deixou o colonialismo, quem somos nós, será que ele foi-se mesmo, com a independência de que tanto falamos desde 1975? Eu, por exemplo, quem me dirige e quem me ensina faz-me entender que para ser bom e para ser considerada primeiro tenho que passar pela escola da Europa. Então cria-se pretos com alma branca. Frantz Fanon já falava disso. Então eu acho que... não sei...
- Nesse aspecto não somos, então, uma terra liberta. Moçambique e África. África e América Latina. E alguma Ásia...
- Não, não, não somos! E não o seremos tão cedo. Acho que a liberdade é um processo. Temos uma bandeira, mas a hasteamos e a fazemos flutuar sobre quê? Não sei quantos anos ou décadas serão necessários, mas nós precisamos de ser libertos. Intelectualmente, economicamente... ainda não atingimos esse estado.
- Essa falta de liberdade não tem a ver com a falta de uma agenda nossa, inteiramente feita por nós mesmos, para nos debatermos? Falamos muito de nós mas com referência nos outros...
- Acho interessante isso! Durante a luta armada, por aquilo que eu consegui ler, sobretudo na poesia de combate, que penso devia ser lida por todos, jovens e adultos, apanho ali uma poesia-macho, de indivíduos que lutam por um ideal. Eh, pa! Ficámos com a dita independência e de repente parece que parámos no tempo e na luta. E acho que a culpa não é de quem trouxe a independência. Temos instituições, públicas ou não e a Associação dos Escritores é uma delas, que deviam criar espaços para esse debate. Os escritores têm que lançar esse debate. Os académicos, os políticos, os homens simples que tanto deram do seu pensamento, ainda que não reconhecido, para alcançarmos algumas das poucas coisas que alcançámos.
- Os moçambicanos estão aparentemente a resgatar o sentido de algo de nobre que há muito não se ouvia no nosso país, a auto-estima e o próprio Presidente tem insistido muito nisso nos seus discursos. De que é que estávamos à espera?
- Andámos a dormir! Os moçambicanos adormeceram talvez por motivos justificáveis. Como a própria euforia da independência, que tinha que ser digerida. Mas já chega, vivemos essa euforia e agora é preciso acordar e dizer “sou eu, aqui estou. Sou produto de uma luta justa, porque a minha terra tinha sido transformada em fêmea e era preciso lutar para recuperar a sua masculinidade”. É momento de começarmos a debater estas questões. A Associação dos Escritores, por exemplo, serve definitivamente para isso. As instituições académicas, religiosas, governamentais, etc. Isso é uma agenda que deve pertencer a todos. A nossa auto-estima como cidadãos é muito baixa! Eu conheço o moçambicano. Quando vai a uma conferência fora do país numa sala cheia de brancos enche o peito de ar ou empina o rabo e diz “eu sou assimilado” e não tem a coragem de dizer “eu sou negro e venho de Moçambique”. Já vi isso várias vezes. Algumas vezes até criticam-me dizendo “tu és muito tradicionalista...” Lembro-me agora que estive na feira internacional de Frankfurt com algumas pessoas que não eram de Moçambique mas dos países de expressão portuguesa, que foram muito preocupadas em falar o seu melhor português. Olhei para aquilo e fiquei assustada. E disse-me a mim mesma: “eu vou falar na língua da minha terra” e disse-lhes tranquilamente “esta língua que eu falo é aquela que os escravos falavam nas plantações de algodão”. E disse-lhes que falo essa língua e o português porque é outra língua que me deixaram. E fui a mais aplaudida!