Durante três dias essa vaga alteou-se e chegou a pensar-se que chegaria à praia. Ao terceiro dia, abateu-se, para não mais se levantar, não sem que tivessem sido feitas novas promessas e garantias vãs
A 7 de Setembro de 1974 foram assinados na capital da Zâmbia, entre o Estado Português e a Frente de Libertação de Moçambique, o denominado Acordo de Lusaka. Neste acordo o Estado Português não só reconheceu formalmente o ‘direito do povo de Moçambique à independência’ como acordou – ‘em consequência’, escreve-se algumas vezes, sem muito respeito pela lógica – a data e os passos da transferência para a FRELIMO da soberania que detinha sobre o território de Moçambique.
Pelo Estado português assinaram, por esta ordem: Ernesto Augusto Melo Antunes (Ministro sem Pasta), Mário Soares (Ministro dos Negócios Estrangeiros), António de Almeida Santos (Ministro da Coordenação Interterritorial), Victor Manuel Trigueiros Crespo (conselheiro de Estado), Antero Sobral (Secretário do Trabalho e Segurança Social do Governo Provisório de Moçambique), Nuno Alexandre Lousada (tenente-coronel de infantaria), Vasco Fernando Leote de Almeida e Costa (capitão-tenente da Armada), Luís António de Moura Casanova Ferreira (major de infantaria). O Acordo seria aprovado e mandado publicar pelo Presidente da República, General António de Spínola, ‘depois de ouvidos a Junta de Salvação Nacional, o Conselho de Estado e o Governo Provisório.’
Pela Frente de Libertação de Moçambique, com simplicidade, assinou Samora Moisés Machel (Presidente).
Não era o que se garantia no chamado ‘Programa do MFA’ nem era o que diziam (era mesmo o contrário do que prometiam), à uma, as mais altas instâncias institucionais do poder revolucionário. Mas era o que estava escrito na lógica dos acontecimentos e na intenção de alguns poderes de facto e de algumas cabeças. Como alguém disse a propósito da Revolução Francesa, ‘o que era necessário (para não ser como foi) já não era possível’ ou, pelo menos, não se revelou possível: a história passada é a única que é irreversível.
Grassava em todo o território, naquilo a que se costuma chamar amplas faixas da população, o medo e a inquietação quanto ao futuro. Já se temia que o ‘processo’ acabasse como acabou. O comportamento das forças da Frente de Libertação de Moçambique triunfante não era de bom augúrio.
Na véspera, 6 de Setembro, Lourenço Marques despovoara-se por causa dos comícios organizados pela Frelimo à boa maneira maoista. Via-se cada vez mais claramente que o poder saía da boca das espingardas, uma velha lição sempre renovada. Segundo alguns relatos, as provocações de alguns grupos frelimistas no centro da capital moçambicana foram a fagulha que ateou o rastilho.
Nesse mesmo dia 7, não estava seca ainda a tinta das assinaturas de Lusaka (nem talvez traçadas sequer), saíram à rua nalgumas cidades de Moçambique muitos milhares de pessoas, num movimento popular que os testemunhos conhecidos são concordes em considerar ‘espontâneo’ e que teve como mais espectacular manifestação a ocupação do Rádio Clube de Moçambique em Lourenço Marques, que passou a emitir em nome do Movimento Moçambique Livre. Nele se uniram muitos funcionários da Administração e das forças de segurança, jornalistas, antigos combatentes, gente vulgar (gente que tem os seus nomes e a que se costuma chamar anónima), chefes políticos moçambicanos de várias cores, em sentido literal e figurado.
Tinha-se constituído dias antes um denominado Partido de Coligação Nacional em cuja Comissão Executiva se juntavam representantes do COREMO, da FUMO, do MONIPAMO, etc., entre os quais Uria Simango e Joana Simeão, dois dos mais conhecidos e dos mais desditados. Nesse grito de protesto contra a entrega de Moçambique a um único partido considerado minoritário e que se reclamava na sua teoria e na sua prática das experiências do ‘socialismo real’, aparecia unida gente muito diversa, do Dr. Velez Grilo (antigo dirigente do PCP) a Gonçalo Mesquitela ou Daniel Roxo. Foi um movimento entusiástico mas desarmado.
Inesperadamente, foi em Moçambique que eclodiu uma revolta desta natureza e destas proporções contra a forma assumida pela ‘descolonização’ e não, por exemplo, como muitos contariam, em Angola. Durante três dias essa vaga alteou-se e chegou a pensar-se que chegaria à praia. Ao terceiro dia, abateu-se, para não mais se levantar, não sem que tivessem sido enviados a Moçambique representantes do Presidente da República, com novas promessas e garantias.
A 10, aos mesmos microfones da Rádio Moçambique Livre agora rendida, um representante da FRELIMO protegido por militares portugueses e, ao que testemunha Ricardo Saavedra na sua dramática crónica vivida desses ‘dias do fim’, disfarçado ‘com uma farda e com os galões de alferes do Exército português’, começa assim uma breve alocução: ‘Galo. Galo. Galo. Amanheceu’ (Aqui Moçambique Livre, Livraria Moderna, Joanesburgo, 1975). Seguiram-se dias de pânico, de saque e violências (3.000 mortos?), de fuga em massa para territórios vizinhos, de prisões e degredos e mortes anunciadas. A 30 desse mês, o General Spínola renunciaria atabalhoadamente à Presidência da República.
O dia 7 de Setembro é hoje um dos feriados nacionais em Moçambique. Comemora o Dia da Vitória.
Miguel Freitas da Costa
Fonte: Observador, 7/9/2014