3 de junho de 2015

O choque cultural do "retorno": A vida em Moçambique e a vida em Portugal, uma narrativa na 1ª pessoa



Introdução

Este trabalho centra-se na história verídica do seu autor, narrada na primeira pessoa, e onde se irão encontrar alguns relatos que encontram equivalência em algumas das situações expressas no texto que à frente transcrevo, e que é nota introdutória do livro de Rita Garcia. A narrativa vai incidir sobre a cultura e modos de vida em Lourenço Marques (Moçambique) nos anos pré 25 de Abril de 1974, e posteriormente vai situar-se numa pequena vila do norte de Portugal, de nome Caldas de Vizela, local de onde era oriundo o pai do autor e onde residia grande parte da família deste, sendo também o local para onde o autor foi residir após a saída de Lourenço Marques. A principal intenção deste trabalho é dar a conhecer a cultura da classe média residente em Lourenço Marques nos inícios da década de 70 e que na sua quase totalidade era constituída por pessoas de raça branca, dando algumas notas sobre a construção nacional da identidade neste país. Tenho também como segunda intenção e ambição de desmistificar um pouco o conceito que existe na sociedade portuguesa, e que considero pouco correcto, de que os “retornados” eram “colonialistas exploradores dos povos africanos”, correndo o risco de estar errado, considero ser um conceito formado pela construção duma entidade social nacional pós 25 de Abril em que havia a necessidade extrema de condenar tudo o que estava relacionado com o antigo regime, sendo os “retornados” catalogados como colaboradores desse mesmo regime. Não tenho qualquer intenção de transmitir aqui um discurso ou mensagem politica ou partidária, apenas pretendo transmitir um pouco da cultura onde nasci e dar a conhecer uma realidade que foi de alguma maneira desconhecida pela maioria dos portugueses residentes em Portugal.

Após o 25 de Abril de 1974, a maioria dos Portugueses residentes nas ex-colónias, consideradas até à data como províncias de Portugal, foram forçados a abandonar os territórios onde viviam e tiveram que ir viver para outros países, sendo que a maioria veio para Portugal, alguns como retornados e outros como o autor, os que haviam nascido nas ex-colónias, vieram conhecer pela primeira vez a “Metrópole”, como era apelidada. A título de introdução ao trabalho, transcrevo a nota introdutória do livro de Rita Garcia “Os que vieram de Africa”, onde é referenciado o drama pelo qual passaram muitos dos residentes nas ex-colónias que vieram viver para Portugal.

“A independência das colónias precipitou a vinda para Portugal de cerca de meio milhão de portugueses. Pelo menos 505 078 cidadãos nacionais foram forçados a abandonar África de um momento para o outro, num movimento de retorno apenas suplantado em número pela saída de um milhão de franceses da Argélia na década de 1960. Para os antigos colonos, era o fim de vidas felizes e prósperas que haviam construído no ultramar e o início de um futuro incerto na metrópole. Quem veio preferia ter ficado e quem ficou teria dispensado a invasão.

O momento não podia ser mais caótico para receber tamanho contingente de refugiados: em pleno processo revolucionário em curso (PREC), os governos sucediam-se, a instabilidade social agravava-se e a economia ressentia-se. Na segunda metade da década de setenta, com o país em recessão económica, os portugueses enfrentavam um sem-número de problemas, desde a escassez de empregos à falta de casas para morar. Por tudo isto, viam os retornados - assim lhes chamaram - como adversários dispostos a roubar-lhes trabalho, habitação e dinheiro.

Saídos de quarenta e oito anos de ditadura, encaravam com desconfiança a chegada daquela gente bronzeada e de costumes modernos que usava roupas demasiado curtas e coloridas. Os de cá tinham razão para ter medo: quem vinha das colónias não só tinha um nível académico superior como estava habituado a uma economia mais dinâmica do que a portuguesa. Além disso, haviam perdido tudo e precisavam de arriscar se queriam reconstruir a vida.

À mágoa de terem sido despojados dos seus bens, somavam a revolta de serem considerados portugueses de segunda e, por vezes, reagiam com violência aos que os apelidavam de exploradores de negros, habituados à boa vida e servidos por um exército de criados domésticos. A palavra “retornado” ganhou um peso insuportável, sobretudo para quem, como muitos, nascera em África, perdera as raízes na metrópole e ficara totalmente por sua conta à chegada, sem ninguém que os acolhesse.

Perante a emergência nacional, o Estado criou o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais para acudir às necessidades básicas dos refugiados: alimentação, transporte e alojamento. Os que tinham família foram encorajados a procurá-la nas terras de origem mesmo que não a conhecessem, sujeitando-se à eventual má vontade da receção. Os outros ficaram alojados em hotéis, pensões, residenciais, casas particulares, sanatórios e cadeias até conseguirem estabelecer-se.

Uma grande parte dos portugueses vindos das colónias demorou anos a recuperar uma vida normal e poucos voltaram a alcançar o nível de conforto que deixaram em África. Mas é inegável que os refugiados estimularam os negócios e transformaram as mentalidades à medida que se foram integrando.

Quase quarenta anos volvidos, a maioria dos retornados não esqueceu o passado nem perdoou a forma como os governantes portugueses conduziram o processo de descolonização. Para eles, que estavam habituados à abundância, o caminho foi longo e árduo: passaram fome, tremeram de frio e faltou-lhes de tudo. Alguns preferiram emigrar a sujeitar-se à discriminação em Portugal. Outros, mais frágeis, encontraram no suicídio a única saída para a inadaptação. Apesar de terem abandonado África contra a sua vontade, hoje, raros são os que querem voltar às ex-colónias, embora, ao fim de décadas, continuem a sentir-se desterrados na antiga metrópole.

História de Lourenço Marques

Os primeiros habitantes da região da Baía da Lagoa – o primeiro nome por que foi conhecida a baía que ladeia a cidade (agora conhecida como Baía de Maputo) e a própria cidade – foram provavelmente os khoisan, também conhecidos por bosquímanos ou hotentotes. Há pelo menos setecentos anos, chegaram do norte os rongas (o Povo do Sol Nascente), bantus dos muitos fluxos migratórios dos Grandes Lagos que se seguiriam.

Pensa-se que os primeiros europeus a visitarem a baía foram os navegadores portugueses de um navio comandado por Luís Fernandes em 1502, logo a seguir à primeira viagem de Vasco da Gama. Aliás, a baía já é referenciada no Planisfério de Cantino (1502), com a designação de Baía da Lagoa. O seu reconhecimento apenas foi efectuado em 1544 por um obscuro comerciante português, Lourenço Marques, cujo nome foi mais tarde dado à baía e à cidade.

Durante os mais de duzentos anos que se seguiram, os portugueses nunca se estabeleceram permanentemente na região, preferindo comerciar com os nativos com base na Ilha dos Elefantes à entrada da baía. Em 1720, a Companhia Holandesa das Índias Orientais, que tinha fundado a colónia do Cabo da Boa Esperança no século anterior e a tinha perdido para os ingleses, construiu um forte no local mas, em 1730, o posto foi abandonado. A primeira estrutura física portuguesa no local foi um presídio fundado em 1782 por uma força militar proveniente da Ilha de Moçambique chefiada por Joaquim de Araújo. O presídio era então rodeado por vários estados africanos, particularmente os reinos Mpfumo, Matsolo e Tembe. Uma reconstrução desta fortificação é a actual Fortaleza de Maputo.

O presídio ou forte é totalmente destruído por piratas franceses em 1796 e reconstruído em 1799, mas a primeira ocupação civil portuguesa só ocorreu em 1826 com a fixação de alguns colonos.

Entretanto, em 1823, o capitão (e mais tarde contra-almirante) W. F. W. Owen, da Real Marinha Britânica, verificando que os portugueses não exerciam qualquer forma de administração a sul da povoação de Lourenço Marques, celebraram tratados com os chefes nativos, içaram a bandeira britânica e apropriaram-se da terra a sul do Estuário do Espírito Santo mas, quando lá voltaram no ano seguinte, descobriram que os portugueses não tinham respeitado a soberania britânica e tinham entrado noutros acordos com os nativos e tomado militarmente posse da região.

O capitão Owen mandou içar novamente a bandeira britânica, mas a soberania sobre o território continuou não decidida até que a República do Transvaal reclamou a posse da região. Em 1835, um grupo de boers tentou estabelecer-se na baía – que é uma saída natural para o Transvaal – e, em 1868, o presidente do Transvaal, Marthinus Pretorius, reclamou o território como parte daquela república. No entanto, a 29 de Julho de 1869, foi assinado pelo Rei D. Luís um Tratado de paz, amizade, comércio e limites entre Portugal e a república africana do Sul, a partir do qual se iniciou a construção de uma linha de caminho-de-ferro entre Lourenço Marques e a fronteira com o Transvaal. Esta ferrovia transformou profundamente a economia da povoação e determinou o seu desenvolvimento posterior.

Em 1861, o capitão Bickford declarou as ilhas da Inhaca e dos Elefantes como território britânico, um acto que levantou protesto pelas autoridades de Lisboa. Em 1872 a disputa foi submetida à arbitragem de Adolphe Thiers, presidente da França e, a 24 de Julho de 1875, o seu sucessor, o marechal Patrice Mac-Mahon, declarou-se a favor de Portugal.

Lourenço Marques foi elevada a vila e o seu município criado em 1875, para depois ser elevada a cidade em 10 de Novembro de 1887. A cidade torna-se cada vez mais proeminente na administração da colónia, até que a capital é finalmente transferida da Ilha de Moçambique para Lourenço Marques em 1898.

A multiculturalidade

Não é portanto de admirar que Lourenço Marques fosse fortemente influenciada pela cultura inglesa e que tenha fortes raízes inglesas, como o hábito de se tomar chá, não só exclusivo da raça branca existente na época, mas também adoptado pela comunidade nativa e a que não é alheia a existência de grandes plantações desta planta no norte do país. Uma forte representação da presença dos ingleses neste país é também a adopção da condução automóvel pela faixa da via esquerda como se pratica em Inglaterra e suas ex-colónias sendo isso também um forte contributo para as deslocações dos Sul-africanos “os bifes” a Moçambique, promovendo assim uma interculturalidade muito estreita com a África do Sul, sendo esta também um forte parceiro de negócio. Uma outra comunidade com raízes bem profundas em Moçambique é a comunidade Indiana, “monhés” como eram apelidados, dominavam e ainda dominam uma parte relativamente ampla do comércio, e a sua gastronomia também era bastante divulgada entre os portugueses, e foi adoptada pelos nativos. Eram raras as pessoas que não apreciavam bom caril ou as chamuças, consideradas aliás como pertencentes à gastronomia nacional, mas sobre isso tornarei a falar mais adiante.

É preciso lembrar que nestas primeiras décadas da primeira metade do século XX, uma parte significativa dos quadros administrativos da colónia estava entregue a funcionários goeses, herança dos tempos em que o governo do Estado da Índia abarcava também Moçambique.

A cidade colonial comportava, desde o seu início, uma importante comunidade indiana. O censo de 1894 indicava a existência de 245 indianos (23% da população «civilizada»), dos quais 151 eram muçulmanos e 59 hindus. Após 1910, a sua proporção em relação à população «civilizada» diminui, mas a comunidade cresceu em números absolutos: em 1912 Lourenço Marques contava com 848 indivíduos indo-britânicos e em 1928 tal número ascendeu a 1974 pessoas.

A existência de uma tão forte comunidade de indo-britânicos — assim formalmente designados em alguma documentação oficial da época, mas mais frequentemente apelidados de «monhés» — ficou-se a dever a dois factores: o primeiro pode ser encarado como uma extensão, para sul, dos interesses comerciais estabelecidos mais acima por toda a costa da África Oriental; o segundo, mais significativo, relaciona-se com a já aqui explicada articulação da região sul de Moçambique com a economia das colónias britânicas vizinhas. Maioritariamente, dedicavam-se ao comércio, circunscritos à Rua da Gávea e às suas seis travessas: da Palmeira, da Porta, da Linha, da Catembe, da Laranjeira e da Fonte. Em 1894, na novel cidade colonial, 189 elementos (77%) da população indo-britânica residia e comerciava nessas ruas. O seu peso no comércio local era enorme e a disputa com o comércio nas mãos de europeus foi uma constante durante todo o período colonial. Excluídos das associações comerciais e de lojistas da cidade, foram alvo de diversas medidas restritivas por parte do governo da colónia que, assim, procurava corresponder às constantes solicitações da Associação Comercial de Lourenço Marques. Não podendo afectar os comerciantes indo-britânicos já estabelecidos, até porque constituía a sua actividade uma fatia importante da receita fiscal da colónia, em 1899 chegou a ser proibida a entrada de indo-britânicos, medida anulada no ano seguinte. Em 1907, uma disposição legislativa exigia o pagamento de 30$00 réis para poderem desembarcar no porto, mesmo quando o seu destino fosse a África do Sul. Em 1912 o governo da colónia faz publicar um «Regulamento de Polícia de Entrada de Asiáticos», tão restritivo à sua entrada e circulação que, perante o protesto das autoridades consulares inglesas, foi revogado passados poucos meses. Em 1913 surge o «Regulamento para a polícia e fiscalização da entrada de asiáticos e equiparados nos territórios da Província de Moçambique sob a directa administração do Estado», no qual a discriminação era atenuada, mas instituindo uma série complexa de procedimentos administrativos burocráticos, cujo objectivo final era colocar o maior número possível de entraves à entrada, circulação e estabelecimento de comerciantes asiáticos. Esta constante e arreigada discriminação dos comerciantes asiáticos, assim legislada nos primeiros anos da República, não era algo de inteiramente novo. António Enes, o comissário régio responsável pelo lançamento e consolidação das bases da administração colonial em Moçambique proclamava reiteradamente ao longo das páginas do seu afamado Relatório esse mesmo preconceito racial. Começando por veicular a opinião corrente entre os comerciantes europeus de que a principal causa do atraso da colónia era invasão dos comerciantes asiáticos «densos e vorazes como gafanhotos», Enes faz desfilar ao longo de quase uma dezena de páginas [1893, Relatório apresentado ao Governo, Lisboa, Imprensa Nacional, pp. 51-59] uma sucessão impressionante de enunciados preconceituosos, apenas quebrada quando o autor se apresta a reconhecer que se tratava de uma comunidade pacífica e obediente, muito importante no desenvolvimento da rede comercial da colónia. Não menos preconceituoso e racista um outro autor, logo nos primeiros anos da República, descreve nestes termos a comunidade indiana de Lourenço Marques: «... as suas habitações, pequeníssimas e imundas, sem ar nem luz, verdadeiras luras repelentes onde habita grande número de pessoas, são sempre nos sítios mais escusos, mais retirados e esquecidos, o que tudo fazem por uma sórdida economia. Juntamente com infinita variedade de mercadorias, amontoam os móveis domésticos, os catres, e durante a noite é no pavimento, nos balcões, por cima das mercadorias que dormem patrões e empregados (...) de génio bastante servil e adulador, ao serviço de uma cupidez insaciável e mesquinha, são de uma psicologia notavelmente acanhada e de uma moral muito degenerada. Astuto e de grande esperteza para o pequeno comércio, desenvolve uma extraordinária habilidade na escamoteação de quantas pequenas moedas sonha no bolso dos indígenas», [Padre Daniel da Cruz, 1910, Em Terras de Gaza, Lisboa, Gazeta das Aldeias, p. 305]. Já nos anos 70, o grande historiador moçambicano Alexandre Lobato narrava de forma completamente díspar o ambiente na Rua da Gávea: «Paira no ambiente um cheiro doce e forte a especiaria, dos cozinhados do Oriente que se preparam nos telheiros dos quintais acanhados. As travessas e a rua são estreitas e debruadas de estreitíssimos passeios, como em Diu. Muitos prédios são ainda primitivos, dum só piso com cimalha, paredes grossas de pedra, janelas estreitas com taipais antigos e cadeados da Índia, portas grossas com ferrolhos enormes, frestas altas gradadas da rua para os quartos escuros. Os muros dos saguões são todos altos, com pequenas portas para os pátios estreitos onde, por vezes, se abrem poços fundos, antigos. Alcandoram-se, entre os muros, escadinhas, cubículos anexos, terraços e varandins, por entre papaeiras e plantas aromáticas de jardim, que os orientais cultivam sempre. Mas já não há palmeiras compondo os ambientes frescos, onde era calma a existência secular em negócio para a rua na sala de entrada e vida para o pátio nos quartos de trás, com a mercadoria por entre a família, e a forrar as prateleiras da loja», [Alexandre Lobato, 1970, Lourenço Marques, Xilunguíne, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, p. 193].

Na formação da comunidade de Lourenço Marques temos também uma referência à comunidade chinesa que nos trouxe também parte da sua cultural, nomeadamente na gastronomia, tendo também essa comunidade alguma importância no comércio.

Pouco se sabe sobre a mais fechada e discreta das comunidades residentes no Moçambique colonial. O único estudo sobre a comunidade chinesa levado a efeito nos tempos coloniais é o de D. J. Rebelo, «Chinese extraction group in Mozambique» [1970, Boletim da Sociedadede Estudos de Moçambique, 39:133-141]. Por aí e pelos censos conhecidos ficamos a saber que em 1894 viviam em Lourenço Marques 36 adultos homens, uma mulher e duas crianças chinesas (representando apenas 3,68 % da população «civilizada»). Em 1912, com a expansão da malha urbana, cidade e subúrbios contavam com 550 homens e 23 mulheres chineses. Depois dessa data, o seu número oscilou bastante: em 1928, Lourenço Marques tinha 314 chineses, em 1935 este número voltou a subir para 483 e em 1940 chegou a 570 indivíduos. O «Pagode Chinez (Associação Chineza)» foi fundado em 1903, mas reconhecido oficialmente pelo governo colonial somente em 1924. O Pagode tinha como objectivos promover a educação, a organização de festas, bailes e jogos e a assistência social aos membros necessitados em caso de desemprego, doença, invalidez e morte. Anexo ao edifício do Pagode existia um templo dedicado a Buda, edificação quadrangular de madeira e zinco. Finalmente, em 1938 fundou-se a Escola Chinesa, para providenciar ensino primário em chinês e português às crianças da comunidade, instalada em anexo do Pagode.

Ao que foi atrás mencionado, acrescento ainda que a comunidade nativa africana. Já por si resultante de uma mistura de vários povos dos quais me recordo os macondes e os macuas foram também intervenientes através da sua cultura, que estava profundamente enraizada na sociedade da época, nomeadamente através da sua língua e alguns costumes. Era comum usarmos palavras nativas no uso corrente da língua portuguesa como é caso de “kanimanbo” (obrigado), “chitôlo” (loja), “machamba” (fazenda), “chônguila” (bonito), “mufana” (miúdo), “xicuenbo” (feitiço) e de muitas outras de que já não me recordo. Também adoptámos algumas palavras da língua inglesa as quais “moçambicanizámos” como por exemplo a expressão “maningue nice” (muito bonito), “xuínga” (chewing gum), recordo mesmo que o “maningue” já havia substituído completamente a palavra “muito” além de outras mais. Já deu para perceber que em Moçambique existia uma interculturalidade bastante acentuada, e que as ligações culturais a Portugal eram pouco significativas, e mesmo as pessoas que chegavam da metrópole rapidamente se convertiam a esta interculturalidade existente no país.

Agora que já comentei um pouco da história de Lourenço Marques e da sua interculturalidade, vou referir-me à minha vida pessoal e aos costumes das pessoas com que convivi nessa cidade.

A minha vida em Moçambique

Eu vivia num bairro da classe média-alta designado por Summershield. O bairro do Summershield era caracterizado por ser um bairro “nobre” essencialmente composto por luxuosas moradias, com grandes jardins e quintais, e era frequente essas moradias terem piscinas. A zona onde residi não era a mais luxuosa nem possuía as moradias mais imponentes. Nesse bairro existia, como no resto de Lourenço Marques, uma grande convivência social entre vizinhos e amigos, e era frequente os vizinhos jantarem uns nas casas dos outros, lembro-me várias vezes de alguns dos vizinhos telefonarem à hora de jantar e dizerem: trás o teu jantar e vem cá a casa jantar connosco! Lembro-me também que quando o meu pai vinha duma caçada ou duma pescaria em que trazia muita caça ou peixe, andava pelos vizinhos a distribuir o que tinha caçado ou pescado. Era também frequente os vizinhos juntarem-se à noite depois do jantar em casa de um deles a beber uns copos e a conversar, ou a darem caminhadas todos em conjunto. Quando havia uma festa de anos ou um motivo de comemoração era costume convidar-se os vizinhos e amigos. Lembro-me também dos famosos bailes de garagem em que se reuniam os adolescentes e que não era preciso ser convidado pois os amigos levavam amigos e quem quisesse aparecer era sempre benvindo. Em conclusão, havia uma forte convivência social em que reinava um espírito de partilha e amizade.

Em termos de costumes religiosos posso dizer que a minha família era católica não praticante, pois embora tivesse sido baptizado, a minha família raramente ia a uma missa, excepto nas situações de baptizados, casamentos ou funerais de algum familiar ou amigo. Como nós, havia muitos católicos na mesma situação, a religião não era levada muito a sério, pelo menos nos termos em que o era em Portugal. Havia também uma variedade de religiões, sendo que aquela com maior expressão a seguir à cristã era a muçulmana. Havia uma grande tolerância entre todas elas, estávamos perfeitamente habituados à existência de outras religiões, como o demonstra a existência da mesquita, do pagode chinês, de igrejas protestantes, sendo que duas destas últimas, das mais importantes no Moçambique colonial, tinham contudo, esferas de influência muito diversa. A Igreja Wesliana Metodista era uma congregação que servia os muitos estrangeiros que, por essa altura, habitavam a cosmopolita Lourenço Marques. Já a Missão Suíça, de culto presbiteriano, era essencialmente dirigida aos africanos. Esta, estabelecida no sul da colónia desde o início do último quartel do século XIX, foi, em algumas ocasiões, uma instância defensora dos interesses das populações africanas colonizadas. O seu papel na formação de uma pequena elite africana instruída no Sul de Moçambique não pode ser ignorado e, desde 1900, a direcção eclesiástica da Missão passou a ser integralmente assumida por africanos.

Em termos gastronómicos, em Moçambique, havia uma grande mistura de gastronomias, sendo a gastronomia indiana bastante representativa, inclusive na comunidade de raça negra, nomeadamente através do caril e chamuças que já faziam parte da gastronomia nacional, embora o caril tenha sido “africanizado” com a adição do amendoim. Tínhamos também muito o uso de gastronomias africanas como o frango de churrasco, que era temperado com leite de cocô e bastante picante, geralmente designado por frango à cafreal, as maçarocas assadas e a batata-doce assada faziam também já parte da nossa gastronomia. O marisco, como as lagostas e os camarões tigre de Moçambique são mundialmente conhecidos. Existiam ainda imensas frutas tropicais como as mangas, papaias, as laranjas do Limpopo e os famosos abacaxis do norte de Moçambique, que eram frutas muito exportadas. A castanha de caju também é imensamente conhecida. Era também bastante popular a gastronomia chinesa, mas curiosamente a gastronomia inglesa e sul-africana não tinham qualquer representação na comunidade moçambicana, e digo curiosamente porque a cultura inglesa e sul-africana tinham uma grande influência na cultura moçambicana.

Em termos de quotidiano em Moçambique, era um costume muito implantado na classe média, após terminarem o seu dia trabalho (o que acontecia pelas 17:00), juntarem-se nas explanadas da “baixa”, e tomarem o seu uísque ou a sua cerveja e “darem dois dedos de conversa” antes de regressarem a casa. Ao fim de semana havia sempre uma grande variedade de actividades para se fazer. Lourenço Marques era uma cidade cheia de opções, havia a maravilhosa Praia da Polana ou a da Catembe (fica do outro lado da foz do rio, mesmo em frente a Lourenço Marques), havia o jardim zoológico, onde se podia passar uma tarde maravilhosa, apesar que para se ver um bocadinho da vida selvagem bastava ir até às arvores que existiam junto à praia e comtemplar os macacos que aí habitavam .O Luna Park era um parque de diversões permanente junto à marginal e que tinha a roda gigante, carrinhos de choque, barracas de diversões e mais uma série de actividades .A cidade possuía ainda cerca de uma dúzia de cinemas, museus, entre eles o famoso “museu Álvaro de Castro”, que possuía vários animais africanos embalsamados, logo no átrio principal da entrada tinha uma cena de três leões a atacar um búfalo que, apesar de estarem embalsamados ainda assustavam quem ali entrasse, havia também elefantes embalsamados e outros animais de grande porte. O jardim botânico tinha imensas espécies botânicas exóticas de uma beleza impressionante. À noite podia-se ir ao cinema “drive-in”, apreciar um filme e jantar um “fast-food” comprado no restaurante do mesmo, confortavelmente instalado dentro da sua própria viatura. Existia ainda um campo de mini-golf com restaurante. Ocasionalmente havia touradas na praça de touros da Matola (cidade mesmo ao Lado de Lourenço Marques). Tínhamos também as corridas de lanchas, as regatas de vela que se realizam não com muita frequência e que podiam ser observadas da nossa marginal. As corridas realizadas no autódromo internacional desta cidade (o autódromo mais antigo de Portugal) que competia em rivalidade com os autódromos da África do Sul e que traziam à cidade visitantes das mais diversas nacionalidades. Havia também alguns clubes com piscinas e marinas, como era o caso do clube de pesca que eu costumava frequentar, pois o meu pai era um aficcionado da pesca e sócio deste clube.

Neste clube, podíamos passar o dia a divertirmo-nos na piscina, embora o que o meu pai mais fazia ultimamente, era ir com uns amigos num barco, que possuía em conjunto com estes e que estava ancorado na marina do clube, para pescarias em alto mar ou no rio. E aqui lembro-me de uma ocasião em que íamos a toda a velocidade pelo rio acima e passámos por uma canoa de um pescador negro que nos começou a gritar e a acenar com os braços para pararmos o barco. Assim fizemos, e verificámos que à nossa frente estavam alguns crocodilos e íamos chocar contra estes. Recordo-me ainda que por vezes fazíamos passeios de lancha ou iate até à Inhaca (Ilha paradisíaca ao largo de Lourenço Marques) onde habitavam imensas espécies marinhas, onde chegámos a avistar por diversas vezes tubarões, sendo que estes eram frequentes em algumas das praias de Moçambique.

Exemplo disso era a praia do Xai-Xai, onde era posta uma rede no mar e os banhistas tomam banho dentro da rede para evitar que fossem atacados, na praia da Ponta do Ouro recordo-me também de estar a tomar banho na praia e de repente alguém começava a gritar “Tubarão! Tubarão!” e então com grande resignação éramos obrigados a sair da água e ficávamos a observar as barbatanas a passearam dentro da água enquanto nos encontrávamos em segurança na areia.

Um outro acontecimento que se realizava anualmente e que era um grande foco de atracção era a FACIM (Feira Agro-Pecuária, Comercial Industrial de Moçambique). Esta feira, sendo uma feira internacional com a representação de vários países e de grandes marcas internacionais trazia à cidade inúmeros visitantes estrangeiros de várias nacionalidades, e, apesar de ser uma feira agrícola e comercial tinha sempre espaços dedicados ao lazer e às crianças.

A 1ª edição da FACIM – Feira Agro-Pecuária, Comercial Industrial de Moçambique foi inaugurada no dia 24 de Julho de 1965, nos terrenos que actualmente ocupa. Todavia, é importante mencionar que, em 1950, os terrenos da zona compreendida entre a actual Rua Belmiro Muianga e Escola Náutica, Av. 25 de Setembro e Av. 10 de Novembro, albergaram a Exposição do Mundo Português, que assinalou a visita do General Óscar Carmona, Presidente da República Portuguesa à então Colónia de Moçambique

Para quem gostasse de desporto havia todo o tipo de actividades desportivas que podiam ser praticadas nos diversos clubes desportivos, sendo o basket e o hóquei em patins desportos muito populares nesta cidade. Nas actividades desportivas encontravam-se outras, as mais fora do comum, desde o paraquedismo ao ski aquático, passando pela pesca submarina, embora esta fosse também popular.

A cidade possuía ainda famosas esplanadas, salões de chá (alguns bem ao estilo inglês) e restaurantes com diversas gastronomias: portuguesa, indiana, chinesa, grega, e claro, como não podia deixar de ser a cozinha africana nacional.

Em termos de arquitectura era uma cidade moderna, com largas e enormes avenidas, nas quais existiam as belíssimas acácias, que na época da floração tornavam a cidade única, com um colorido inigualável. Podíamos também encontrar vários edifícios históricos, como a estação de caminhos de ferro, um edifício imponente, que segundo a revista newsweek foi considerada a mais bela de África. Esta estação foi desenhada por Gustave Eiffel em 1910, e a ideia era que a sua aparência se assemelhasse a um Palácio com pilares de mármore e enfeites em ferro fundido. Na cidade podia-mos também encontrar a mesquita da comunidade muçulmana, a famosa “casa de ferro”, a belíssima catedral onde fui batizado e que fica junto ao belo edifício da Câmara Municipal, e ainda muitos outros ícones da cidade, que não deixam de transparecer um passado em contraste com os modernos e altos edifícios dos quais destaco as famosas torres vermelhas com a sua imponência sobre a cidade e o famoso prédio dos 33 andares, que na altura em que foi construído era o edifício mais alto da Península Ibérica. Tudo isto sobre uma praia maravilhosa, tornando a paisagem um postal duma beleza indescritível.

Lourenço Marques tinha também vida noturna. Havia imensas discotecas, salões de baile, casinos e outros locais de diversão nocturna. Tínhamos também como ícone da vida nocturna a famosa Rua Araújo, onde se concentrava a maior parte das discotecas e bares pomposamente iluminados por neons imensos que atraíam muitos visitantes. Era também uma zona de prostituição que atraia muitos dos marinheiros que desembarcavam no porto de Lourenço Marques, porto este bastante influente nesta zona de África.

A situação geográfica de Lourenço Marques, a poucas dezenas de quilómetros da fronteira com a África do Sul, e, sobretudo, as excelentes condições naturais de acostagem na baía de Lourenço Marques, tinham tornado o seu porto muito concorrencial face aos portos sul-africanos, como o de Durban. Só assim se explica a explosão urbanística de Lourenço Marques, que em pouco mais de 25 anos, “aquele lugar infecto e pantanoso,” (copiando as palavras de António Enes em 1895) “onde se alinhavam meia-dúzia de casebres em torno de um fortim militar, sempre acossado pela hostilidade das «tribos cafres» vizinhas”, se tornou na imensa cidade que era.

Um outro aspecto que me deixa uma imensa saudade é o clima, aquele clima tropical onde no inverno apenas nos limitávamos a vestir uma camisola ou um casaco por causa do vento que era apenas fresco, e que durante a maior parte do ano tínhamos que ligar o ar condicionado para nos refrescarmos um pouco, pois passavam-se meses e até mesmo anos sem chuva significativa.

Nas férias, era nosso costume, como de muitos da classe média, ir explorar as imensas praias exóticas e praticamente selvagens que existiam por todo o país, onde era possível passar uns tempos sossegados longe de toda a civilização. Não vou fazer uma descrição de todas as praias onde passei férias, apenas vou fazer referência a duas delas. A Praia da Lagoa do Bilene, que tinha uma fina areia branca e águas cristalinas, e onde se podia andar umas dezenas de metros sempre com água pela cintura. Todavia, esta praia tinha um perigo que era o chamado “fundão”, pois após percorrermos algumas dezenas de metros havia uma queda abrupta de dezenas de metros de profundidade, em águas de um profundo azul-marinho. Recordo-me também nos passeios de barco dados nesta praia de se verem diversas espécies marinhas a passarem por debaixo do barco, inclusive raias de tamanho considerável. A outra praia que vou referir era a Praia de Závora, que possuía acessos difíceis, e onde havia apenas alguns bungalows e um restaurante. Nesta praia havia uma imensa vida selvagem aquática, inclusive tartarugas gigantes, que vinham aí desovar, lagostas e outros mariscos, além duma variedade enorme de peixes. Esta praia era frequentada por sul-africanos que faziam aí pesca submarina. Recordo-me de uma vez em que lá estava, dois sul-africanos pescarem com um arpão uma garoupa gigante com oitenta quilos.

O vestuário que usávamos era fresco e descontraído, os calções e as t-shirts faziam parte de qualquer guarda-roupa, existia também um traje masculino muito usado, a “balalaica”, que consistia num tipo de fato de camisa de mangas curtas e com 4 bolsos e umas calças ou calções. Estes fatos eram feitos de tecidos leves e de cores claras, sendo este tipo de roupa conhecido em Portugal como “safari”. Ao bom estilo africano, também era costume o uso de vestuário de cores fortes e vivas. A nível de moda, estávamos sempre ao corrente das últimas novidades europeias e americanas, estas últimas devido à forte ligação que tínhamos com a África do Sul.

Na música, além de termos música africana também estávamos ao corrente dos últimos êxitos da Europa e dos Estados Unidos, e era possível comprar discos em qualquer uma das lojas de discos da cidade sem qualquer tipo de restrições. Lembro-me perfeitamente de ter sempre os discos dos últimos êxitos mundiais da música rock. Recordo-me também dum facto curioso relacionado com uma das minhas poucas práticas que tinham a ver com a religião, que era ir ver filmes que eram projectados no salão da paróquia da igreja da Polana, o facto curioso é o que um dos filmes que vi nesse salão da paróquia era um filme sobre a vida dos Rolling Stones, que incluía vários concertos ao vivo dos mesmos.

Em termos de tecnologia, a tecnologia de ponta estava também sempre presente em Moçambique, devido à influência sul-africana, pois esta era uma grande parceira comercial, fazendo com que o nível de tecnologia usado no país ultrapassasse em larga escala o usado na metrópole. Existia ainda em Lourenço Marques toda a variedade de produtos de consumo das mais diversas naturezas, inclusive, havia muitos produtos cuja comercialização era proibida, e até mesmo desconhecida na metrópole mas que em Moçambique eram comercializados sem quaisquer restrições.

A linha férrea era também bastante extensa e muito importante na região sul de África, porque não só ligava o sul ao norte de Moçambique como a outros países, nomeadamente ao seu grande parceiro comercial, a África do Sul. A inauguração da linha que ligava Lourenço Marques a Pretória (capital da áfrica do Sul) foi feita em Junho de 1895 e teve no então presidente da África do Sul, Paul Kruger, um dos seus grandes defensores.

Moçambique possuía também a sua própria companhia de aviação, a “DETA”, que operava nos cerca de dez aeroportos de norte a sul do país, sendo o de maior dimensão o Aeroporto Internacional de Lourenço Marques, e os outros, de pequena ou média dimensão eram geralmente destinados a voos internos.

No estatuto da mulher da classe média, transparecia também um estatuto de mulher autónoma e independente. Isso era bem patente através de anúncios publicitários a cigarros dedicados especificamente ao público feminino e também nos anúncios a uma marca de cervejas, também voltados às mulher, em que esta era apresentada a beber uma cerveja em convívio com os amigos.

Recordo-me dum anúncio publicitário em que uma mulher paraquedista, depois de “aterrar” tirava o capacete e acendia um cigarro. O desporto feminino também era bastante divulgado nas mais diversas áreas, como o ténis, a natação, o basketball, etc. Foi ainda em Lourenço Marques que se realizou em setembro de 1971 o segundo congresso das mulheres da África Austral, patrocinado pelo Centro Moçambicano de Estudos Cooperativos, e que reuniu algumas dezenas de mulheres oriundas de Madagáscar, Suazilândia, Rodésia, Lesoto, Cisque, Moçambique, República da África do Sul e Angola. Este estatuto, nada tinha a ver com o estatuto da mulher nativa, que chegava a ser vendida pelo próprio pai numa prática denominada de lobolo. O lobolo (ou “o preço da noiva”), que consistia em “prendas” oferecidas pelo noivo aos pais da noiva em troca desta, foi muito criticado durante a luta de Moçambique pela independência, como sendo uma prática negativa em que as mulheres eram objecto de uma transacção comercial. Após a independência, o seu papel na sociedade foi sujeito a inúmeras discussões. No entanto, continua a ser olhado por alguns como uma instituição que oferece alguma protecção à mulher. Com efeito, o pagamento do lobolo origina um forte compromisso por parte das famílias, quer do noivo como da noiva, no crescimento da nova unidade familiar.

Um caso em que é demonstrado um certo estatuto à mulher africana, e que demonstra também que esta poderia adquirir uma certa independência e estatuto na sociedade é o que resolvi fazer referência: trata-se do caso de Lídia Tembe que aqui transcrevo:

Chama-se Lídia António da Silva Tembe, e nasceu no dia 25 de Junho de 1952 no bairro da Malhangalene, na antiga cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo. Pode-se dizer que o seu nome está ligado à história da aviação moçambicana, não fosse ela uma das primeiras assistentes de bordo negras a trabalhar na antiga Direcção de Exploração dos Transportes Aéreos (DETA), as actuais Linhas Aéreas de Moçambique (LAM).

A sua história começa em 1972 quando se candidata ao preenchimento das vagas anunciadas pela DETA, embora não soubesse que era para ser assistente de bordo. Quando teve conhecimento disso, desistiu dos exames psicotécnicos, que era a última fase do processo de selecção, por uma razão muito simples e nobre: “não estava interessada em deixar de estudar”.

Mas quis o destino que assim o fosse. A DETA contactou o Gabinete de Urbanização, onde ela fazia trabalhos extras no período da tarde (de manhã ia à escola), para “saber porque é que eu tinha desistido dos exames psicotécnicos. Convenceram-me a fazer os exames e fizeram-me acreditar que podia ter uma carreira brilhante. Falei com a minha mãe e ela apoiou-me”.

“Passei nos exames e no dia 25 de Junho de 1972, justamente no dia em que fazia 20 anos, fomos submetidas a uma formação de três meses, que decorreu em Inhambane. Éramos duas, mas a outra, a Juvenália Muthemba, actual deputada da Assembleia da República, desistiu”, conta.

Lídia Tembe afirma que a sua inserção na empresa não foi fácil, uma vez que o sector da aviação era, na altura, dominado por pessoas de cor branca, e de elite, para além da discriminação que existia. Afinal estávamos ainda no período colonial.

“Houve fases difíceis pelas quais tive de passar. Chegou uma altura em que eu queria desistir. Havia algumas colegas que não gostavam de me ver a trabalhar, embora não me dissessem directamente. A única pessoa com quem podia contar era a minha chefe. Ela avaliava as pessoas em função do trabalho, competência, e não da cor ou extracto social. As minhas colegas eram filhas de polícias e de gente importante. Eu vinha do subúrbio”.

Esta fase só passou em 1974 quando foi constituído o governo de transição, que tinha Joaquim Chissano como Primeiro-Ministro, não porque as pessoas tinham mudado de comportamento, mas porque havia o receio de perder o emprego pois o país estava a dar passos rumo à independência.
“Com o aproximar da independência, elas (as colegas), começaram a temer pelos seus postos de trabalho e pensavam: esta a quem estamos a discriminar será a nossa chefe amanhã. Temos de tratá-la bem”.

Foi de propósito que deixei para último um tema que também tem muito a ver com a interculturalidade, e que não podia deixar passar em branco, que é o tema do racismo. Seria hipocrisia da minha parte afirmar que em Lourenço Marques este tema não se manifestava. É evidente que havia situações de racismo na classe média da época, mas também é verdade que existiam pessoas de raça negra que estavam inseridas nesta comunidade sem grandes preconceitos. Recordo-me de haver pessoas de raça negra a exercer a profissão de médico, a minha própria mãe tinha dois professores de raça negra quando estudava na universidade, nomeadamente o Dr. Ineas Comiche e o Dr. Mário Machungo. O presidente da câmara de Nampula, Pedro Beiéssa (amigo do meu pai) também era de raça negra. Era frequente ver nos mais diversos locais pessoas de todas as raças a conviver num clima sem preconceitos. Não pretendo dar aqui qualquer conotação ideológica ou tentar minimizar a existência de racismo, apenas pretendo relatar factos que por mim foram presenciados ou pelos meus familiares relatados, e que são factos verídicos, entre muitos outros.

Num extrato de um texto publicado recentemente no jornal Público on-line vim descobrir que parte desta realidade que atrás descrevi era desconhecida em Portugal, devido à censura exercida pelo regime instituído na época e que não permitia que a mesma fosse conhecida. Transcrevo de seguida alguns dos excertos do texto do artigo, intitulado “CATEMBE: O OUTRO LADO DO TEMPO”, publicado no jornal anteriormente referido.

Catembe era o outro lado, literalmente. A outra margem da então Lourenço Marques, hoje Maputo, capital moçambicana. Catembe era o outro lado, metaforicamente. Vila piscatória cujo quotidiano não correspondia à imagem idílica pintada pela propaganda do Estado Novo. Catembe, de Faria de Almeida, a sua primeira e última longa-metragem, foi o filme mais retalhado pela censura na história do cinema português. Filmado em 1964, mostrava o outro lado, o “lado mais genuíno da vida local”. Retalhado, sobreviveu. Dos seus 87 minutos originais, sobraram 45.Documentário e ficção, a filmagem de uma realidade vivida mas não preservada em película. Começa em Lisboa, com Faria de Almeida perguntando na rua sobre Lourenço Marques.

Recebe as respostas de quem só conhecia a cidade através da propaganda do regime: “É na selva e há leões a andar na rua”. Depois, acompanha a vida em Lourenço Marques em cada um dos dias de uma semana.

António da Cunha Telles confessa nunca ter percebido por que é que a censura bloqueou tanto Catembe. Lembra-se de um filme “com muita candura e uma certa ingenuidade”, em que Faria de Almeida “concebe Lourenço Marques como ponto de partida para a união de todas as pessoas que habitavam Moçambique”. “Mesmo tendo em conta a sensibilidade das entidades oficiais da altura, nada fazia prever que o filme viesse a ser proibido”. Mas foi, como sabemos. Primeiro cortado a 45 minutos e depois censurado definitivamente, tornar-se-ia o momento decisivo da carreira de Faria de Almeida.

E agora que já dei a conhecer a parte do meu trabalho relacionada com a época que vivi em Moçambique vou dar início à segunda parte, que está relacionada com a minha vinda para Portugal, para uma aldeia no norte do pais: Vizela.

Breve história de Vizela

Vizela é uma cidade portuguesa no distrito de Braga, na região Norte de Portugal. O concelho foi criado em 24 de Maio de 1361, vindo a ser extinto em 3 de Fevereiro de 1408. Teve então a designação de Riba Vizela. Na região predomina a indústria têxtil, vestuário e calçado e possui um desenvolvido comércio. As empresas… estão ligadas ao ramo têxtil, vestuário e calçado, cuja produção está direccionada, quase exclusivamente, para o mercado externo. Vizela está também associada à prática do termalismo, tendo sido este um legado deixado pelos povos romanos.

Aproveitando a qualidade terapêutica das águas, indicadas para doenças respiratórias, doenças de pele e reumatismos, o actual balneário termal foi construído em 1870. Para além da vertente termal, o concelho oferece outras atracções ao visitante, desde vários monumentos interessantes a belas paisagens e à possibilidade de praticar diversas actividades de lazer, como o remo, o ténis ou a pesca.

A minha vinda para Portugal

Vim para Portugal, de barco, em março de 1976. Desembarquei em Barcelona e depois vim de táxi até Vizela.

Aqui nesta vila do interior do norte de Portugal vim encontrar uma realidade e cultura completamente diferentes daquela em que tinha crescido, pois vim parar a um meio predominantemente rural que possuía uma forte indústria têxtil e de calçado.

A sociedade vizelense da época era uma sociedade de província, em que as classes sociais estavam bem demarcadas, a classe média onde me vim inserir era regida por uma mentalidade profundamente egoísta, em que as pessoas apenas se empenhavam em competir entre si, numa demonstração de estatuto e poder. Nos convívios que havia, e que geralmente eram entre a família, apenas se “pavoneavam” entre si, numa demonstração de ver quem tinha mais bens que os outros e quem era mais esperto que os outros, e aqui o conceito de “esperteza” era sobre o facto de ganhar mais dinheiro ou não. Nos primeiros dias em Portugal fiquei em casa de um tio meu de Vizela, que era um dos grandes industriais da zona, e aí pude conhecer a família do meu pai.

O grande choque começou logo com as grandes diferenças meteorológicas entre Portugal e a minha terra, enquanto lá tínhamos um clima ameno, aqui era um frio de “rachar” e estava sempre a chover. Uma vez que cheguei cá em finais de Março, ainda faltavam meses para que eu pudesse ter um bocado de calor para poder amenizar o choque térmico que estava a sentir. As diferentes mentalidades que havia entre mim e os meus primos, que eram sensivelmente da mesma idade que eu e os meus irmãos era também outro grande choque, pois a única coisa de que sabiam falar era de futebol e política. A linguagem era também bastante diferente da nossa, pois além de falarem com um sotaque que vim depois a saber que era o sotaque típico do norte, não diziam duas palavras sem dizer um palavrão pelo meio, coisa que em Moçambique na altura era bastante raro ouvir-se. Após conhecer nesses primeiros dias a realidade da vida vizelense, orgulhosamente mostrada pelos meus primos, e que consistia em passeios pelo parque de Vizela e idas ao café para jogar bilhar e fumar um “SG Ventil”, fiquei também a conhecer um dos grandes divertimentos nocturnos de então, que consistia em ficar em casa a ver televisão. De facto, a televisão era a única coisa que Portugal se podia orgulhar de ter e que em Moçambique ainda não existia (mas também, como dá para perceber, não fazia lá falta nenhuma). Um outro aspecto que criou um constrangimento à família do meu pai e à comunidade, foi o facto de tratarmos toda a gente por tu e tratarmos o meu pai e mãe pelos seus nomes próprios (quando digo nós, refiro-me a mim e aos meus dois irmãos), pois na sociedade Vizelense era costume as pessoas tratarem-se por “bóçê” e ninguém tratava os pais nem por “tu” e muito menos pelo seu primeiro nome. Outro facto que chocou a comunidade foi o facto de a minha mãe fumar em público, e mais grave ainda fumar em frente do seu marido. Para a família “era uma total falta de respeito”. Não quer dizer que as mulheres da família não fumassem, mas às casadas não “lhes ficava bem fumar à frente dos maridos ou à frente dos homens ou da família”, se fumassem “entre si”, já não havia grande problema. Como se pode verificar, nesta sociedade, o papel da mulher era geralmente o papel da boa dona de casa que cuidava da educação dos filhos. Embora na maior parte da sociedade as mulheres fossem donas de casa, havia algumas que trabalhavam, como era o caso das minhas tias, que eram professoras. Havia uma delas que em vez de ser professora, ajudava o marido na fábrica de confecções “lidando com as empregadas de confecção e pondo estas na ordem”, recordo ainda um episódio que se passou com a minha mãe e que demonstra bem o estatuto da mulher, não só na sociedade vizelense, mas em todo o território nacional, e que foi o facto da ela se ter deslocado comigo e com os meus irmãos a Espanha, e na fronteira não nos deixarem atravessar porque ela não levava uma autorização do marido a dizer que a deixava ir a Espanha. Como era possível que mais de três anos após o 25 de Abril esta situação ainda se verificasse? Como se não bastasse já todo o mal de que estava a padecer fui viver para uma freguesia nos arredores de Vizela, numa localidade rural denominada S. Martinho de Conde. Esta comunidade predominantemente rural, além de umas casas de aldeões, tinha também algumas quintas, uma igreja e uma escola. Fui residir para uma quinta que um tio meu de Vizela tinha adquirido para a restaurar, e que gentilmente nos cedeu para podermos morar até o meu pai conseguir organizar a vida dele. Nesta localidade com estradas em paralelo, coisa que em Moçambique não existia, era pouco frequente circularem automóveis, e o que se via com relativa frequência era ainda alguns tractores e carros de bois, coisa que também nunca tinha visto. Na localidade havia duas ou três “vendas”, como eram denominadas, e que consistiam em pequenas mercearias com poucas condições higiénicas, frequentadas por trabalhadores rurais. O meu primeiro contacto com uma destas “vendas” foi quando, a pedido da minha mãe lá me dirigi para comprar mantimentos. Quando lá cheguei, foi o silêncio total. Ficaram todos a olhar para mim com uma cara de espanto, inclusive as crianças a comtemplar a “ave rara vinda das áfricas”, pois na aldeia já todos tinham conhecimento da nossa chegada. Só me apeteceu dar a volta e sair dali o mais depressa possível, mas uns minutos após me terem comtemplado dos pés à cabeça, os clientes que estavam na loja lá voltaram às suas compras, foi então que eu reparei que a linguagem ali utilizada ainda era mais incompreensível e ordinária do que a usada pelos meu primos.

Quando chegou à minha vez de ser atendido disse à senhora que me atendeu o que pretendia e ela lá me forneceu os mantimentos ao que após me perguntou um “brobóbóbró” que não entendi e que me limitei a abanar com a cabeça.

Algumas das casas dos vizinhos não tinham instalações sanitárias, pelo que era costume lavarem-se no tanque da roupa e fazerem as suas necessidades pelo monte.

Passados uns dias fui levado a conhecer a cidade de Guimarães, o berço da nacionalidade, ali tinha começado Portugal. Estava bastante entusiasmado, pois finalmente ia sair daquela aldeia e conhecer uma cidade. Lá fomos de carro, eu sempre à espera de conhecer a cidade, pois tínhamos saído duma aldeia e estávamos a entrar noutra e ainda não via vestígios de qualquer cidade. Foi então que fui informado de que já nos encontrávamos na cidade. Mas qual cidade, qual quê? Será que esta gente não sabia o que era uma cidade?

As roupas que usávamos, a maneira como falávamos, enfim qualquer coisa que fizéssemos causava o espanto em qualquer sítio a que fossemos.

Outro grande espanto para mim foram as práticas religiosas, pois pouco tempo depois de termos chegado, foi a Páscoa. Nessa altura, estava ainda em casa do meu tio em Vizela, quando no domingo de Páscoa fui confrontado com o “compasso”, em que tive que beijar a cruz que era carregada pelas pessoas que acompanhavam o padre que visitava todas as casas da vila. Em Moçambique desconhecíamos totalmente esta prática religiosa, e não me lembro de alguma vez ter ouvido falar dela.

Na aldeia, os aldeões, que durante a semana andavam sempre com a mesma roupa, ao domingo tomavam banho e “aprumavam-se” todos para ir à missa.

Finalmente chegou o verão, lembro-me da primeira vez que saí à rua de calções, pois já fazia bastante calor, foi um escândalo total, as velhotas viravam a cara para o lado como se eu caminhasse de cuecas pela rua.

Passado o verão começaram, as aulas, ingressei no liceu de Guimarães e foi então que conheci alguns “retornados” como eu, vindos de Angola e Moçambique, que também nunca cá tinham estado, e com os quais podia ter conversas “normais”, podíamos também lamentar-nos desta “maldita terra”, onde eramos marginalizados e rotulados de “retornados exploradores dos pretos”. Tudo isto ia criando em nós um sentimento de revolta contra estes parolos, “matrecos dum raio”, e ia fazendo com que cada vez nos isolássemos mais em comunidades, junto com os outros “patrícios” nossos.

A integração

O Tempo foi passando, e pouco a pouco fomos estabelecendo contacto com os nossos amigos de “LM” e nos fomos conformando com a nossa sorte.

Portugal também foi mudando, e já começavam a aparecer os “nossos” produtos, como a Coca-Cola, que era um dos símbolos da minha terra, inclusive os residentes de Lourenço Marques eram apelidados de “os coca-colas” devido ao hábito que tínhamos de beber esta bebida, que na altura em que cá cheguei não existia e era preciso ir a Espanha para poder disfrutá-la.

Fomos criando amizades com colegas de liceu que não eram retornados e convivendo com eles, fomo-nos integrando em alguns dos costumes de Guimarães e mais tarde quando vim estudar para a faculdade para o Porto com o meu irmão, aí estabelecemos novas amizades. O pessoal já era mais “fixe”, a cidade já era “grandita”, e lá nos fomos habituando à vida em Portugal.

Conclusão

Apesar de ter vivido cerca de 37 anos em Portugal e apenas 15 anos em Moçambique, nunca consegui absorver totalmente a cultura e modo de vida deste país. Sinto que nunca me consegui integrar completamente na comunidade, nem pelo facto de cá ter formado a minha própria família.

Cada vez que viajo não sinto aquela satisfação do regresso quando cá chego. Pelo contrário, quando, em 2009, fui à “minha terra”, à chegada senti logo “aquele cheiro”, e embora “LM” estivesse bastante mudada, senti que estava em casa.

Chego à conclusão que os primeiros anos da vida de alguém são os anos que vão influenciar definitivamente a vida e a cultura dessa pessoa para o resto da sua vida, e que, apesar do facto de sofrermos grandes variações culturais ao longo da nossa vida, as primeiras experiências são na minha opinião as mais determinantes.

Sérgio Guimarães