3 de junho de 2015

Retornados: 40 anos depois recomeçar do zero



Conheça as histórias de pessoas da região que deixaram as ex-colónias de África depois do 25 de Abril
Retornados: voltar sem nada e recomeçar do zero
África era o sonho e a paixão de muitos portugueses. Durante décadas, deixaram para trás tudo o que conheciam e lançaram-se à aventura, à procura de uma vida melhor nos territórios ultramarinos. Foram essas pessoas que ajudaram as ex-colónias a desenvolver-se, que aí incentivaram a agricultura e o comércio. Até ao dia em que o sonho se esfumou. O 25 de Abril de 1974 pôs fim à Guerra Colonial e abriu portas ao processo de descolonização de territórios como Angola, Moçambique, Guiné, Timor e Cabo-Verde. A instabilidade e a insegurança cresceram e cerca de meio milhão de pessoas optou por fugir para Portugal, entre o Verão de 1974 e o de 1975. A maioria chegava com nada ou quase nada, deixando para trás casas, carros, fazendas, empresas, prédios, roupas e dinheiro. Muitos ainda embarcaram haveres em contentores e caixotes, mas grande parte nunca chegou ou foi saqueada. Cá deparam-se com um país mais atrasado e com uma mentalidade mais fechada.
Encontraram poucos apoios, mas mesmo assim a maioria conseguiu reerguer-se rapidamente. Foram muitos os nomes que lhes chamaram, desde repatriados, refugiados, fugitivos, desalojados, espoliados... O que ficou para a história foi só um: retornados. Esta semana, contamos-lhe algumas histórias de quem perdeu tudo, arregaçou as mangas e recomeçou, quase do zero.

A Revolução dos Cravos, em 1974, determinou o fim da Guerra Colonial. Os novos líderes políticos do país estavam dispostos a aceitar a independência das colónias e começaram a negociar com os movimentos de libertação. Nessa altura, a actuação das forças armadas deixava de fazer sentido.
Aumentou então a insegurança, a destruição de propriedades e os ataques a brancos. E grande parte dos portugueses que estava nos territórios ultramarinos iniciou um movimento de regresso à antiga metrópole. Desde o Verão de 1974, os residentes em Angola, Moçambique, Guiné, Timor e Cabo-Verde estavam a voltar para Portugal, um movimento que se prolongou até 1975. Nesse ano, uma ponte aérea trouxe centenas de milhares de pessoas para Portugal.
Muitos tinham nascido lá e voltavam para uma terra que não viam como sua. Outros voltavam revoltados por tudo o que foram obrigados a deixar para trás.

"O porto de Luanda ficou cheio de contentores"
Em Luanda, Angola, e Lourenço Marques (actual Maputo), Moçambique, a procura por bilhetes de avião e barco aumentava de dia para dia. "Foi o caos completo, havia desorganização, actos de guerra, falta de meios. As pessoas tentavam trocar bens por dinheiro ou embarcar o de maior valor.
Alguns não conseguiram trazer nada, sobretudo os de fora de Luanda", recorda Carlos Santos, que regressou de Angola em 1975.
Também António Nunes e Marina Braz, que estiveram 18 anos em Angola, se recordam deste ano em que tudo era deixado para trás, desde empresas a fazendas, casas e terrenos, dinheiro e roupas. "A maioria não olhou para trás, encaixotou as coisas e procurou partir. O porto de Luanda ficou cheio de contentores para embarcar, não se saberia quando nem quantos acabaram por ficar lá. E muitos foram vandalizados", contam. "Havia filas para comprar bilhetes de avião e os aeroportos estavam cheios de pessoas que aí dormiam à espera da hora de partir", acrescentam. A falta de alguns bens de consumo e a insegurança faziam fugir não só para Portugal mas para países como Brasil e África do Sul. Eles aguentaram até 1979 à espera de uma estabilidade política que não chegou. Só então regressaram a Portugal.
Como estavam suspensas as transferências cambiais entre os territórios ultramarinos e a metrópole, os retornados não podiam trazer o dinheiro que tinham acumulado durante anos. Houve quem deixasse para trás fortunas e houve quem enganasse as revistas e conseguisse trazer algum dinheiro na roupa interior, como Maria de Lurdes Pereira, de Paredes.
Depois de ter voltado com o marido doente, em Junho de 1973, pensando que regressaria em breve, Aurora Pereira apanhou um avião e foi sozinha a Angola em Maio de 1975, na tentativa de salvar alguma coisa do que lá deixou. "Tínhamos vindo com pouco mais do que a roupa do corpo", explica. Voltou a uma cidade em que o comércio estava de portas fechadas e em que as pessoas chegavam constantemente de saco de sarapilheira às costas. Luanda já não era o que conhecia. Embarcou algumas coisas, que acabaram por só chegar meses depois, e a maior parte desfeita, e procurou antecipar a viagem de regresso. Na agência mandaram-na guardar o bilhete como um tesouro. Não havia viagens para os próximos tempos. "Havia pessoas que estavam há 15 dias à espera no aeroporto e as suas malas eram lençóis amarrados", recorda. Na memória ficou ainda o tiroteio que ouviu no aeroporto quando esperava para entrar no avião.
 "Eu e outro professor fomos impedidos de dar aulas por sermos brancos. Se insistíssemos matavam-nos"
O choque foi igual em Moçambique. Em Lourenço Marques não se percebia o porquê da Revolução dos Cravos. "Eu e outro professor fomos impedidos de dar aulas por sermos brancos. Se insistíssemos em leccionar já havia um grupo com paus à espera para nos matar", revive Anabela Costa. "Muitos fugiram pelas fronteiras e lembro-me de haver gente negra, decapitada, por deixar sair o amigo branco do país", refere a nascida em Moçambique.
"É o preto quem manda, o branco obedece", era esse o lema depois do 25 de Abril. "Um dia o administrador da província de Cabo Delgado disse para não abrir as portas do meu comércio no dia a seguir. De manhã não se via um palmo de estrada. Era só pretos na rua com paus e catanas", conta Maria de Lurdes Pereira. Fora das grandes cidades de Moçambique as pessoas começaram logo a fugir com este clima de medo. "Mas eu não queria, adorava aquela terra". Até que o marido a obrigou a voltar com os filhos. Esperaram sete dias para ter lugar no avião em Lourenço Marques onde a confusão era grande, com muitos brancos à espera para viajar. Numa escala do avião em Angola, os poucos lugares vazios foram logo ocupados. "Vinha gente de chinelos de quarto ou enrolada em toalhas de banho", lembra a paredense.
Encontravam um país de mentalidade diferente
De regresso a Portugal a vida não era mais fácil. A maioria não tinha cá casa e muitos não tinham apoio familiar. Foi criado o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais (IARN), um organismo que devia apoiar economicamente os retornados, mas que pouco fez. Além das dificuldades monetárias, quem voltava das ex-colónias deparava-se com um país com costumes diferentes e uma mentalidade mais fechada. E nem sempre eram bem recebidos. As diferenças estavam em todo o lado. Até na forma de vestir se percebia quem era retornado.
Neste aspecto, o pensamento de vários retornados é comum: encontraram um país mais atrasado em relação a África. "Havia uma diferença de mentalidade muito grande. As mulheres que voltavam já vestiam calções e usavam decotes e essa diferença passava também para a forma de fazer negócios", explica Carlos Santos, sustentando que, por exemplo, a primeira churrasqueira de Portugal foi aberta em 1975 por um retornado.
Também Anabela Costa se lembra deste choque cultural. Um país onde não havia Coca-Cola, Fanta ou frango de churrasco e onde as vias de comunicação entre Lisboa e Porto eram horríveis. O atraso estava também na educação, garante a professora. "As nossas colegas estavam com um atraso muito grande perante quem veio de Angola e Moçambique. Vínhamos com uma bagagem cultural diferente das pessoas daqui. O ensino em Portugal era muito básico, não havia música, educação física e visual, era só o aprender a escrever e contar", salienta.

"É mais fácil arranjar um melro de bico branco do que um retornado sério"
Apesar de trazerem uma experiência superior à média, os retornados não eram bem vistos por grande parte dos portugueses. Muitos acreditavam que eles vinham roubar emprego aos que cá estavam. Um estigma que perdurou durante muitos anos. "Houve uma certa perseguição aos retornados por quem nunca saiu de cá. Porquê? A maior parte dos retornados chegou cá com outra mentalidade e com vontade de começar uma vida nova. E quando viram que esses retornados singravam ainda cresceu mais o rancor", afirma António Nunes. Carlos Nunes lembra-se mesmo de uma frase que costumava ouvir em conversas de café: "É mais fácil arranjar um melro de bico branco do que um retornado sério".

Para quem não tinha nascido em Portugal e não via o país como seu, a questão ainda era mais ofensiva. "Eu não era retornada. Estava a aprender a ser portuguesa. Demorei dois anos a gostar do país e a habituar-me ao clima. Durante esses dois anos quis regressar a Moçambique", sublinha Anabela Costa.
Estas pessoas, que enfrentaram lá um clima de instabilidade e muitas dificuldades, conseguem ainda assim sentir saudades das ex-colónias. "Moçambique, ainda hoje, é tudo para mim. Se eu fosse nova e tivesse saúde ia outra vez para lá", garante Maria de Lurdes Pereira. Já António Nunes e Marina Braz continuam revoltados pela forma como foram obrigados a regressar. "Podia-se ter feito uma descolonização mais lenta e responsável e muitos poderiam ter ficado lá. Não houve uma política correcta em relação aos portugueses que estavam no ultramar. Houve um desprezo e desrespeito total pelos filhos da pátria", critica António Nunes. "Angola ficou-me cá dentro, ainda hoje gosto mais de Angola do que de cá", assume a esposa.

Aurora Ferreira, Angola
"Toda a noite se ouvia o barulho de pessoas a martelar, a fazer caixotes"

Aurora Ferreira viveu sempre uma vida de trabalho. Vinha de uma família de 12 irmãos e era uma das mais velhas, pelo que desde cedo teve que ajudar no campo e no negócio de gado do pai. "Durante anos ia daqui a Canelas e a Aguiar de Sousa buscar cabritos à cabeça. Não há carro com mais quilómetros que as minhas pernas", brinca a paredense, hoje com 76 anos.
Viveu na Sobreira até 1963, altura em que casou por procuração e embarcou para Angola, ao encontro do marido que, depois de cumprir o serviço militar, ingressou na polícia da ex-colónia. Chegou em Julho, no navio Vera Cruz, e instalou-se em Luanda, primeiro numa casa alugada e depois em casa própria. No início, estranhou a comida, mas rapidamente passou a gostar. Gostava também das pessoas e da convivência.
Viviam uma vida pacata e regrada, já que só o marido trabalhava. Ela chegou a estar empregada num depósito de pão. A primeira filha nasceu logo em 1964 e, dois anos mais tarde, vieram de "licença graciosa" (um período de férias de cerca de seis meses) à metrópole. "Mas estávamos ansiosos por voltar", conta Aurora Ferreira.
Luanda era uma cidade tranquila, onde bastava vestir uns calções e uns chinelos de dedo (só se vestiam a rigor em casamentos, baptizados e funerais). O clima ajudava, e no quintal as colheitas eram feitas sempre duas vezes por ano: "tínhamos uvas no Natal". E havia convívio, cinema e churrascadas com os vizinhos.
Tiveram de deixar o país, com as duas filhas, em 1973, antes do 25 de Abril e da independência. O marido estava doente e precisava de tratamentos em Portugal. Nessa altura a guerra ainda não tinha chegado à cidade. E sempre pensaram que o regresso era temporário e em breve voltariam a Angola. Não foi assim.
Quando chegaram instalaram-se numa pequena loja em casa dos pais dela, onde antes guardavam presuntos, e tinham uma cama de ferro e pouco mais. As filhas tiveram uma adaptação complicada porque vinham de um local com mais qualidade de vida. "Trocar uma sanita por uma retrete foi complicado", recorda Palmira. "Lembro-me de ir pedir pão à padaria e berrarem comigo a dizer aqui não há pão, aqui há molete", acrescenta Anabela.
Aurora Ferreira havia de voltar, em Maio de 1975, na tentativa de salvar alguma coisa do que deixaram para trás. Encontrou uma cidade em fuga e em clima conturbado. "Toda a noite se ouvia o barulho de pessoas a martelar, a fazer caixotes para embalar coisas", explica.  Ela também preparou algumas coisas, mas a maioria nunca chegou.
Acabaram por fazer uma pequena casa num terreno do pai. Um irmão ajudou com dinheiro, "algum emprestado e outro dado", e os amigos ajudaram nas obras. "Um vizinho deu-nos a luz e não cobrou nada", salienta a natural da Sobreira. Ainda assim viveram com dificuldades. O marido estava de baixa e ia recebendo, mas a família passou a viver de coisas dadas. "Cheguei a ir ao Porto e trouxe um bolo que parti a meio para dar às minhas filhas. Eu não comi nenhum", lamenta.
Ficou viúva em 1976. E havia de demorar quatro anos até conseguir receber a pensão a que tinha direito. Teve que bater a muitas portas e dar muitas voltas em Lisboa. Para sustentar a casa e as filhas, Aurora Ferreira fez roupa de malha, colchas e rendas para vender.

 Carlos Santos, Angola
"As pessoas começaram a sair sem nada, deixavam tudo para trás"

"Não me considero retornado". Nascido em Sobrado, Valongo, Carlos Santos foi levado pelos pais para Angola com apenas um ano. Esse foi o país onde cresceu, viveu e que adoptou como seu. A família fixou-se no norte do país, em Bula Atumba, e o pai, que começou como caçador, acabou por ter fazendas de café, comércio e uma empresa de corte de madeira.
No início de 1961, começou a guerra que procurava a libertação de Angola, e a 15 de Março houve um massacre de populações brancas e negros de outras regiões. "Quem estava fora de Luanda e perto da fronteira do Congo teve que se proteger. Houve muitos esquartejamentos, mortes, violações e gente feita prisioneira. Os nativos protegerem muita gente e houve quem se refugiasse em Luanda", recorda Carlos Santos. Foi o seu caso. Tinha 13 anos quando conduziu um camião cheio de pessoas, e meia dúzia de haveres, que procurou refúgio em Luanda.
Começou então a aprender a arte de mecânico e, dois anos mais tarde, regressou ao norte de Angola e montou a sua própria oficina. "Aquele país era uma terra de oportunidades, mas era preciso trabalhar", garante. O povo era solidário e havia uma cultura de convívio e partilha. Por exemplo, conta, havia casas, como a sua, em que se deixa comida em cima da mesa para os comerciantes que circulavam com as mercadorias entre aldeias e passavam por ali durante a noite. "A porta ficava aberta para os receber. Em nossa casa todas as noites havia bifes", recorda.
Em 1974, Carlos Santos assistiu à debandada de pessoas para Luanda e também para África do Sul, Brasil e Portugal com o objectivo de começar uma vida nova. "A guerra entre o norte e o sul estava a crescer e assistiam-se a actos de terrorismo, com pessoas decapitadas e as suas cabeças a serem penduradas em postes". "As pessoas começaram a sair sem nada, deixavam tudo para trás, carros, casas, obras de arte…", explica.
Esse foi o ano em que casou, em Luanda. Quando a mulher teve duas filhas gémeas que precisavam de tratamento, decidiram abandonar o país. Voltaram em Abril de 1975. "Cheguei cá com uns calções e uma camisa. Estava frio mas nunca tinha vestido uma camisola interior ou umas ceroulas", conta Carlos Santos, agora com 70 anos.
Na casa dos pais da mulher, onde se instalaram, em Vila Nova de Gaia, viviam mais duas famílias retornadas. "Dormi muitas vezes num jardim da serra num banco", recorda. Como cá havia procura por mecânicos, 11 dias depois já estava a trabalhar e em dois meses alugou casa. Mas reconhece que a maioria das famílias teve dificuldades em integrar-se. E houve outras que fugiram separadas e onde se prolongaram as separações por 40 anos. "Eu estive cinco anos sem saber dos meus pais que fugiram para África do Sul e acabaram por manter-se lá porque não tinham dinheiro para voltar. Fui eu que os recebi com o meu irmão mais novo em 1979", refere.
Carlos Santos trabalhou durante 25 anos na STCP, na área da segurança. E foi sócio de uma fábrica até 2000. Veio para Lousada, onde mora actualmente, em 2002, quando casou pela segunda vez.
António Nunes e Marina Braz, Angola
"Foi uma aventura muito grande ter lá ficado"

Se houve quem fugisse às pressas houve também aqueles que ficaram, ansiando por dias melhores. Mas a vida não foi mais fácil. António Nunes e Marina Braz, ambos com 73 anos, aguentaram a vida em Luanda até 1979. Altura em que decidiram, para bem dos três filhos, voltar a Portugal.
A história repete-se igual a tantas outras. António Nunes foi para Angola em 1962, para cumprir o serviço militar. Quatro anos depois ingressou na polícia e chamou a actual esposa. "Achava Angola uma maravilha. Havia lá lugar para toda a gente. Nunca tive nenhum problema com os angolanos", recorda o homem que chegou a sub-chefe de polícia e serviu em zonas "quentes" de confronto. Mas até ao 25 de Abril, Luanda não era palco de actos de guerra e fazia-se vida normal. A insegurança estava fora da cidade.
Em 1974 e 1975, o casal viu milhares de pessoas a abandonar Angola. Escolheram ficar, mas não escondem que passaram por situações complicadas: "Chegou a cair uma bomba num anexo da casa onde vivíamos. E estávamos sempre a mudar de casa, para estarmos mais próximos do centro de Luanda, onde havia mais segurança". Nesse período pós-independência enfrentaram várias crises, mas conseguiram que não faltasse nada aos três filhos.
Nesse período de luta entre partidos Luanda foi martirizada. Houve muita coisa destruída e passou-se uma fase complicada. "Uma vez fui buscar fruta e gerou-se um tiroteio tão grande que me enfiei debaixo de uma camioneta, com outras pessoas. Não havia outra saída", lembra a lousadense.
"Chegou uma vez um preto a minha casa todo ensanguentado e de catana na mão a pedir água fresca. Demos-lhe água e três laranjas e ele, felizmente, foi-se embora", acrescenta o marido. Em várias ocasiões assistiam, da janela, a tiroteios, e chegaram a dormir nos corredores com vizinhos, para estarem mais afastados das paredes exteriores. "Não tenho nada contra os angolanos, mas tenho contra os políticos que foram os traidores do seu povo. Nós estávamos lá e víamos as casas a arder quando o Rosa Coutinho [Alto-Comissário de Angola] dizia que era boato. Matavam taxistas e incendiavam as casas de portugueses, houve muitas mortes inocentes", lamentam.

Até 1979 viveram uma vida condicionada, com deslocações entre a casa e o trabalho e pouco mais. Com os filhos a crescer e a situação a não melhorar optaram por enfrentar o regresso. "Eles nem podiam sair à rua sozinhos e não andavam na escola", explica a mãe. "Foi uma aventura muito grande ter lá ficado", reconhecem hoje. Compraram bilhetes como se fossem de férias e entraram no avião, supostamente com destino ao Brasil, com os três filhos de 14, 11 e 8 anos. Saíram no Porto, quando o avião fez escala. "Voltamos sem nada. Trouxemos roupa e pouco mais. Não conseguimos trazer nenhum dinheiro", sustentam. Alojaram-se em casa dos pais de Marina, em Meinedo, Lousada. "Felizmente não tivemos que sentir a dor dos que chegaram e ficaram a dormir no aeroporto, feitos bichos, à espera de realojamento do IARN", sublinham.
Também eles enfrentaram o estigma da palavra retornado, muitas vezes proferida pela própria família. Acabaram por comprar casa e estabelecer-se em Paredes. Até hoje, sentem-se revoltados com a forma como foram obrigados a deixar Angola.

Anabela Costa, Moçambique
"Achei Portugal muito atrasado em relação às colónias"

Nascida em Moçambique, Anabela Costa, professora, sofreu dois choques quando se viu obrigada a deixar a ex-colónia e voltar para uma metrópole que não conhecia. O da diferença de cultura e mentalidade do país e também as diferenças no sistema de ensino.
Filha de um médico com família em Portugal, que nunca a reconheceu como filha, Anabela Costa cresceu com a avó e a mãe, naturais do Algarve. Foi educada num colégio interno salesiano a 70 quilómetros de Lourenço Marques (actual Maputo) e ingressou no Magistério aos 17 anos. Casou lá e exerceu as funções de professora em Moçambique entre 1970 e 1975, período em que, na sua maioria, havia uma sã convivência entre negros e brancos.
Depois de Abril de 1974 as coisas mudaram e tornaram-se instáveis. "Lembro-me de sermos obrigados a parar em serviço para cantar o hino e de ver içar a bandeira da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique)", conta. Começou a haver confrontos racistas e mortes dos dois lados. "O meu ex-marido foi procurado três vezes na empresa, com metralhadoras, e foi acusado de ser capitalista e explorar os negros", explica a ex-docente.
Lourenço Marques tornou-se um emaranhado de contentores à espera de embarcar. As pessoas fugiam de avião e de barco, para vários países, sem saber falar a língua. "Só quem tinha amigos influentes conseguia trazer alguns bens. As transferências de dinheiro para Portugal foram suspensas. Houve pessoas que chegaram cá muito bem de vida, mas o meu ex-marido chegou com uma mão à frente e outra atrás", recorda Anabela. "Lá a sociedade civil estava revoltada. Lembro-me de tentarmos atacar a Rádio de Moçambique para dizermos que queríamos continuar a ser Portugal", acrescenta.
Acabou por vir para Portugal, com a filha mais velha, em 1976. Os professores brancos tinham sido impedidos de dar aulas e não fazia sentido continuar lá. Encontrou um país que não conhecia e achou-o "muito atrasado em relação às colónias". Como havia falta de professores começou por ir para a Madeira dar aulas. Três meses depois veio para o Porto. A experiência que o ensino em Moçambique, mais avançado que o português na altura, lhe trouxe, permitiu que ficasse logo com o cargo de coordenadora pedagógica e orientadora de estágios numa escola. Deu aulas em Paços de Ferreira, esteve quatro anos no Brasil, e depois acabou por fixar-se em Lousada em 1989. Está hoje reformada.
Não esconde que continua a pensar muitas vezes em Moçambique e que, nos primeiros dois anos que esteve em Portugal, quis sempre regressar.
Acabou por visitar Maputo em 2005. "Encontrei uma cidade em parte destruída e em parte em reconstrução. Uma juventude mais interessada no inglês que no português e muita corrupção", resume.

 Maria de Lurdes Pereira, Moçambique
"Toda a gente dizia que vinha embora, mas eu não queria voltar. Adorava aquela terra"

Para Maria de Lurdes Pereira tudo em Moçambique foi uma aventura. Viveu muito tempo no meio do nada, contando apenas com o apoio de alguns negros. Chegou à ex-colónia com 24 anos, depois de um mês de viagem de barco, e juntou-se ao marido que trabalhava nas plantações de algodão. Andou horas por estradas sem condições até chegar àquela que seria a sua casa: uma palhota coberta de capim e chão de terra. "Só no outro dia vi que não havia nada lá à volta e que o vizinho mais próximo estava a 45 quilómetros", conta a paredense. Logo procuraram mudar de vida e foram tomar conta de uma loja de comércio. Continuavam a muitos quilómetros de tudo. Nessa casa, com direito a metralhadora para os defender de um ataque terrorista, viveu muitas peripécias. "Uma vez fui à horta com um empregado negro e ele só me disse: 'senhora foge que o leão está perto'. Corri sem pensar para o meio do mato". Até que engravidou. Os terroristas andavam por perto e os negros mais amigos avisavam que "ou íamos embora ou íamos morrer". Ficou até quase ao fim da gestação, indo então para casa da patroa, mais perto da civilização. Teve uma menina. Pouco depois nasceria o segundo filho. Acabaram por mudar-se para essa aldeia, mais perto de Nampula, onde já havia vizinhos e até cinema.
Aí montaram um negócio próprio com comércio e bar. Maria de Lurdes aprendeu a língua macua, para melhor falar com os clientes, e vendia de tudo. "Fazíamos muito negócio e a vida corria bem, apesar de dura", recorda. O marido continuava no campo, ela liderava o comércio.
Uma manhã chegou um branco que me perguntou se tinha ouvido as notícias na rádio. "Foi o 25 de Abril e isto vai dar uma volta", avisou. As coisas começaram a piorar. Sem esperar pela data oficial da independência, os negros "já só diziam 'é o preto quem manda, o branco obedece'". Os conflitos intensificaram-se e toda a gente começou a dizer que vinha embora. "Mas eu não queria voltar, adorava aquela terra", confessa Maria de Lurdes Pereira. "A uma vizinha que não tratava bem os negros chegaram a meter um bilhete debaixo da porta a dizer que tinha 15 dias para retirar", dá como exemplo.
Um dia apareceu um grupo da Frelimo armado de metralhadoras para fazer uma revista na casa. "Reviraram tudo e como não encontraram nada foram embora", lembra a mulher de 73 anos. Contra a vontade dela, o marido comprou os bilhetes para ela e para os filhos, de ia e volta para Portugal: "o país tinha abandonado os brancos". Embarcou um fogão, um frigorífico e algumas roupas e foi de barco de Nampula até à Beira, e depois até Lourenço Marques onde tinha avião. A maioria dos brancos já tinha voltado ou aguardava uma oportunidade de ir para a metrópole. "Era só gente de bilhete na mão e muita confusão. Estava toda a gente a tentar embarcar com a casa às costas", recorda a sénior. Maria de Lurdes escondeu 50 contos na roupa interior e conseguiu passar nas inúmeras revistas.
Quando chegou a Portugal, ficou em casa de uma irmã, mas como as coisas não corriam bem mudaram-se para uma casa velha, onde chovia até na cama e havia ratos. "Quando vim para cá queria algo para cozinhar e não tinha, e não tinha coragem de ir pedir", confessa. Com o dinheiro que trazia comprou um terreno, onde nasceu mais tarde a casa onde ainda mora, na Sobreira. Ainda tentou regressar a Moçambique, mais tarde, mas não conseguiu. Tinha perdido o direito de entrar no país porque tinha regressado antes da independência, explicaram-lhe. O marido foi, mas voltou depressa: "Ele viu a bandeira portuguesa cair e a da Frelimo subir e viu muita gente chorar".