28 de agosto de 2016

Moçambique: Viajar de comboio entre Maputo e Manhiça é penoso (Emildo Sambo)






Homens e mulheres, maioritariamente trabalhadores e comerciantes, saem cedo de casa e abarrotam uma locomotiva que parte do Cais da Vila da Manhiça com destino à cidade de Maputo. Chegados à capital do país, esses seres humanos, de rostos definhados pela pobreza, sem emprego formal, procuram dar o melhor de si para alcançar um único objectivo: a sobrevivência que, por vezes, consiste em garantir um prato de comida na mesa, uma vez que os rendimentos obtidos através do seu esforço em muito pouco financiam a habitação e a instrução dos filhos. A luta contínua pela vida desses indivíduos que voltam muito tarde aos seus domicílios, não descansam o suficiente e não têm fins-de-semana para repousar, faz com que falte tempo para celebrar algumas conquistas resultantes dessa tarefa árdua, embora escassas.

Ao fim da jornada laboral, as pessoas a que nos referimos, que se antecipam aos cantos dos galos do seu meio rural e que deixam os cônjuges, os descendentes e os restantes membros da família para vir a Maputo buscar o que comer em casa, voltam às suas residências fatigados, sem força nenhuma para quaisquer outros afazeres.

Segundo as revelações de alguns chefes de famílias interpelados pelo @verdade, os viajantes de comboio, que todos os dias se deslocam à capital do país para trabalhar ou fazer algum negócio estão sempre cansados. Contudo, apesar da dificuldade de levantar da cama, para quem a tem, por volta das duas horas de madrugada, para ir à labuta, é imperioso não fracassar… “Sai-se de casa sem despedir ou dar um beijinho a uma criança que esteja no meio do sono. Não há tempo…”

A viagem da cidade de Maputo à vila da Manhiça dura aproximadamente uma hora e 12 minutos de carro ou de “chapa 100” e pouco mais de três horas, pelo menos, de comboio. Através deste meio de transporte, que custa 15 meticais, o trajecto é bastante cansativo. Nas carruagens, que transportam não menos de 90 pessoas cada, incluindo as que partem de uma estação para outra sem um assento disponível para se sentarem, os cidadãos ficam apinhados devido à superlotação do trem entre os lugares intermédios de partida e de chegada.

No comboio que escala a vila da Manhiça, a partir da estação dos Caminhos- de-Ferro de Moçambique (CFM), por volta das 17 horas e 45 minutos, e retorna a Maputo no dia seguinte, pouco depois das seis horas, as pessoas com quem o @Verdade conversou nos dois sentidos do percurso asseguraram que viajam de locomotiva por duas razões: o custo de transporte rodoviário e as distâncias que separam as suas localidades das paragens dos transportes públicos.

Entretanto, durante o trajecto, em algumas estações há indivíduos mal-intencionados que arremessam pedras para o interior do trem. Felizmente, há poucos registos de incidentes graves resultantes desta situação.

As precárias condições em que utentes de comboios são transportados de um ponto a outro distante começam a ser visíveis poucos minutos antes do toque do sino que indica a hora de partida: as pessoas, algumas com trouxas à cabeça, correrem como se estivessem a participar numa corrida pedestre com direito a algum prémio.

O motivo é que qualquer atraso implica pernoitar fora de casa para quem não tem dinheiro para recorrer a outro tipo de transporte colectivo. Enquanto isso, certos indivíduos procuravam ajeitar-se no interior das carruagens, outros viajam penduradas nos vagões, apesar da evidência dos perigos que possam advir dessa situação.

“Evite o acidente. Não se pendure nas portas das carruagens”. Esta mensagem é ignorada pelas pessoas transportadas e os agentes de segurança da empresa G4S não conseguem impedir que os indivíduos não viagem suspensos nos trens. Segundo constatámos, este problema deve-se ao facto de que alguns cidadãos não aceitam pagar o bilhete, e tem havido acidentes ferroviários por causa dessa situação.

Em Abril passado, apurou o nosso Jornal, três pessoas contraíram lesões graves, dentre elas uma que perdeu os membros inferiores e a outra, por sinal uma idosa, ficou amputada na parte inferior do seu tronco, à volta da bacia.

“Esta carruagem é para si. Estime-a.” Esta comunicação, estampada em cada vagão, é um contraste em relação à falta de humanismo a que os utentes das locomotivas são submetidos. Para além de que grande parte das janelas não tem vidros, as condições de higiene são precárias.

Algumas pessoas embarcam com cargas volumosas, que por norma deviam ser despachados junto das direções dos CFM nas estações e a fiscalização parece não ter meios para refrear esse problema, sobretudo porque quando se procura saber dos proprietários das mesmas bagagens ninguém se pronuncia e nada acontece como medida punitiva. Aliás, aqueles passageiros que vão a bordo sem os bilhetes de passagem estão constantemente a controlar os movimentos do revisor porque se forem descobertos incorrem numa multa que corresponde ao dobro dos 15 meticais do custo do bilhete.

O comboio é mais barato relativamente aos autocarros da Empresa Municipal de Transporte Público Rodoviário de Maputo (EMTPM), cujo custo é de 45 meticais da capital do país à Manhiça e vice-versa, contra os 55 meticais de “Chapa 100”. “Ir de um lugar para o outro comprimido não é uma opção; não temos dinheiro para apanhar um carro que nos faça estar em casa mais cedo”, desabafou Melita Jonas, residente na Tavira.

As mulheres que garantem a renda familiar

Leontina Munguambe, residente no bairro de Magavilane, algures no distrito da Manhiça, disse à nossa Reportagem que mora com a sua progenitora, de 65 anos de idade. Ela levanta-se da cama às duas horas e meia de madrugada para se arrumar. Às três horas inicia um percurso que leva 30 minutos do seu domicílio para a estação de comboios. Este é o seu único meio de transporte porque é dispendioso viajar de autocarro. Segundo a nossa interlocutora, não sobra tempo para se ocupar de outros afazeres domésticos, tampouco cuidar dos filhos.

“Saímos de casa de madrugada e regressamos a altas horas da noite cansadas. Nessa altura, as crianças estão ainda a dormir e ficam quase toda a semana sem ver os pais. Por vezes, não temos tempo para passar as refeições e há muitos trabalhos domésticos que não fazemos. Não penso em viajar de carro porque é muito oneroso, só a ida são 45 ou 55 meticais e não tenho esse valor. Nos dias em que a minha mãe não consegue cozinhar eu encarrego-me disso à hora que volto para casa. É difícil mas não existe outra alternativa.”

Marta Mbalate vive no bairro 04, em Munguine. Ao nosso Jornal contou que despende 25 meticais da sua zona para a vila da Manhiça e deste ponto para Maputo mais 55 meticais, o que totaliza 80 meticais apenas na ida. “Não tenho condições para desembolsar 160 meticais diários de transporte. A viagem de comboio é problemática porque é feita no período nocturno e nas madrugadas. A falta de um outro meio de transporte igual para ajudar nas deslocações de passageiros torna as coisas mais complicadas.”

Segundo Marta, quando está ocupada com os trabalhos que garantam os meios financeiros da família, o esposo é quem toma conta do neto, da sua educação e das tarefas domésticas.

Ernesto Mboene, residente no bairro Mahumane, na Manhiça, fica à espera do comboio na estação de Tavira, cujo percurso lhe leva mais de uma hora até lá chegar. No seu lar é o único que labuta e assegura a subsistência dos seus dependentes.

“Todos os dias faço a viagem Maputo/Manhiça, deixo a casa às duas horas de madrugada para voltar depois das 22 horas e as crianças, por exemplo, estão a dormir. Não há tempo para descansar, sentar com a família e traçar planos de vida, nem para educar os filhos. Faço biscates, por isso aos sábados e domingos também ando ocupado e poucas vezes visito algum parente.”

O nosso entrevistado disse que o trem é a única alternativa de transporte porque os “Chapa 100” são caros. Para vir a Maputo e regressar a Manhiça deve gastar 110 meticais. “Depois da guerra dos 16 anos viajar de comboio virou um martírio, principalmente porque o trajecto é feito de noite e de madrugada. Outrora tínhamos pelo menos duas locomotivas para o mesmo troço.”

O negócio

Por volta das 20 horas, uma mulher que embarcou numa estação algures em direção a Manhiça, passou por um dos vagões com uma bacia de bolos destapados a um preço de cinco meticais cada. As condições em que esse e vários outros doces são negociados não são diferentes das que caracterizam o comércio informal de produtos alimentares na cidade de Maputo.

O nome da vendedeira é Alice Ndimande, de 42 anos de idade. À nossa Reportagem disse somente que tem três filhos cujo sustento provém da comercialização da massa de farinha de trigo com ingredientes cozidos na forma e exerce a sua actividade há bastante tempo.

“Faço o mesmo trabalho em toda a Linha de Limpopo e tenho uma licença mensal renovável, cujo valor de emissão é de 800 meticais. Vendemos também bolos fritos e refrigerantes e estes custam 20 meticais cada”, concluiu Alice com um sorriso nos lábios quando o autor deste texto seu fotógrafo compraram o seu produto para que pudesse dar alguma informação. E ao longo do percurso é possível ver dezenas de senhoras e jovens vendendo recargas de telemóveis e outros bens alimentícios.

Uma outra cidadã, que não quis ser identificada, disse que é funcionária algures na capital do país e encontrava-se de férias. Neste contexto, a convite de uma amiga, aproveitou o período de descanso para ganhar dinheiro vendendo pão e peixe frito. “É um negócio rentável e permitiu que eu comprasse um televisor para um dos meus filhos.” Todavia, contrariamente a Alice Ndimande, a nossa fonte não tinha permissão das autoridades dos CFM para o exercício da sua actividade.

O desembarque na Manhiça

À saída das carruagens depois de se chegar ao destino, na vila da Manhiça, minutos logo a seguir às 21 horas, a nossa Reportagem deu de caras com uma movimentação invulgar para quem chega àquele ponto pela primeira vez, mas habitual para a comunidade local. É que um conjunto de senhoras chegava, em movimento de um lado para o outro, de diferentes localidades e outras dormiam. Em conversa umas com as outras diziam que tinham de pôr os seus produtos em lugares apropriados para que pudessem procurar um lugar coberto no qual passassem a noite. Isso porque no Cais da Manhiça é normal dormir-se ao relento.

Outra mulher que tem deixado os seus parentes “à sua sorte” para vir a Maputo vender algo através do qual possa ganhar dinheiro, é Julieta Francisco, de 39 anos de idade, camponesa, e vendedeira de mandioca. Disse-nos que vive no bairro de Xitilene. Na altura em que chegámos à Manhiça, a nossa interlocutora estava a arrumar sacos de mandioca de 50 quilogramas para que na madrugada do dia seguinte os transportasse através do comboio para o bairro Ferroviário, onde exerce o seu negócio.

Contrariamente às dificuldades financeiras referidas por Leontina Munguambe, Marta Mbalate e Ernesto Mboene, Julieta está em condições de pagar um transporte rodoviário, mas não o faz porque a sua residência fica muito distante da paragem. “Seria dispendioso alugar uma viatura para o sítio onde as pessoas esperam por um transporte público e ainda ter de apanhar outro veículo.”

O sofrimento nalgumas horas de sono

No Cais da Manhiça, enquanto algumas senhoras, que pelo esforço que fazem são consideradas heroínas das suas famílias, faziam as trouxas para logo de madrugada seguirem viagem para Maputo, as outras, que chegaram mais cedo ao local, “dormiam” com as bacias de bananas e de sacos de vegetais, ao seu redor.

Isso visa proteger os seus produtos dos malefícios de indivíduos de má-fé. As noites são um autêntico suplício, pois, conforme as imagens ilustram, descansa-se nos papelões estendidos no chão e usa-se capulanas e lonas como cobertores.


Fonte: Verdade MZ, 23 de Maio de 2013