6 de setembro de 2020

“Não foi só o homem que libertou Moçambique”, diz Geraldina Mwitu


Geraldina Mwitu combateu ao lado de homens durante a luta armada no seu país. Recebeu, tal como eles, treino político e militar e viveu nas bases da FRELIMO, a Frente de Libertação de Moçambique.

Era ainda muito jovem quando começou a dar aulas nas bases da FRELIMO. Depois de deixar a sua terra-natal, Mueda, na província de Cabo Delgado, norte de Moçambique, Geraldina Mwitu ensinou português a crianças órfãs e crianças cujos pais estavam na frente de combate.

O Massacre de Mueda, que ocorreu a 16 de junho de 1960, é considerado um dos últimos episódios que marcaram a resistência pacífica dos moçambicanos ao colonialismo. Foi o massacre que levou muitos daquela região a juntar-se à luta de libertação.

DW África: Era em Mueda que se encontrava na altura do massacre?

Geraldina Mwitu (GM): Quando se deu o tal massacre, eu só vi as pessoas mais velhas a andar de um lado patra o outro a dizer que os colonialistas lá em Mueda mataram os moçambicanos que foram pedir a independência. Mas em vez de serem concedidos a tal independência, os colonialistas responderam com armas. E três pessoas foram presas. Isto foi o culminar das grandes atividades que o povo maconde vinha desenvolvendo. Porque primeiro começou a política para aquele povo que foi [informado de que] os tanzanianos já eram independentes.

DW África: Que efeitos se fizeram sentir na região depois do massacre?

GM: Muita população abandonou o distrito para se ir refugiar na Tanzânia. Porque ganhou medo com aquela situação. Ficou a entender que o colono, em vez de só colonizar, estava a massacrar-nos e a matar-nos. Mas algumas pessoas resistiram. Continuaram a viver na província e a mobilizar o povo de que não podia parar com o massacre, que tinha de combater politicamente, tinha de lutar até que eles conseguissem ter a sua independência.

DW África: Quando começou a ter uma postura ativa pela causa da independência?

GM: A partir de 1964. Nesse ano foi morto o padre Daniel. Nós lá na missão de Nangulolo vivíamos com as irmãs da Consolata e os padres monfortinos. Depois da morte do padre, a nossa missão encheu-se da tropa portuguesa. A partir dali sentimos que a guerra estava eminente. Numa das vezes que a tropa se deslocou para o posto administrativo de Muidumbe entrou na emboscada dos guerrilheiros da FRELIMO. A partir dali, já estávamos a viver a luta de libertação nacional.

DW África: Antes de se juntar aos combates dentro de Moçambique, esteve na Tanzânia e envolveu-se na área da formação. Como passou de professora a combatente?

GM: Eu saí de Moçambique com a minha quarta classe, fui para a Tanzânia diretamente para o centro de refugiados de Rutamba. Daí fui destacada para ir ensinar as outras crianças que não sabiam ler nem escrever no ensino em português. Depois fui indicada para ir a Dar-es-Salaam aumentar os meus conhecimentos. Porque em Dar-es-Salaam já haviam começado a lecionar a partir da quinta classe. Mas infelizmente não terminei.


Nos princípios de fevereiro, chegada a Dar-es-Salaam, não levei muito tempo, ocorre a morte de Eduardo Mondlane, nosso Presidente. Dispersámos. Uns foram para Nachingwea, para o centro de preparação político-militar, alguns, que não tinham idade, como no meu caso, foram encaminhados para o centro estudantil de Tunduru, onde havia crianças órfãs, crianças cujos pais estavam na frente da luta de libertação nacional. E, estando em Tunduru, mais algumas camaradas, fomos indicadas para ensinar aquelas crianças. Aí ensinei durante dois ou três anos. Fui indicada, então, para poder passar para o centro de formação político-militar, Nachingwea.

DW África: Havia diferenças entre os treinos dirigidos às mulheres e aqueles que eram dirigidos aos homens?

GM: Nenhuma diferença. Era tal e qual. Havia pelotões das meninas e pelotões dos homens. Mas quem dirigia os treinos eram os homens acompanhados das mulheres que eram instrutoras.

Operações de guerra do exército português em Mueda (1968)

DW África: Até que ponto o papel das mulheres foi determinante na luta de libertação?

GM: O primeiro grupo de 25 meninas foi muito determinante: “nós, sendo moçambicanas, queremos ir lutar lado a lado [com os] homens.” E assim aconteceu. Essas 25 meninas treinaram, depois foram lançadas para o interior de Cabo Delgado. Elas, para além de fazer o carregamento do material, lutaram [ao lado] dos homens para poderem combater o inimigo comum. Para além do combate, a mulher mobilizava a população. A mulher estava à frente do ensino, a mulher estava na saúde, a mulher estava ao cuidado das crianças órfãs, ao cuidado das crianças [cujos] pais estavam na frente da luta de libertação nacional.

DW África: Chegou a sofrer discriminação por parte de colegas homens por ser mulher combatente?

GM: Não. Porque nós considerávamos que [estávamos todos ali] para um fim comum. Não podia haver discriminação. Como mulher desempenhei o papel que me cabia na altura, desempenhei o papel que era necessário: dar a minha contribuição para que Moçambique fosse independente.

DW África: Há algum episódio da época da luta pela independência que a tenha marcado especialmente?

GM: Isto nunca me vai sair da cabeça. A viagem que eu fiz com os meus colegas para Moçambique depois dos treinos. Entrámos em Moçambique, ficámos nas bases e o nosso chefe disse: “uma semana com as vossas famílias". E eu fui encontrar-me com a minha irmã. E ela disse: “quando for à Tanzânia, há-de dizer à mamã que eu estou bem, a mana mais velha também está bem e que eu já tenho três crianças e estou à espera de bebé”. Dormimos. De manhã, eu saí, despedi-me dela.

Cheguei à Tanzânia, no centro de preparação político-militar, a minha intenção era só de ver mamã, mamã, mamã. Uma semana depois, à tardinha, eu estava sentada com as minhas colegas. “Na rádio estão a falar do teu nome, não sei se é teu irmão, não sei quem morreu lá em Rutamba.” Rutamba era o centro de refugiados onde estava a minha mãe. Eu saí do centro, quando eu cheguei lá em Rutamba, encontrei meu pai, encontrei meu irmão, então é que eu soube que a mamã faleceu. Aquela informação que eu trazia de Moçambique não pude dar à minha mãe.

DW África: 40 anos depois de proclamada a independência de Moçambique, acha que valeu a pena lutar por ela?

GM: Valeu. E valeu muito. Porque ganhámos a nossa independência, já estamos a conduzir o destino do nosso país. Libertámos a terra, libertámos o homem, mas a luta continua. Temos que lutar pela nossa economia, temos que lutar agora contra a pobreza. À medida que os anos passam, aparecem outros desafios e nós, com esta idade, já não vamos a tempo, mas temos que inculcar à nova geração que a luta deve continuar para o bem do país.

DW África: Durante a luta de libertação nacional, lutou ao lado de homens, assumiu um papel idêntico ao dos homens. Como vê hoje o papel da mulher em Moçambique?

GM: A luta da mulher continua. Noutras vertentes. Nós, durante a luta de libertação nacional, estávamos a lutar pela emancipação da mulher, que até agora continua. Quando chegámos cá, encontrámos outra situação que é a violência contra a mulher. A luta continua. Vai continuar. Sempre que houver outros desafios que obriguem a mulher a lutar pelo seu bem.

DW África: Quais são, na sua opinião, os maiores desafios para a mulher moçambicana?

GM: Ela tem que continuar a lutar. Quem sabe se um dia podemos ter uma Presidente. A luta não pára, ela tem de continuar para [obtermos] essa igualdade. Porque não foi o homem só que libertou este país. Iniciou-se a luta e ela deve continuar para os novos desafios.

Fonte: dw.pt, 8/4/2014