Ilha de Moçambique
Ao atravessar de carro a enorme e velha ponte da alfândega, que dá acesso à ilha de Moçambique, fica-se com a impressão de se estar a ver uma fotografia antiga; daquelas que eram a preto e branco e posteriormente a pedido dos interessados o fotógrafo coloria-a com cores pastel. Se olhar para o lado esquerdo verá as casas baixinhas todas alinhadas ao longo da praia.
Parece que foram assim construídas para observaram as embarcações que chegam, partem ou ficam a dormir ao sabor das ondas. Parece um postal, é lindo. Mas o automóvel aproxima-se e esta imagem ganha uma forma diferente. A ilha está suja, cheira mal e deixa na alma um certo desalento. Sobrelotada, nela vivem 13 000 habitantes, dos quais 11 000 ficam na cidade de makuti (nome dado ao tipo de cobertura em telhas de coqueiro). A horas de expediente vê-se um amoantoado de pessoas nas ruas, principalmente jovens deitados no chão, na praia... A população vive essencialmente da pesca e as condições de vida são más: não há, por exemplo, aterros sanitários. O Governo Moçambicano está a resolver esta questão.
Mas, apesar disto, a ilha tem um encanto. É bonita e nela poderá ler 500 anos de história em que Portugal aparece como um dos principais escritores. Vale a pena visitar. Na verdade como refere António Sopa, historiador moçambicano o interesse pela ilha vem do seu património edificado, que até bastante tarde se manteve bem conservado, já que ali esteve instalada a capital até 1898, passando depois para Lourenço Marques.
O mesmo autor diz ainda que a ilha sobreviveu, por ser ali que residiam os altos funcionários, grandes negociantes, ricas casas com sucursais na Zambézia e estabelecimentos na Índia. Esta fixação secular permitiu a existência de um grupo étnico – o swahili – com caraterísticas culturais que lhe são próprias. Segundo António Sopa o povoamento da ilha está relatado na crónica de Quiloa, baseada na história recolhida pelos portugueses no século XVI. Assim, o xeicado de Moçambique teria sido fundado por Moussa e Hassan, ambos naturais de Kilwa, que se teriam inicialmente instalado no Zanzibar devido à instabilidade vivida na sua cidade natal. Será com a projecção de Kilwa, metrópole situada numa pequena ilha da costa sul da Tânzania, nos séculos XIV e XV, e do domínio político que se estabelecerá na costa moçambicana, visando o controlo das rotas comerciais que a ilha de Moçambique ganhará alguma notoriedade. Antes de a chegada de os portugueses, mais propriamente de Vasco de Gama, em 1498, já os portugueses sabiam da sua existência, pois a viagem do achamento do caminho marítimo para a Índia foi habilmente preparada pelo Infante D. Henrique, que desde 1460 mandava Diogo Gomes à Indía por mar. A realidade é que a chegada dos portugueses destabilizou o equílibrio comercial da região.
Os xeicados da costa, sob a suserania do sultunato de Kilwa, concertaram posições com a finalidade de correrem com estes novos hospedeiros, que procuravam policiar os mercadores muçulmanos, ao mesmo tempo que começavam a construir as infra-estruturas necessárias à sua sobrevivência, actividade e protecção. Esta "incomodidade", por parte da comunidade muçulmana, levou à transferência do xeque e principais dignatários que residiam na ilha para Sancul, em 1507, e, mais tarde, os portugueses acabarão por destruir a povoação muçulmana, isto em 1570. O centro dessa povoação deveria ter-se localizado, segundo António Sopa, na actual cidade de pedra e cal, perto da ponte-cais. Era relativamente pobre, onde haviam apenas dois edifícios de pedra: a residência do xeque e a mesquita. Todo o resto seriam construções semelhantes às palhotas actuais.
Os portugueses, pelo contrário, ergueram a sua povoação no lado ocidental, virada para a baía, mais abrigada dos ventos, ao redor da primitiva torre e feitoria, construída a partir de 1507. A fortaleza de São Sebastião estava já planificada desde 1545, mas no decorrer do cerco dos holandeses de 1607 ainda não estava concluída, tendo sido finalizada em 1620. Na primeira metade do Século XVII a ilha estava já dividida em duas povoações distintas: a zona de pedra e cal e a área de makuti. Ainda se mantém.
A cidade de pedra e cal continua a expandir-se durante os séculos XVIII e XIX, com o dinheiro do tráfico de escravos e, a partir de 1870, o comércio das oleaginosas obrigou à construção de grandes armazéns. Até ao Século XIX a zona de cimento estendia-se até à igreja da Saúde e do hospital, começando a partir daí o bairro de Missanga, zonda de gente pobre. Entre 1878 e 1885, com a expansão da cidade, este é demolido, passando os seus habitantes a viver na Marangonha, local até aquele momento desabitado e onde se executavam publicamente os presos civis. Em 1878 nesse local foram construídos, o hospital, mercado e dois parques. Depois, a ilha entrou num processo rápido de decadência, após a passagem da capital para Lourenço Marques no fi nal do Século XIX e, posteriormente, após a mudança da sede do distrito para Nampula e a abertura da navegação do porto de Nacala, situado a cerca de 100 km da ilha de Moçambique, em 1951. Como refere António Sopa este último empreendimento virá a liquidar as aspirações da ilha, apesar da oposição tenaz dos naturais. A partir de 1975, após a independência a ilha é deixada ao abandono e foi por esta altura que a degradação dos edifícios colónias começou.
O grande problema está na educação cívica. A maioria dos seus habitantes são refugiados, que após o fi m da guerra foram atraídos pela vida da cidade, encontrando abrigo nestas casas. São na sua maioria pessoas vindas dos campos, sem cultura urbana. Muitos contribuiram para a destruição pois aproveitaram as vigas, tiraram as arquitraves das portas e janelas para se aquecerem ou para restaurarem os barcos. Mas há outras razões para a sua deteorização.
Uma delas relaciona-se com a falta de investimento, sendo que a entrada de capital estrangeiro para a sua recuperação está vetada e as empresas moçambicanas não têm encaixe financeiro para recuperar a velha ilha; outra explicação é de ordem natural: foi atacada pelo furação Nadia, que deteriou alguns edifícios. A isto junte as enormes plantas que com as suas raízes vão dissiminado muros e paredes das relíquias coloniais, abrindo rachas e deixando a porta aberta para as chuvas torrenciais. Em 1993 foi declarada Património Nacional da Humanidade, dez anos após ter sido inscrita no programa da Unesco. Mas, apesar disto, continua abandonada e poucos foram os esforços para lhe devolver a aura de outros tempos áureos.
Texto e fotos: Teresa Cotrim