3 de junho de 2009

Manuela Soeiro, tem 64 anos e é directora do grupo de teatro Mutumbela Gogo

Conta-me a tua infância: Manuela Soeiro, tem 64 anos e é directora do grupo de teatro Mutumbela Gogo “Nasci no Ibo, uma ilha na província de Cabo Delgado, a 24 de Janeiro de 1945. O meu pai era carpinteiro, natural bambém desta ilha. E na juventude veio para Lourenço Marques porque queria ser padre. Era mestiço. Tinha sangue branco, indiano e negro. No seminário não o aceitaram, por ele não ser puro. Ser misturado era pecado. Da parte da minha mãe tínhamos sangue judeu, grego e negro. A minha família adquiriu o nome português quando o governador do Ibo era um Abílio Lobão Soeiro. A minha avó pediu para ele ser padrinho de baptismo do meu pai e naquela altura era costume dar-se às crianças os nomes completos dos padrinhos. Apadrinhar era isso mesmo. O meu pai era um excelente contador de histórias. À noite ficavam todos a ouvi-lo. Cantava também aquelas cantigas medievais de escárnio e maldizer. À noite juntava as shas (as mulheres mais velhas) a quem ele também contava histórias. Por vezes ia mesmo a casa das pessoas. Aquilo fascinava-me muito. As histórias eram fábulas de animais, a grande maioria era para crianças. Sabia também muitas histórias do Ibo. Estas histórias despertaram-me o bichinho do teatro, porque afinal o teatro também é contar histórias. Aliás, o meu pai também fazia teatro. A minha família não tinha recursos – éramos seis filhos todos a depender do meu pai – por isso vim estudar para um colégio de órfãos salesianas na Namaacha . Passado pouco tempo o meu pai morreu. No colégio, lembro-me de contar muitas histórias às colegas mas elas ouviam-nas sempre agarradas umas às outras porque essas histórias metiam algum medo. O colégio tinha uma boa biblioteca e eu, às escondidas, roubava livros sem as freiras saberem. Sorrateiramente lia durante a noite. Uma vez acendi uma lamparina às escondidas e ia queimando o colchão. Como castigo fiquei muito tempo sem ler. A dada altura uma freira brasileira, que sabia o valor que eu dava à leitura, passava-me livros, sem ninguém saber. Eu tinha uma sôfrega vontade de brincar e de fazer coisas que as outras tinham medo. Lembro-me de jogar basebol – havia qualquer ligação do colégio aos EUA – saltar ao eixo, fazer corridas. Nas férias, como era do extremo norte, ficava no colégio sem ir a casa, por isso ficava sedenta de coisas. Lembro-me que o prémio para o primeiro lugar nas corridas era uma barrita de chocolate e por isso eu corria mais do que os outros. Durante os anos que estive no colégio nunca fui de férias ao Ibo, mas a minha mãe veio duas vezes visitar-me ao colégio. Foi no colégio que o teatro começou a entrar mais a sério na minha vida. Lembro-me que a primeira peça em que entrei era o ‘Quo Vadis’, mas era escrito para ser representado exclusivamente por raparigas, porque aquilo era um colégio só de meninas. As personagens masculinas eram faladas mas não havia intérpretes. Eu fazia de escrava.” Cristóvão Araújo Sapo MZ, 01 de Junho de 2009