O fascínio do poder (Mia Couto)
“Sucedeu connosco o que sucedeu com todas as outras nações. A política deixou de ser uma consequência dessa entrega generosa, dessa abdicação de si mesmo. Passou a ser um trampolim para interesses pessoais”
Ser político ou ser da política representou no nosso país, durante muitos anos, um risco de peso. A canção da velha Xica, do angolano Waldemar Basto, é bem representativa desses perigos: “xê, menino, não fala política…!”
Os que ofereciam para lutar pela causa da independência (a causa política por excelência, na altura) faziam-no, avaliando as consequências para si mesmo e para a família. Não havia vantagem nessa disponibilidade em ser-se político. Apenas sacrifício.
Aliás, ninguém se oferecia para ser “político”. Os militantes nacionalistas entregavam-se não à política em si, mas a uma missão que era a libertação do seu país. O sentido de entrega e de missão comandavam essa opção. Ser-se “político”, era uma implicação posterior, alheia à vontade do militante.
Numa palavra, a ligação com a política era apenas um corolário de uma atitude nobre e generosa: a de servir os outros. Não importa aqui questionar a justeza das definições políticas desse movimento. Falo, sim, da adesão pessoal, da superação dos interesses pessoais e da sua subordinação a interesses públicos.
Sucedeu connosco o que sucedeu com todas as outras nações. A política deixou de ser uma consequência dessa entrega generosa, dessa abdicação de si mesmo. Passou a ser um trampolim para interesses pessoais. Passou a ser um emprego, um negócio, uma fonte de poder e de acesso a mais poder. A política justifica-se a si mesma, nasce e morre no seu próprio ninho.
Não quero simplificar, nem cair no discurso passadista. Haverá, entre os que hoje se entregam à política, ideias de altruísmo como houve no passado. Haverá gente boa pensando, sobretudo, no bem-estar dos outros. Haverá os que se tornam políticos para servir o país e o povo. E esses bons homens e boas mulheres fazem tanta falta como fizeram, antes, os militantes da independência.
O que me parece extraordinário é o interesse que gera a promoção política. O fascínio pelo poder: é isso que creio que deveríamos repensar. A dimensão que é dada, por exemplo, às eleições para o Secretário da OJM é algo absolutamente desproporcionado. Vejo uma corrente de correspondência por e-mail, vejo páginas de jornais, debates inflamados. Tudo querendo saber quem vence, quem é o novo dirigente. Depois, pouco ou nada se fala sobre o que faz a organização, sobre o que faz o tal novo dirigente. Ganhar estatuto de chefe passou a ser um fim em si. Essa é a mensagem que se consolida e que reproduzimos sem espírito crítico.
A política, disse alguém, é arte de nos fazer esquecer daquilo que é realmente importante. Isso já é triste. Mas pode ser ainda mais grave: em nome da política, estarmos a fomentar um monstruoso apetite pelo poder. O poder como um fim em si. O poder, no lugar da política.
Recordo-me de um momento em que, eu e outros fazedores do actual hino nacional, discutíamos palavra por palavra o seu conteúdo. Os versos finais exaltam o repúdio contra esse culto do poder: “nenhum tirano nos irá escravizar”. Recordo que este verso deu polémica no momento de ser aprovado nas instâncias próprias. O argumento dos que se opunham era o seguinte: como seria possível que, alguma vez, uma tirania nos fosse governar? Felizmente, o verso sobreviveu e o alerta manteve-se para despertar as gerações vindouras. O futuro não é nunca um cortejo angelical. É um balanço entre demónios e anjos. Esses demónios não vivem fora de nós. E uma nação prevenida é o que devemos deixar por herança.
O País, Sábado, 27 Novembro 2010