Um homem de sete ofícios, sempre voltado para a rádio, cinema e escrita
António Jorge Courinha e Ramos
Tudo começou quando em 1949, comecei a aprender e a estudar para técnico de rádios. Um dia ao regressar a casa, passando junto á Fábrica de Cerveja DICCA, na Av. Paiva Manso, vejo na porta ao lado e pertencendo á mesma Organização, um homem que estava a reparar um aparelho receptor de rádio. Eram os agentes dos rádios MURPHY. Com aquela curiosidade dos meus quinze anos, comecei a falar com o indivíduo, e ali nasceu uma amizade que perdurou para sempre e que marcou a minha vida e digamos que moldou a minha vida para sempre.
Esse homem era o António Jorge COURINHA E RAMOS.
Homem de sete ofícios, sempre voltado para a rádio, cinema e escrita. E quando falo em rádio, já não falo só em rádio reparações, mas sim na RÁDIO.
Ao princípio, sob sua orientação, construí para ele, o primeiro Estúdio de Gravação, em Moçambique. Deu-lhe o nome de PRODUÇÕES ONDA.
Na altura tinha acabado de comprar uma máquina de filmar de 16 m/m, mas em 1952, já tinha uma máquina profissional de 35 m/m, uma Arriflex.
Foi nessa altura, que deixei os Caminhos de Ferro e fui trabalhar para a PHILIPS (Zuid) e para ele.
Este homem, que durante a minha estadia em Moçambique sempre foi como um irmão mais velho, e que até foi o meu padrinho de casamento, sempre foi o homem mais desleixado, sem pressas, e deixa para amanhã, que eu conheci. Capaz de estar no meio do fogo, á espera que alguém chamasse os bombeiros.
A esposa, Maria Cecília de Sabóia Delgado Malaquias de Lemos Courinha e Ramos, via-se doida com ele, pois se a máquina encravasse, ele logo se sentava, cruzava as pernas e vai de desmanchar, só que nunca reparava se o chão estava limpo ou sujo, podia ter água ou óleo, que o resultado era sempre o mesmo, ficava todo porco. Para ele tudo estava bem.
Após o 25 de Abril de 74, cada um teve que orientar a sua vida e cada um teve destino diferente, eu estou em Águeda e ele estava em Lisboa. Foi ele que me safou, quando eu em vésperas do Natal de 77, regressei de Milão e na Estação de Santa Apolónia, vi que me tinham gamado a carteira. Telefonei-lhe e ele lá foi levar-me 500$00, para o Foguete, até Aveiro.
Uma dúzia de anos mais tarde, veio aqui a Águeda, acompanhado do Beja, das Produções Beja, pois trabalharam os dois em conjunto. O próprio Ramos, tinha nessa altura, umas reportagens na RTP 1, sobre Municípios.
Em Março de 2002, depois de várias tentativas, consegui falar com a Ana e com a minha madrinha e fiquei a saber que ele morreu em Novembro de 2000. Como não podia deixar de ser, disseram-me, que não sofreu, pois que estava sentado e que se ficou. Posteriormente estive lá em casa na Parede.
Este homem era de fino trato, pois teve uma educação esmerada. Era o homem dos charutos e dos cachimbos. Tinha uma colecção fantástica de cachimbos. Foi estudante em Lisboa de Engenharia Electrotécnica, mas as farras e o Casino do Estoril, fizeram com que não terminasse a licenciatura. Foi soldado raso, pois chumbou nos cursos. Na altura, já fumador de charuto, o seu comandante de Batalhão, fumava mata-ratos. Isto era a sua piada. Além disso o motorista, ia levar à “porta de armas”, o almoço ao menino.
O pai tinha sido Comerciante de Ferragens em Lourenço Marques, e foi assassinado por um sócio. Uma vez fomos a essa firma buscar umas coisas e um sócio diz: andei muitas vezes consigo ao colo. A mãe era uma senhora de fino trato e de muita cultura. O padrasto, o Sr. Oliveira, era sócio-gerente da Fábrica de Cervejas Reunidas, de onde saía a célebre Laurentina. O Courinha teve lá diversos postos, pois foi até o responsável da publicidade.
Lembro-me quando em 06.06.53, lhe nasceram, as filhas gémeas. A Anabela e a Ana Maria, esta, Técnica de Montagem na RTP. Se aquele carro novo, um SKODA, descapotável, falasse. Aquele carro andava por cima de toda a folha.
Uma vez, fomos á Palmeira. Esta terra ficava pouco depois da Vila da Manhiça. Ele foi filmar, eu gravar. No regresso, ao jantar, comemos o tradicional bife com batatas fritas, só que ali no Castro da Manhiça, aquilo era descomunal. Quando dali saímos já era noite. Ainda não tínhamos andado dez quilómetros e parte-se a alavanca das mudanças, que eram no volante. Tivemos que vir até a Marracuene engatados em primeira, pois era a velocidade que estava engatada. Da Manhiça a Vila Luiza, eram 50 quilómetros, não havia asfalto, mas sim duas estreitas faixas de pavimento de cimento e lateralmente aquilo era areia solta. Tivemos muita sorte em não haver trânsito algum e de ter começado a chover, pois de vez em quando, tínhamos que pôr água no radiador. Só chegamos a Vila Luiza (Marracuene) já era dia.
Quando se fez ”O MACHIMBOMBO DAS OITO E MEIA“, começou no Teatro Varietá, onde se colocou um autocarro em tamanho natural, mas feito em madeira, emprestado pelos Caminhos de Ferro, e que estava guardado num armazém, pois tinha sido feito para um desfile alegórico, aquando da visita do Presidente da República, ÓSCAR CARMONA, em 1939.
Os artistas principais, foram durante muito tempo o JOSÉ BANDEIRA e a MILÚ DOS ANJOS. Cada espectáculo tinha sempre dezenas de artistas no seu elenco, pois era um género de Revista á Portuguesa, mas também tinha concursos. Todas as segundas-feiras, era lotação esgotada. Mais tarde passou para o Teatro Manuel Rodrigues, pois este tinha capacidade de 1.500 espectadores, mais do dobro do que o Varietá.
Não foi novidade nenhuma, quando a Rádio Clube de Moçambique, me foi buscar à Zuid- Afrikan Handershuis, em finais de 1953. Naquela altura o RCM, tinha acabado de sair do primeiro andar, onde se situava a Zuid. Se eu já não passava sem o Courinha, ou seria ele que já não passava sem mim? Maior passou a ser a nossa convivência, pois eu fazia parte da Central Técnica. Ele escrevia muitos textos para o “Teatro em sua Casa”, orientado pela Sara Pinto Coelho, mãe do antigo locutor da RTP, Pinto Coelho.
Entretanto, já tinha construído, no 5º. Andar do Prédio Paulino dos Santos Gil, para o Courinha Ramos, o novo Estúdio e que se passou a chamar “PRODUÇÕES SOMAR”, (Ramos, lido ao contrário). Ali já havia um bocado de técnica, pois os tempos já eram outros e já haviam mais recursos. Só agora rememoro, que a mesa foi construída pelo meu pai. Toda a parte técnica, foi totalmente feita por mim.
Lembro-me uma ocasião, em que o cantor de modinhas brasileiras, Horácio Reinaldo, deu uns espectáculos em L. Marques e o Courinha o contratou para fazer uma série de programas publicitários sobre o Leite Condensado “ BÉBÉ HOLANDÊS “, que ali era produzido. Então, fiquei até às seis da manhã a gravar este cantor, que apanhou uma grande esfrega, pois que interpretou umas dezenas de modinhas. Lembro-me de uma que dizia: e lá para as tantas da manhã - (dava umas palmadas no violão)... Pum – pum.
Quando, andávamos tesos, e lhe pedíamos dinheiro (andava permanentemente atrasado nos pagamentos), lá fazia sair uma nota de “VINTE” do bolso. Hoje quer-me parecer que ele deveria trazer sempre uma nota de “vinte” em cada bolso.
O seu aspecto, era do género Vasco Santana, um bocadinho, quase nada, mais magro, mas sempre dependurado do cachimbo ou do charuto. Usava óculos, de armação muito leve, como os actuais em voga. Bebidas, nada, a não ser uma dúzia de cafés por dia, e até aos anos 60, quando ainda se usava o açucareiro, aquilo só estavam doce, depois de o café estar todo no pires. Mas um dia começou a bebe-lo sem açúcar e nunca mais utilizou qualquer adoçante.
Quando chegava ao Café Manuel Rodrigues, que era o nosso preferido, e que foi o primeiro em Moçambique a ter uma máquina de tirar cafés “CIMBALINO”, dizia logo alto e em bom som: “onde está o meu café… que eu pedi á meia hora “. Um dia, (na brincadeira) lixaram-no. Quando chegou ao balcão, depois de á porta, ter pronunciado as palavras habituais, colocaram-lhe á sua frente, a chávena do café, só que este estava frio.
- “Então vocês., servem-me o café frio?”
- “Você já o pediu á meia hora.”
Foi gargalhada geral.
Aquele homem, se não tivesse nascido, teria que ser inventado, pois às vezes dizia: “Esta semana vou emagrecer cinco quilos, por isso, vou fazer dieta”. Muitas das vezes o vi pesar-se e passada uma semana, ou pouco mais, lá estava ele sem os tais cinco quilos. O mal dele é que era muito lambareiro.
Ainda eu estava no RCM, e a Somar, lança o PROGRAMA DA MANHÃ. Gravado nos estúdios privativos e transmitido pelo RCM das 9.00 às 10.00 da manhã. Todo o trabalho técnico era meu e a locução era do ANTÓNIO LUIS RAFAEL.
Ao longo de cerca de vinte anos, tive tempo suficiente para apreciar todas as nuances dele, tanto na Rádio como no Cinema, e até naquilo que escrevia, tanto a sério como em sátira como era o caso da GARGALHADA, revista humorística, semanal das Produções Somar.
Havia as grandes companhias de variedades, que periodicamente iam em digressão pelo Ultramar. Por exemplo lembro-me de mais do que uma ida da Companhia de Vasco Morgado.
Mas também haviam grupos menos numerosos, já não falando dos casos individuais. Por exemplo a Maria Adalgisa, fazia parte dum grupo onde também estavam o Jimmy (irmão do MAX), o Acordeonista, David Pantoja e mais alguns. Estes três ficaram por aquelas paragens durante muitos anos, e todos trabalharam com o Courinha.
Outro colaborador, que esteve muitos anos ligado ao Ramos, foi o António Luís Rafael (também era um faz tudo). Igualmente o Agostinho Caramelo. Já era escritor, pois aqui na Metrópole já tinha publicado uma Trilogia, MARIA. Lá entre outros escreveu O FOGO.
No Cinema, o Courinha, lá ia fazendo uns documentários publicitários e pouco mais. Todos os serviços de Laboratório, eram feitos em Joanesburgo, pois em Moçambique não havia nada. Depois de revelado e munido com uma cópia de montagem, numa mesa de montagem, por nós engendrada, lá se visionava, controlava quanto tempo tinha cada assunto, fazia-se a parte musical de fundo, e depois o Courinha lá se metia no carro ou no combóio, levando o Rafael e lá iam um dia para os Estúdios da African Films em Killarny – Johannesburg. Quando em 57, regressei aos CFM e comecei a ir semanalmente a Joanesburgo, passei eu a fazer esse serviço, pois passava lá o dia inteiro.
Também para ele trabalhou o operador Alfredo Moreira, que nos anos 40, foi o operador de câmara, de muitos filmes aqui em Portugal.
O Ramos como cada vez tivesse mais trabalhos, resolve criar a FILMLAB.
Desloca-se a Joanesburgo e consegue comprar uma máquina de revelação, que estava parada e de origem italiana e que até já revelava a cores.
Alugou uma moradia, na rua J.Serrão e fizemos um pequeno estúdio de projecção. Foi uma máquina que já estava na sucata, que nós recuperámos. De uns tantos carretos, arranjados no ferro velho, de outros mandados fazer, inventávamos uma máquina. Foi o que aconteceu com a máquina de copiar, ou o caso da máquina de gravação magnética, em fita perfurada. A sincronia do som com a imagem. A gravação de som óptico (em filme). Naqueles tempos tudo era difícil por dois lados. Primeiro não havia dinheiro, segundo os técnicos eram poucos, pois que praticamente fomos pioneiros no caso, por aquelas terras.
Mas foi assim, que quinzenalmente apareceu no cinema o “ VISOR MOÇAMBICANO”, que focava as principais actualidades, sob o patrocínio de certas empresas locais. Posteriormente também apareceu, e também quinzenalmente, mas desfasado, o “ VISOR DESPORTIVO “, este patrocinado integralmente pela cerveja 2 M, portanto todas as semanas havia um documentário de cerca de 10 minutos de duração.
Foi daqui, que também saiu o primeiro filme Moçambicano, O ZÉ DO BURRO, com esse grande (em tudo, menos em altura) artista JOSÉ BANDEIRA. Segui-se o EXPLICADOR DE MATEMÁTICA, com o Diniz, que na altura era o gerente do Cinema Avenida.
O último foi o DEIXEM-ME SUBIR Às PALMEIRAS, que já não foi exibido em Moçambique, porque a P.I.D.E. não o autorizou. Já se estava nos anos 70.
Só quem esteve por dentro disto, é que hoje, com todas as técnicas que há, olha para trás e diz: as nossas dificuldades foram de tal envergadura, que comparando, parece que andámos nas Naus das Descobertas e hoje andam nos Luxuosos Transatlânticos de Cruzeiros, tanto na rádio como no cinema.
Recardenense (Humberto Almeida)
in http://sol.sapo.pt/blogs/meiablue/default.aspx