24 de março de 2019

A queda (quase) fatal de Salazar da cadeira foi há 50 anos (Fernando Madaíl)


Faz hoje 50 anos que o ditador caiu. Só um mês após o acidente lhe foi diagnosticado um hematoma intracraniano. Nove dias depois da operação, um AVC incapacitou-o

"O velho já não segura os braços da cadeira, os joelhos subitamente não trémulos obedecem agora a outra lei, e os pés que sempre calçaram botas (…) já estão no ar", escreveu José Saramago no conto Cadeira, inserido no livro Objecto Quase – e que pode ler a partir da página 71. O futuro Nobel inspirou-se na queda de Salazar, no forte de Santo António da Barra, no Estoril, a 3 de Agosto de 1968, que acabaria por o afastar do poder. 

Às 9h desse sábado, quando o seu calista Augusto Hilário já o espera, Salazar desce até ao terraço e, entretido com a leitura do jornal, deixa-se cair pesadamente sobre uma cadeira de lona, que se desequilibra. No cinquentenário da data, esclareça-se: apesar de bater com a nuca nas lajes da fortificação que desde 1950 era a sua residência de férias à beira-mar, o ditador não se queixou de nada. Em declarações a um jornalista do Diário de Notícias, já a 11 de Setembro, a sua governanta de sempre, D. Maria de Jesus, diria que estava nos seus "aposentos quando [ouviu] um barulho que [lhe] deu a impressão de uma porta a bater". Correu logo a ver o que se passava, chegando quando o quase octagenário já se erguia do chão. 

Após "uns momentos de desorientação, parecia ficar bem, tendo pedido àqueles que o assistiram para não darem muita importância ao caso" (Filipe Ribeiro de Meneses, em Salazar – Biografia Política). Aparentemente recomposto, recusou qualquer cuidado e, só quatro dias volvidos, na consulta de rotina, o seu médico particular, Eduardo Coelho, foi informado da queda. Advertiu-o: no caso de sentir dores de cabeça, devia contactá-lo imediatamente.

Informação guardada como um "segredo de Estado", a 27 de Agosto teve uma enxaqueca, que desapareceu com uma aspirina e proibiu que chamassem o clínico – e só a 6 de Setembro, perante dores mais fortes e prolongadas, e desobedecendo às ordens do patrão, a governanta telefonou a Eduardo Coelho. 

Durante o resto desse mês de Agosto ainda se procedeu a uma profunda remodelação governamental (mudaram os titulares das pastas do Interior, Finanças, Exército, Marinha, Educação, Saúde e Comunicações), com a primeira reunião do novo Executivo a ter lugar a 3 de Setembro. Nessa altura, regista Franco Nogueira em Um Político Confessa-se, o ministro dos Negócios Estrangeiros já notara que o chefe não "ocultara um estado mórbido (…): de uma palidez doentia, alheio a tudo, e à saída, segurando uns documentos debaixo do braço, afastou-se da sala do Conselho [de Ministros], e vi-o caminhar pelo corredor de São Bento quase trôpego, arrastando os pés, sem certeza e sem segurança". E, no dia imediato, "a sua caligrafia foi seriamente afectada, conforme revela o seu diário" (F. R. Meneses). 

Três dias depois, a 6 de Setembro, quando, além das dores, revelava falhas de memória e um raciocínio incoerente, Eduardo Coelho decidiu consultar António de Vasconcelos Marques. O reputado neurocirurgião, ao observar o doente, percebeu que a situação era grave e era necessário ir a um hospital, mas D. Maria opôs-se antes de se ouvir o Governo – e foi logo informada a PIDE, a repressiva polícia política do regime. 

Operado de madrugada

Nessa noite, num automóvel em que iam a seu lado os dois médicos e no banco da frente o director da PIDE, Silva Pais, estando "cada vez mais confuso" (F. R. Meneses), Salazar foi levado do Estoril para os hospitais dos Capuchos e de São José, onde seria submetido a mais exames, antes de ser conduzido para a Casa de Saúde da Cruz Vermelha, em Benfica. Chegou pelas 23h30 e uma ala inteira do 6º piso foi reservada, com o ilustre paciente a ser deitado no quarto 68. 

Outros médicos foram chamados para darem opinião – incluindo o seu velho amigo Bissaya Barreto. "Enquanto [Eduardo] Coelho tinha a certeza de que os actuais sintomas estavam ligados à queda anterior, Vasconcelos Marques inclinava-se, no seu diagnóstico, para um acidente vascular cerebral" (F. R. Meneses). Pedro Ramos de Almeida, em Salazar – Biografia da Ditadura, sustenta: "Vasconcelos Marques [admitia] a possibilidade de um hematoma e Almeida Lima, sem a excluir, [julgava] mais provável uma trombose". "Nenhum exame foi conclusivo, pelo que os clínicos, depois de um debate acalorado que muito impressionou os políticos presentes, [às 4h da manhã] resolveram operar para poderem avaliar melhor a situação" (F. R. Meneses). Retiraram -lhe um hematoma intracraniano subdural do hemisfério esquerdo. 

"Para todos os presentes na Casa de Saúde da Cruz Vermelha era nítido que o que ali estava em jogo já não era a vida de Salazar, mas a sobrevivência do Estado Novo" (F. R. Meneses). Aparentemente, a cirurgia terá tido êxito, com os boletins clínicos a assegurarem: "Tudo indica que o pós-operatório se processa normalmente". No primeiro, o Presidente Américo Tomás trocou a expressão "madrugada" por "noite", para suavizar a urgência da intervenção, e o subsecretário de Estado da Presidência do Conselho, Paulo Rodrigues (conhecido como "a lapiseira de Salazar") suprimiu a segunda palavra em "hematoma intracraniano". De manhã, às 9h, a Emissora Nacional (actual RDP) leu a informação: "O presidente do Conselho [de Ministros, como então se designava o primeiro-ministro] foi operado esta noite a um hematoma, sob anestesia local, encontrando-se bem." 

Cabeça ligada e olhos fechados, como o verá a mulher de Franco Nogueira, uma das suas primeiras visitas, e que Salazar terá reconhecido pela voz, nos dias seguintes já pareceu quase restabelecido. Mas, quando os calendários marcam 16 de Setembro, depois do almoço, levou a mão à testa e, antes de cair na poltrona já sem sentidos, terá dito: "Estou muito aflito. Ai, meu Jesus!" Um grave acidente vascular cerebral (AVC) no hemisfério direito lançou-o em coma, estado de onde apenas saiu em finais de Outubro, tendo uma recaída no mês seguinte. 

Aceite a oferta do embaixador americano de trazer Houston Merritt, director do Instituto Neurológico de Nova Iorque e professor na Universidade de Colúmbia, aquele especialista observou o enfermo, pela primeira vez, na manhã de 18 de Setembro, e confirmou o diagnóstico dos colegas. Na véspera, para os médicos portugueses, a carreira política de Salazar estava terminada, pois, mesmo que sobrevivesse, ficaria definitivamente incapacitado para o exercício das suas funções. Era o fim de uma era. 

Como resumiu Américo Tomás, em posterior Comunicação à Nação, a situação era esta: "Adoeceu gravemente, no passado dia 6, o Senhor presidente do Conselho e quando tudo parecia indicar, após feliz e oportuna intervenção cirúrgica, que a sua convalescença seria rápida e o reconduziria, em breve período de tempo, à sua vida normal, sobreveio-lhe nova e muito mais grave enfermidade, que o prostrou em estado de coma no princípio da tarde do dia 16, donde ainda não saiu, apesar da sua excepcional resistência e dos desvelados e constantes cuidados dos seus competentíssimos médicos assistentes." Escondeu a "acrimónia crescente" entre o corpo clínico, referida por Filipe R. Meneses. 

O dilema da sucessão 

Sem Salazar ter deixado designado qualquer delfim, o chefe do Estado, que, "pela primeira vez na sua longa carreira, se encontrava no centro dos acontecimentos, entrevistou mais de quarenta pessoas" (F. R. Meneses). Apesar de, constitucionalmente, o Presidente da República ter as maiores competências – daí, a famosa resposta de Humberto Delgado, quando lhe perguntaram o que faria ao primeiro-ministro se fosse eleito: "Obviamente, demito-o!" –, de facto, com Carmona, Craveiro Lopes e Tomás em Belém, o detentor do poder foi sempre Salazar. E, como Tomás reconhecerá na sua declaração, agora "todos [os portugueses tinham] nele os olhares ansiosamente fixados, aguardando uma solução". 

Nas suas memórias (Últimas Décadas de Portugal), dirá que "a sua inclinação natural seria convidar para o lugar Teotónio Pereira", mas o embaixador e um dos "artífices" na edificação do Estado Novo encontrava-se "demasiado doente para poder assumir o cargo". 

Freitas do Amaral, com um conhecimento que lhe vinha do facto de o pai ter sido uma das figuras ouvidas, afirma em O Antigo Regime e a Revolução: "Candidatos de primeira linha, havia manifestamente quatro: Marcelo Caetano, Antunes Varela, Franco Nogueira e Adriano Moreira. Consta que na lista pessoal elaborada pelo Presidente da República em Setembro de 1968, quando iniciou consultas, havia mais três nomes: Soares da Fonseca, Kaúlza de Arriaga e Correia de Oliveira. Mas eram, reconhecidamente, candidatos de segunda linha." 

Franco Nogueira, que acrescenta ainda os potenciais Luís Supico Pinto e Gomes de Araújo, regista: "Em qualquer caso, parece-me óbvio que está desencadeada a luta pelo poder. E muitas misérias tem revelado este momento, e não são poucas as manobras infantis, e grotescas. (…) Por todo o lado, são as tricas e nicas, as insídias, as acusações perversas, os aleives, a destruição deste, a eliminação daquele, num escadeirar geral que deixa tudo esbarrondado." 

Apesar dos opositores ao seu nome, incluindo no círculo próximo de Belém, o currículo de Marcelo Caetano era quase imbatível. "A maioria das opiniões dos auscultados considera-o a pessoa mais bem colocada para substituir Salazar" e Tomás acabará por o convidar, mas "fá-lo contrafeito, desconfiado das veleidades reformistas de Caetano" e "receoso da sua posição perante a guerra colonial" em Angola, Guiné e Moçambique (Susana Martins, em Presidentes da República – Fotobiografia, Américo Tomás). O Presidente demora 10 dias até comunicar o caso à Nação, numa intervenção difundida pela televisão e pelas rádios às 20 horas de 26 de Setembro. Explica que, usando a prerrogativa do nº 1 do artigo 81º da Constituição, exonerou Salazar e, como seu substituto, nomeou, na véspera, Marcelo Caetano – cujo nome só é citado na última linha de um texto com oito parágrafos. 

Antes desta informação, esclareceu que, apesar de o anterior governante ser um "Português inconfundível no pensamento e na acção e Benemérito da Pátria" (assumira a chefia do Executivo a 5 de Julho de... 1932!), "atendendo a que os superiores interesses do País têm de prevalecer sobre quaisquer sentimentos, por maiores e mais legítimos que pareçam", tal circunstância obrigara-o a tomar aquela "decisão dolorosa", com "profunda amargura". E, para melhor defender a sua deliberação, não só afirma que "teria o pleno acordo do Presidente do Conselho se [ele] o pudesse manifestar", como revela, no diploma legal, que Salazar lhe teria confidenciado que "não desejava morrer no desempenho das suas funções". E Marcelo, na intervenção da tomada de posse, a 27 de Setembro, sublinharia que "o País habituou-se, durante largo período, a ser conduzido por um homem de génio; de hoje para diante tem de adaptar-se a governos de homens como os outros". 

Encenação de um falso poder 

Fernando Dacosta conta que, saindo do hospital, a 5 de Fevereiro de 1969, D. Maria "pega no Salazar que lhe deram os médicos, mete-o numa ambulância e recosta-o, embrulhado em mantas, em São Bento" (Máscaras de Salazar). E, até à sua morte, um ano e meio depois, estará convencido que ainda é ele que manda no País. A partir desse momento, como sintetiza Joaquim Vieira, no livro A Governanta, passa a assistir-se a "uma comédia de enganos, que tem como produtor o aparelho do regime, como principal protagonista Salazar e como encenadora Maria de Jesus". Os antigos colaboradores vão à residência oficial como se se estivesse a reunir o Conselho de Ministros, com o ditador a fazer despachos sobre assuntos inexistentes, e lêem-lhe os jornais escondendo as notícias em que Caetano surge no título – pois ninguém terá coragem de lhe dizer que já não tem poder. 

Quase imobilizado num cadeirão, a 26 de Abril de 1969, ainda irá à janela acenar à multidão que se juntou à porta para o saudar no seu 80º aniversário – mas já só soprará as velas do bolo no ano seguinte. É levado a passear de automóvel pela capital e pelos arredores. Vota nas eleições de 16 de Outubro de 1969. "Não pode sair do carro", escreve Franco Nogueira na biografia de Salazar, "mas o presidente da mesa, acompanhado dos delegados da oposição que fiscalizavam o acto, leva a urna até junto do doente". 

As versões dividem-se acerca dos seus períodos de lucidez. Nalguns casos, como refere Filipe Ribeiro de Meneses, surpreende certas visitas "com a solidez da sua memória, a precisão da sua linguagem e a sua dicção". Mas, na cerimónia de descerramento de uma lápide evocativa no forte do Estoril, em 1973, entre elogios encomiásticos ("foi um governante de características possivelmente únicas na nossa História"), Américo Tomás declararia que "a Providência, sempre generosa, também o foi para o Presidente Salazar. Não lhe permitiu o conhecimento perfeito da profundidade do mal que o acometeu". 

Naquela época, em que Mário Soares estava deportado em São Tomé e Príncipe, o líder socialista da ASP (embrião do PS) ouve a notícia no rádio da barbearia e percebe que alguém com 79 anos não sobreviveria àquele acidente. "Levantei-me de um salto: um homem com aquela idade! – pensei. Gritei: é o fim do salazarismo!" (Soares – Ditadura e Revolução, de Maria João Avillez). E, num aparente início da Primavera Marcelista, é autorizado a regressar a Lisboa. 

Miguel Torga anotaria no seu Diário: "Na História do mundo nada aconteceu, mas na de Portugal acabou um reinado, uma época – trágica, como se há-de ver –, uma maneira específica de governar, qualquer que seja a vontade do sucessor. Não existem heranças carismáticas." Mas concluía: "Sem hábitos de liberdade e aliviados da carga do opressor, (…) a que outra razão de luta iremos pedir energia? Por quem substituiremos o pai tirano que combatíamos?" A esperada abertura marcelista quase se limitará a uma mudança de nomes: o partido único passa de União Nacional a Acção Nacional Popular; a polícia política deixa de se chamar PIDE para ser DGS; a Censura toma a designação de Exame Prévio. O fascismo lusitano ainda iria durar quase mais seis anos. 

Salazar morre às 9h15 de 27 de Julho de 1970, depois da extrema -unção ministrada pelo pároco da Estrela. D. Maria terá ouvido as suas palavras antes de expirar: "Sim, mãe, sim" (Joaquim Vieira). Às 11h20 a bandeira nacional é posta a meia haste em São Bento. 

O impressionante funeral


No telejornal, o locutor lê que "às horas da manhã em que o País começava mais um dia de trabalho, Salazar deixava de existir". Presente nas Comemorações do V Centenário da Descoberta de S. Tomé e Príncipe, Américo Tomás dirá que "a morte nos levou um homem que foi o maior português do seu século e um dos maiores de sempre". 

A cerimónia do funeral é impressionante. O caixão é levado em cortejo para a Assembleia Nacional (hoje, Assembleia da República), com a banda da GNR a tocar a Marcha Fúnebre de Chopin; seguindo, depois, para o Mosteiro dos Jerónimos, onde estaria dois dias em câmara ardente, com uma multidão que desfilava continuamente defronte da urna. Muitos estabelecimentos e empresas encerraram as suas portas, em sinal de luto, quando o féretro seguiu num comboio especial para Santa Comba Dão. A viagem ferroviária de 30 de Setembro demoraria cinco horas, devido às paragens nas estações onde muitas pessoas se queriam despedir de quem as governara durante quase quatro décadas, após o que seria sepultado numa campa rasa no cemitério do Vimieiro. 

Ao contrário da bomba anarquista de 1937, que explodiu antes da chegada do automóvel em que Salazar seguia, das tentativas de golpes militares ou das manobras palacianas, uma mera cadeira de lona acabaria por lhe ser fatal. Ou, como José Cardoso Pires escreveu na fábula satírica Dinossauro Excelentíssimo, publicado ainda durante a ditadura e que era um retrato da vida de Salazar (o "Doktor Dinosaurus" ou "Dinossauro Um"): "Tinha caído e estava velho; era um gigante muito antigo, de fibras mais que secas, a estalar." 



Fonte: Sábado, 03.08.2018