24 de março de 2019

O mistério da droga que Salazar tomava (Diogo Barreto)



A última injecção Salazar foi injectado regularmente com uma substância entre 1946 e 1968.


A 3 de Agosto de 1968, o presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar caiu de uma cadeira de lona enquanto lia o jornal no forte de Santo António da Barra. O ditador bateu com a cabeça nas lajes e acabou por ser afastado do poder. Na véspera desta queda que mudaria o funcionamento do Estado Novo, Salazar tinha recebido uma das injecções rotineirias que lhe eram administradas dia sim, dia não, três vezes por semana. As injecções continuaram mesmo depois da fatídica queda que inspirou o conto Cadeira, de José Saramago, publicado pela SÁBADO em Agosto.

Registada por Salazar no seu diário foi a 5 de Setembro de 1968, às 10h00. Era a 17ª desde que se instalara na na fortaleza do Estoril, em finais de Julho, a residência que tinha escolhido como sua casa de férias. A consulta dos diários mostra que ao longo da vida levou milhares destas injecções, revela o livro A Queda de Salazar: O princípio do fim da Ditadura, de José Pedro Castanheira, António Caeiro e Natal Vaz, editado pela Tinta-da-China. O Expresso publica um excerto do livro que chega às bancas esta sexta-feira.

Segundo os autores, não há referências, na vastíssima literatura sobre o ditador, ao "facto de Salazar ser injectado regularmente". Mas consultas ao seu diário mostram que "nos últimos anos ele recebia uma injecção três vezes por semana", rotina que não era do conhecimento de vários médicos que acompanharam os últimos dois anos de vida de Salazar. O livro avança a hipótese da injecção ser sempre administrada por João Rodrigues Merca, "o enfermeiro de confiança" de Eduardo Coelho.

No diário, a primeira referência a uma injecção data de 15 de Maio de 1946, pouco depois do fim da II Guerra Mundial. A injecção terá sido prescrita " pelo professor Eduardo Coelho, que na antevéspera estivera na residência oficial, na sua qualidade de novo médico assistente do presidente do Conselho".

"Madalena Garcia, que decifrou e transcreveu o Diário de Salazar, contabilizou as injecções anotadas pelo presidente do Conselho: 1211. Se entre 1946 e 1954 foram simplesmente ocasionais, a partir de 1955 elas passaram a fazer parte da rotina semanal. Numa primeira fase, durante os seis anos entre 1955 e 1960, o número foi algo irregular, desde um mínimo de 24 em 1959 a um máximo de 70 em 1956, a uma média anual de quase uma injecção por semana".

A frequência de consumo aumentou exponencialmente a partir de 1961, ano do início da Guerra Colonial que duraria até 1974, quatro anos depois da morte do ditador. A partir de 1968 não se sabe se Salazar continuou a receber injecções, já que deixou de escrever no diário a partir de 6 de Setembro.

O diário do ditador não especifica, nem os registos médicos, qual a substância administrada nas injecções. A única referência encontrada no diário de Salazar é a um opiáceo chamado Eucodal, em 5 de Abril de 1956, mas em 1968 já seria outro o produto. Em Julho desse ano, um mês antes da queda, o líder do país agradeceu ao embaixador Marcello Mathias o envio, de Paris, de mais uma caixa de injecções, que não identifica, mas sobre as quais diz que "não se vendem em Portugal", o que mostra que já não se tratava de Eucodal, já que esse continuava a ser vendido no país.

O Eucodal era considerado "um primo farmacológico da heroína", e com "efeitos melhores do que a morfina pura", refere o livro. O filho do professor Coelho, Eduardo Macieira Coelho, de 87 anos, professor reformado da Faculdade de Medicina de Lisboa, explicou aos autores do livro: "Provavelmente foi receitado pelo meu pai», para o aliviar de dores muito fortes causadas por uma ciática crónica". Mas diz que a ser verdade a teoria de que era Eucodal, Macieira Coelho diz que era uma dose muito elevada de um medicamento que "cria dependência".

"Nós tínhamos sempre ampolas de Eucodal connosco, na nossa mala, para levar para casa dos doentes. Em casos de situações agudas de enfarte de miocárdio e dores violentíssimas no peito, dávamos uma injecção. Era imediato. E muitas vezes, se fosse necessário, era mesmo uma injecção intravenosa. A ideia era tirar a dor e a ansiedade ao doente e pô-lo a dormir. Depois vinha o resto", recorda Macieira Coelho. 

O Eucodal era, como lembram os autores de A Queda de Salazar: O princípio do fim da Ditadura, o medicamento favorito de Hitler desde o segundo semestre de 1943. A influência do Eucadol no comportamento de Hitler só seria descoberta e exposta mais de meio século depois, pelo romancista alemão Norman Ohler, mas sabe-se que a sua administração deu uma "nova vitaldiade" ao ditador alemão e principal responsável pelo despontar da II Guerra Mundial.
O desconhecimento das injecções

Muitas poucas pessoas estariam a par das injecções administradas a Salazar. Os autores da obra citada falaram com os três médicos que acompanharam Salazar depois da queda e nenhum estava ao corrente destas injecções. Portanto, o segredo estaria guardado entre o médico que as receitou, o enfermeiro que as administrava e... a governanta, Maria de Jesus Freire, falecida em 1981.

"Lembro-me de ela dizer que ia lá de vez em quando um enfermeiro dar umas injeções a Salazar, mas não fazia ideia que era uma coisa com tanta regularidade", diz Fernando Dacosta, um dos jornalistas que melhor conheceu Maria de Jesus.


Fonte: Sábado, 01.11.2018