24 de março de 2019

Como era a vida na aldeia-modelo de Salazar (Susana Lúcio)



No início dos anos 50, 206 famílias receberam uma casa, terra e gado em Santo Isidro de Pegões, no Montijo.

Quando as primeiras famílias chegaram à Colónia Agrícola de Santo Isidro de Pegões só as casas estavam prontas. "A terra não estava amanhada, as vinhas não estavam plantadas e ainda havia máquinas a abrir estradas", conta à SÁBADO Florêncio Pinto, filho de um dos primeiros colonos a instalarem-se numa das aldeias criadas de raiz pelo Estado Novo, em 1951. 

Muitos dos seleccionados para povoar a zona, no concelho do Montijo, não tinham outro meio de sustento além do que dava a terra e nos primeiros anos passaram fome. "Uns conseguiram sobreviver, outros não. Para as famílias com muitos filhos, era mais difícil, também havia terrenos mais fracos que não davam tanto. Algumas desistiram e abandonaram a colónia", conta. 

A proposta do Estado Novo para fixar população em terrenos baldios e públicos parecia um sonho para a grande maioria dos portugueses na altura. À chegada, os colonos recebiam uma casa nova com três quartos, estábulo, cocheira, sótão e casa de banho - um luxo para a época -, mais cerca de 18 hectares de terra, o equivalente a 18 campos de futebol. Tinham ainda escola para os filhos, um médico e um centro social onde as crianças poderiam ficar depois da escola e onde as mulheres aprendiam a costurar. 











Mas nada disto foi de graça. O casal, como era chamada a propriedade, tinha de ser pago em 30 anos, em pagamentos anuais no valor de um sexto do que a terra produzia. Em 1957, o pai de Florêncio Pinto pagou 598 escudos, o equivalente hoje a cerca de 268 euros, segundo a Pordata. "Era demasiada terra para ser cultivada por uma família. Trabalhou-se de dia e de noite para conseguir fazer os pagamentos", diz Isabel Moisés, filha de colonos que chegaram em 1952, vindos de Coruche, no Ribatejo.

A Colónia Agrícola de Santo Isidro de Pegões foi o último e mais bem-sucedido projecto da Junta de Colonização Interna, um organismo criado em 1936 para fomentar a agricultura em terrenos baldios e propriedades públicas. A ideia servia ainda para reduzir o número de pessoas que sazonalmente atravessavam o País para irem trabalhar nas colheitas no Alentejo e na península de Setúbal. "Chamávamo-los 'os ratinhos' porque vinham com muitos filhos pequenos", conta Jaime Quendera, gerente da Cooperativa Agrícola Santo Isidro de Pegões e que cresceu ali perto, no Poceirão. 

Ao todo, foram criadas sete colónias, mas a única que vingou até hoje foi a de Pegões. A Cooperativa Agrícola, criada em 1958 para apoiar os colonos e receber as uvas dos 830 hectares de vinha plantados, é uma das mais bem-sucedidas empresas de vinho no País e já recebeu mais de 500 distinções e prémios nacionais e internacionais. 

Os pais de Florêncio Pinto vieram de Vendas Novas. "O meu pai era capataz numa herdade e foi o proprietário que lhe disse o que a Junta estava a propor." O edital foi publicado nos jornais e afixado nas igrejas. Mostrava um jovem casal - ele com uma enxada na mão, ela com uma criança ao colo - junto de um terreno arado e uma casa pequena. Os critérios de selecção eram rigorosos: podiam concorrer chefes de família exemplares, casados, católicos, com menos de 35 anos, trabalhadores e de idoneidade moral comprovada. Mais tarde, alguns foram classificados pela Junta como revoltosos, alcoólicos e vagabundos por não corresponderem ao idealizado. 

Os colonos receberam um título de fruição provisório com validade de três a cinco anos. Só depois, e após uma avaliação positiva dos funcionários da Junta, a permanência no casal se tornaria definitiva. Foram poucos os que chegaram com bens próprios. "Os meus pais viviam numa casa da herdade e quando vieram trouxeram uma carroça, uma égua, uma vaca e três ovelhas. Também tinham cama e os haveres da casa. Foi lá a carrinha da Junta buscar as coisas", conta Florêncio Pinto, de 72 anos, na altura com cinco. Ficaram instalados com os dois filhos pequenos, num casal nas Faias, um dos três núcleos da colónia que incluía ainda Figueiras e Pegões. Ao todo eram 206 casais que foram sendo ocupados gradualmente. Os pais de Isabel Moisés ficaram em Pegões. "As casas estavam vazias. A minha mãe trouxe um porta-pratos, o que para a época já era bom. Mas uma vizinha não trouxe nada. Foram tempos muito difíceis." 

Apoio técnico e financeiro

A colónia tinha sido pensada durante anos pelos técnicos da Junta e fazia parte do Plano de Modernização Agrícola, lançado pelo ministro da Agricultura Rafael Duque, em 1934. 

O advogado e proprietário agrícola foi aluno de Salazar na Faculdade de Direito de Coimbra. O presidente do Conselho foi seu professor de Economia e desde essa altura que se tornaram grandes amigos. Foi Duque o responsável pela aposta na modernização da agricultura portuguesa e pela criação das colónias agrícolas. Tudo foi analisado ao detalhe e foram realizados estudos técnicos, que avaliaram a aptidão dos solos e a rentabilidade das propriedades, e construídas duas barragens, vários furos de captação de águas e uma rede de rega, incluindo um aqueduto, para chegar aos terrenos.

As culturas eram indicadas pela Junta, tinham de ser cultivados cereais, vinha, pinhal e, junto à casa, um pomar de laranjeiras e uma horta para sustento familiar. Mas os primeiros anos não foram de boas colheitas. "O casal não estava a dar resultado e o meu pai comprou vacas leiteiras à Junta. Começámos a vender leite de porta em porta", relata Florêncio Pinto. 

A Junta dava apoio técnico aos agricultores e também geria uma conta, aberta na Caixa Geral de Depósitos em nome de cada colono no valor de 4.000 escudos (cerca de 1.755 euros a preços actuais), da qual retirava dinheiro para comprar material ou gado que cada um necessitasse. "Depois, os colonos iam repondo o que deviam", explica Florêncio Pinto. 

Até a terra começar a dar fruto, alguns colonos foram trabalhar à jorna para as terras da Junta, a plantar vinhas. "Trabalhava-se de sol a sol. Os homens ganhavam 20 escudos ao dia [cerca de 8,7 euros], as mulheres menos, acho que eram 15 escudos [6,5 euros]", diz Florêncio Pinto. Muitos andavam descalços e mal tinham para comer. "A nossa vizinha tinha quatro filhos e foi a minha mãe que lhes arranjou sapatos que tinham sido usados pelos irmãos dela", recorda Isabel Moisés. 

A pressão dos pagamentos - até a água da horta tinha de ser paga - deixava muito pouco. Ao nascer do Sol, no chamado quebra-jejum, comia-se pão com toucinho ou sopa de batatas, segundo a tese de mestrado de Sara Alexandra Pereira, A Colonização Interna durante o Estado Novo: o exemplo da colónia agrícola de Pegões. 

Parava-se para almoçar no campo, batatas com grão e peixe salgado, açorda alentejana ou feijão com arroz. O jantar era hortaliça e, muitas vezes, repetia-se o que se tinha comido ao almoço. Muitos não tinham mais do que batatas temperadas com toucinho salgado. A carne, da matança do porco, era guardada para dias especiais. "Havia muitas festas e piqueniques oferecidos pela Junta em que bailávamos e tirávamos a barriga de misérias", contaram à historiadora os colonos do Casal Vilela. Alguns colonos chegaram mesmo a aproveitar comida deitada fora pela Junta no pinhal da colónia. 

A visita de Américo Thomaz

Com os anos, a vida foi melhorando. Segundo um estudo da Junta, em 1969 cada casal tinha um rendimento médio bruto anual de 145 contos, o equivalente a 43.962 euros, segundo a Pordata. Era, na altura, a freguesia com melhores condições de vida no Montijo: a taxa de mortalidade infantil era de 16,29%, quando no resto do concelho era de 59,2%. Isso devia-se à presença de um médico. "Levávamos as vacinas e bebíamos óleo de fígado de bacalhau", conta Florêncio Pinto. "Também pagávamos o médico. Em 1958, o meu pai pagava 13 escudos [5,7 euros] por mês." Cada núcleo tinha um posto médico e uma escola, com salas separadas para meninos e meninas. Havia ainda um centro social, no qual assistentes ensinavam as crianças, depois da escola, a fazer trabalhos manuais, e uma pousada, onde pernoitavam os engenheiros agrónomos que vinham visitar a colónia. Agora, a pousada é uma loja solidária.

A colónia serviu de laboratório social para o Estado Novo e chegou a ser visitada pelo Presidente Américo Thomaz. 

"Nas Faias, fui eu o escolhido para oferecer uma carroça de madeira ao Presidente. O rapaz que a fez teve vergonha e não quis", relembra Florêncio Pinto. "A colonização interna foi uma tentativa de converter camponeses em proprietários através de apoio técnico. A ideia era criar um homem novo", explica Leonardo Aboim Pires, investigador no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. Para isso, era exercida uma vigilância sobre o comportamento dos colonos. 

Cada núcleo era governado por um regente agrícola que tinha como função fiscalizar a produção de cada casal. A mulher do regente organizava as festas religiosas da aldeia e algumas eram as professoras. O casal era, usualmente, padrinho de baptismo das crianças da colónia. "Tinha mais significado ser padrinho o senhor regente do que o vizinho do lado", considera Florêncio Pinto.

Os técnicos agrícolas davam indicações, que tinham de ser acatadas, aos agricultores de como tratar das culturas. "Havia técnicos que tomavam de ponta alguns colonos, que não aceitavam à primeira o que lhes era dito. Bastava começar a responder mal para se ter problemas", conta Florêncio Pinto. 

As mulheres também eram vigiadas. Tinham de participar em cursos especializados sobre a limpeza do lar, a gestão do orçamento familiar e o bom comportamento à mesa. Havia educadoras familiares que visitavam as casas dos colonos e faziam relatórios. "Era muito duro, depois de um dia inteiro de trabalho no campo, à noite as mulheres tinham de ir limpar a casa", recorda Isabel Moisés. 

O bom comportamento era premiado. "Havia concursos anuais para o melhor casal, o que tivesse mais bem arranjado, com o jardim mais bonito. Já não me lembro o que recebiam, acho que era uma panela", recorda Florêncio Pinto. Já o mau comportamento tinha consequências. "Lembro-me de duas famílias que foram expulsas e regressaram depois do 25 de Abril. Algumas por causa de alcoolismo, outras por política", diz Isabel Moisés. 

Colónia de férias 

Todos os anos as crianças iam 15 dias para a praia, na Gafanha da Nazaré ou na Caparica. "A minha irmã, que é dois anos mais nova, chegou a ir. Eu nunca fui, nas férias tinha de ajudar a ordenhar as vacas", diz Florêncio Pinto. As crianças recebiam uma lista da roupa que tinham de levar, além do terço, e iam de comboio. As assistentes sociais escreviam relatórios sobre o número de banhos que cada uma tomava e o peso que ganhavam. Era para muitas a altura do ano em que comiam melhor. 

Apesar dos avanços sociais, a colónia espelhava as diferenças entre os senhores e o povo. "As casas dos técnicos tinham casas de banho com sanita e banheira. As nossas tinham um buraco no chão e um chuveiro de balde. As casas deles tinham electricidade, as nossas não. O meu pai pediu autorização para instalar a luz e não a deram. Nisso eles fizeram mal", conclui Florêncio Pinto. Até nas festas, os técnicos e os regentes comiam juntos nas mesas, os colonos faziam piqueniques. 

Em 1980, ao fim dos 30 anos, os colonos receberam o título de fruição definitivo dos casais. Mas as propriedades continuavam do Estado, os colonos não as podiam vender e só os filhos varões as podiam herdar. Só em 1988, é que receberam a posse plena. "Vieram cá todos: o Mário Soares, o Freitas do Amaral e o Cavaco Silva", recorda Florêncio Pinto. Alguns colonos venderam os casais, mas há ainda muitos descendentes que os mantiveram e que voltaram à colónia para produzir vinho. 

Para trás ficou a inveja dos habitantes das aldeias vizinhas, para quem a colónia de Pegões foi um privilégio concedido a pessoas que não eram da região. "Sempre ouvi dizer: 'Eles tiveram tudo e nós nada'", conta Jaime Quendera. "Mas foi um projecto vencedor que trouxe civilização a uma região despovoada." 


Fonte: Sábado, 17.11.2018