28 de junho de 2020

Moçambique e a União Soviética precisavam deste herói (José Milhazes, 2010)


Artigo sobre o meu livro: "Samora Machel-Atentado ou Acidente" publicado no suplemento Ipslon do Público:

"Samora Machel, o primeiro Presidente de Moçambique, tinha de morrer como um herói. Moscovo não podia admitir falhas no Tupolev-134 que caiu em 1986: a tese do atentado sul-africano era mais confortável. Um novo livro de Jose Milhazes, "Samora Machel - Atentado ou Acidente?", inclina-se conclusivamente para uma falha humana.

É de um episódio distante, e ao mesmo tempo muito presente, que trata o novo livro do historiador e jornalista José Milhazes, "Samora Machel - Atentado ou Acidente?" (Alêtheia). A morte de Samora Machel em 1986 é passado. Mas o mistério que sobre ela permanece é presente, e o acontecimento é olhado, hoje, à luz de uma nova realidade, e de novos e também trágicos episódios, como a morte do Presidente polaco Lech Kaczynski, na queda de um avião do mesmo tipo.

Em 1986, um Tupolev-134. Este ano, um Tupolev-154. Em ambos os casos, a tripulação era russa (em 1986 ainda se dizia soviética), e muito confiante. E é exactamente na Rússia que se centra a investigação de José Milhazes, ex-correspondente do PÚBLICO e actual correspondente da Agência Lusa em Moscovo, para quem o paralelo é inevitável.

Passado e presente ligados pelo mesmo tipo de acontecimento mas também pela leitura política que abre e fecha o livro: "Moscovo forneceu armas suficientes para que o MPLA (em Angola) e a FRELIMO (em Moçambique) continuem ainda hoje no poder", embora "com uma orientação ideológica oposta à defendida por eles até à queda da URSS em 1991".


Passado e presente, sim, confirma José Milhazes em entrevista ao Ípsilon: "Sem o apoio soviético, MPLA e FRELIMO não estariam hoje no poder." O papel que a URSS desenvolveu em Angola e Moçambique teve menos a ver com ideologia e mais a ver com disputas de interesses e de influências com os EUA. Há uma história comum, um passado a unir militares e conselheiros moçambicanos e soviéticos, que mantêm laços ainda hoje demonstrados pela presença dos russos em Angola, operando negócios tão cruciais como o do petróleo ou o dos diamantes, controlados por figuras que continuam no poder.

Passado e presente, também, por contraponto. Voltando à queda dos aviões do Presidente de Moçambique e agora mais recentemente do Presidente Lech Kaczynski: "Enquanto a investigação de Moscovo à queda do avião de Machel foi feita de forma muito confusa e desalinhada, no caso da queda do avião do Presidente da Polónia houve uma atitude clara de abertura por parte das autoridades russas, para que não restassem dúvidas de que não se tratava de uma manobra dos serviços secretos russos."

Um sinal dos tempos. O acesso aos arquivos soviéticos, "que certamente dariam respostas a muitas perguntas", escreve o autor na introdução, continua limitado. A desagregação da União Soviética, em 1991, permitiu porém que começassem a ser publicados testemunhos e entrevistas de pessoas envolvidas nas investigações à morte de Machel. Sem esses materiais, este livro não teria sido possível.

Negligência, diz ele

Ao cruzar três fontes soviéticas, o autor conclui, sem dúvidas, que a queda do avião onde seguia o Presidente de Moçambique, Samora Machel, no dia 19 de Outubro de 1986, aconteceu por desleixo da tripulação e não devido a um atentado. A tese, apresentada então como verdade absoluta, de que o avião foi desviado do seu rumo em direcção ao aeroporto de Maputo por um farol, numa "operação de diversão dos serviços secretos sul-africanos", é falsa, diz Milhazes, baseando-se na publicação dos estudos dos especialistas soviéticos Leonid Seliakov, técnico e construtor de aviões Tupolev, Evgueni Jirnov, jornalista que investigou o caso, e Igor Zotovsky, que acompanhou desde o início, como tradutor, os trabalhos da comissão de inquérito.

A tese é sustentada por testemunhos escritos destes protagonistas, que Milhazes inclui no livro, juntamente com excertos de uma entrevista pessoal com Igor Zotovsky, além de transcrições dos registos das caixas negras do avião, e de observações e análises feitas por técnicos nas comissões de inquérito. Os elementos reunidos e publicados coincidem numa mesma leitura: o avião não estava preparado para o voo e a tripulação cometeu vários erros - o mais grave terá sido o do piloto, que mudou, sem explicação, a rota do avião quando este se aproximava do aeroporto, levando o Tupolev-134 a embater nas colinas de Mbuzine, na África do Sul.

José Milhazes apresenta a versão da negligência como uma certeza, sem margem para dúvidas. Mas o título do livro é em forma de interrogação. "A conclusão deve ser tirada pelo leitor do livro, mas os elementos que apresento permitem concluir que não se tratou de atentado, mas de falha humana", justifica.

Quase 25 anos após a tragédia, não existe uma versão oficial dos acontecimentos. Nem da parte de Moçambique, nem da parte da África do Sul, onde caiu o avião, nem da parte russa. Nenhum dos relatórios das várias comissões de inquérito foi assinado por todos. Há tomadas de posições, discursos ou declarações. Vladimir Novosselov, o único membro da tripulação soviética que sobreviveu à tragédia, disse na altura estar convencido de que se tratara de um "atentado planeado com antecedência" pela África do Sul.

Herói precisava-se

Moçambique mantém a tese do atentado dos serviços secretos sul-africanos, também na altura apoiada, à falta de melhor, pela União Soviética, envolvida na Guerra Fria e na disputa com os EUA pela hegemonia mundial. "Qual não seria o choque e o descrédito" se a União Soviética, uma super-potência, reconhecesse que a morte de um Presidente aliado se devera a desleixo da tripulação e falta de condições do avião?, questiona o autor.

"Naquela altura era preciso um herói", tanto para Moçambique como para a União Soviética. "Nem a URSS nem Moçambique iriam reconhecer que o Presidente Machel morrera devido a tal incúria da tripulação." O selo que as autoridades soviéticas emitiram nesse ano em homenagem a Samora Machel, e se vê agora na capa do livro, "faz parte da política de tributo a um homem que morreu como um herói, alegadamente vítima dos sul-africanos". O atentado "encaixava-se bem na tese do heroísmo", conclui José Milhazes. Ainda hoje, nota o autor, existe em Moscovo uma "Rua Samora Machel".

Ainda hoje, por falta de alternativa, Moçambique mantém a mesma tese, não olhando para os novos dados soviéticos que começaram a ser divulgados em 1991. São esses dados que Milhazes analisa, na sua intenção de convidar para a leitura dos acontecimentos em África, mas sobretudo em Angola e Moçambique, um dos actores principais da época: a União Soviética. Tal como, no Outono do ano passado, convocou Moscovo para um exame da passagem das colónias portuguesas a países independentes em "Angola: O Princípio do Fim da União Soviética".

O papel de Guebuza

Passado e presente, mais uma vez: Armando Guebuza, Presidente da República de Moçambique desde 2004, dirigiu em 1986 as investigações à queda do avião. Guebuza, que no dia do lançamento do livro em Lisboa, 30 de Abril, estava em visita oficial a Portugal, continua a acreditar que "Samora Machel foi assassinado pelo apartheid" sul-africano.

O livro agora lançado em Portugal traz o actual Presidente de Moçambique para o centro da polémica - questiona justamente se o facto de ter sido Guebuza a dirigir as investigações não é uma das razões pelas quais o mistério da catástrofe que vitimou Machel continua por desvendar.

"Essas são as únicas linhas de texto em todo o livro que têm o meu cunho pessoal, e são escritas em forma de pergunta", nota o autor. "E essa pergunta tem razão de ser. Ou se tem elementos para afirmar uma tese, como no caso deste meu livro, ou não se pode desmentir apenas dizendo que se acredita, sem provas, na tese do atentado. Armando Guebuza era o chefe da Comissão de Inquérito. É ele o homem mais informado. E sempre defendeu a tese do atentado." Voltar atrás agora, conclui, seria "perder a face", reconhecer que a versão que sempre defendeu, pensada para criar um herói e preservar uma grande potência, era uma mentira."


darussia.blogspot.com, 2010/05/16