19 de agosto de 2013

Apontamentos sobre Lourenço Marques de hoje (A. Pereira de Lima, 1965)


A capital de Moçambique, talvez seja a mais cosmopolita da costa oriental do Continente Africano, desde o Cabo a Suez. Mas não é um cosmopolitismo em que etnias diversas simplesmente existem e lhe dão colorido. É um cosmopolitismo em que as raças diversas que formam o matizado da sua população, se convivem e se estimam, cidade onde o respeito mútuo não é figura de retórica, mas uma verdade límpida exposta à luz clara do Sol para quem o queira ver. Os contactos de raças diferentes de que é constituída a sua população nativa, merece ser apreciada em todo o seu significado no Mercado de Xipamanine, nos subúrbios, servindo uma zona suburbana mais densamente povoada por nativos, na maioria destribalizados, provenientes de todos os cantos da vasta província portuguesa de Moçambique. O «machangane» compra ao «macua» este vende ao «muchope», que por sua vez trata de seus negócios com artefactos caseiros, como cestos ou esteiras, com o «tembé», numa perfeita harmonia de relações humanas e de entendimento de preço justo pela mercadoria que transacciona. Próximo, o «monhé», na sua cantina, vende panos garridos, lenços multicores e outros artigos tão de agrado da mulher nativa. O Xipamanine encerra um mundo de entendimento, entre raças diversas, mundo esse que o português soube criar.

Ouvimos alguém, sobre cujos ombros pesa a responsabilidade de um nome com séculos de história, que ninguém como o português soube criar à sua volta, mesmo nos primeiros contactos com raças diferentes da sua, um ambiente de simpatia. Dizia ele: «Até em locais mais recônditos da selva, onde o português chegou, criou imediatamente à sua roda um grupo de amigos». É a expressão da verdade! De uma verdade portuguesa, pois o exemplo do «Caramurú», não é, felizmente, único na nossa história.

Mais do que o seu chamado «ambiente continental», é essa convivência de raças em perfeita harmonia que faz de Lourenço Marques a menina bonita do Continente Africano, projectada nas colunas da Imprensa internacional pela pena de muitas centenas de jornalistas estrangeiros que nos visitaram ultimamente, alguns dos quais tivemos a honra e o prazer de acompanhar.

A cidade, cedo amanhece. Limpas as suas ruas pela 3 horas da madrugada, por brigadas de varredores municipais (a Câmara Municipal mantém ao seu serviço 400 varredores para tal serviço), ela desperta com o movimento enervante que se processa no Mercado da Praça Vasco da Gama, onde a cidade se abastece. O movimento aumenta à medida que se aproxima a hora matutina da abertura das repartições públicas e casas comerciais, ou seja às 8 horas da manhã. Ónibus, superlotados, despejam no coração da Baixa milhares de pessoas que vão para os seus empregos. Tudo se processa ordeiramente, sem atritos, sem conflitos.

Na Cidade Baixa concentram-se os grandes estabelecimentos comerciais, os bancos, as sedes das grandes companhias. Avulta pela sua grandeza o moderno edifício do Banco Nacional Ultramarino – construído em comemoração do 1º centenário da sua instituição em Moçambique, ocorrido em 1964. É um edifício magnífico que honra a cidade. No seu interior admiram-se obras de arte, como painéis, telas de artistas famosos, mobiliário de estiilo, etc., que deslumbram o visitante. A uma jornalista americana com responsabilidades, ouvimos nós a afirmação de que nem os Bancos de Nova Iorque possuem tal expressão de bom gosto.

A Maxaquene – outrora vilória nativa, cujo chefe usava esse nome – é o bairro sobranceiro à Cidade Baixa. O acesso principal a esse bairro é hoje feito pela Avenida D. Luís I que vai morrer no Largo Praça Mouzinho de Albuquerque, emoldurada pela Sé Catedral e o magnífico edifício dos Paços do Concelho, este em estilo neo-clássico. No seu interior admiram-se telas de Malhoa, de Columbano e de outros grandes mestres. O mobiliário é em estilo Luís XIV, com predominância de dourado. Uma Galeria de Arte – aberta permanentemente ao público – encerra trabalhos notáveis de artistas plásticos locais, cujo alto nível por ela se pode ajuizar. Na Maxaquene estão também situados o Palácio da Rádio – o mais importante da África Meridional – e edifícios residenciais de muitos andares. Na Avenida 24 de Julho, os modernos cafés «Princesa» e «Pigale», regurgitam sempre de gente, que mantém sempre bem viva a tradição lisboeta do café e «dois dedos de conversa».

No sentido da Polana, e depois de passar pelo Museu Álvaro de Castro, jóia arquitectónica em estilo manuelino, encontra-se a reentrância da Ponta Vermelha. O Museu – centro científico muito importante na África Meridional – é famoso pelas colecções zoológicas e etnográficas que possui e, bem assim, pelos trabalhos extraordinários de taxidermia, de que foi autor o falecido mestre Peão Lopes, Pai.

Na Ponta Vermelha, debruçada sobre a imensidão da baía que os nossos antigos apelidaram outrora e acertadamente de Baía Formosa – fica a Residência do Governador-Geral, além de numerosas casas residenciais modernas. Em toda a extensão da Ponta Vermelha, sobre a encosta da barreira, até junto ao Polana Hotel corre o famosos Miradouro Lisboa, outro marco inconfundível de portuguesismo nesta bela cidade, onde não se sabe que mais admirar, se sua beleza natural, se as obras que o homem realizou com o seu génio, vencendo as condições duras da Natureza, se o intransigente portuguesismo das suas gentes. O Hotel Polana, ocupa posição dominante, no topo da colina e marca o centro do bairro do mesmo nome. A designação proveio de um antigo chefe nativo do povoado que ali se fixara e com os quais os nossos pioneiros primeiro travaram contacto civilizador. A conservação de nomes como Maxaquene e Polana nos bairros mais elegantes da cidade de hoje é mais uma prova do carácter conservador do povo português e da sua política de convivência amigável com povos diferentes que encontram na sua jornada de expansão universal da sua cultura, evitando cuidadosamente destruir o que encontrou feito e estabelecendo com os naturais laços de fraternidade e de integração. Foi assim em Goa, em Macau, em Cabo Verde, em Angola, na Guiné, em Moçambique também e por todo o Mundo que soube criar à sua volta, sem ódios nem ambições sangrentas que caracterizaram a expansão de outros povos europeus, que extinguiram por completo – em determinados pontos do Globo – civilizações e raças inteiras! O português não tinha formação para semelhantes atrocidades. Proibi-as a sua formação moral e religiosa.

Transposto o bairro da Polana, temos o novíssimo Bairro dos Cronistas. De uma antiga e vasta «quinta» abandonada do Dr. Óscar Sommershield, no último quartel do século passado, o esfortço e o entusiasmo dos lourençomarquinos foi capaz de, em pouco mais de dez anos fazer erguer o Bairro mais moderno e belo da cidade. Ele começou a fazer-se cerca de 1955. O Bairro dos Cronistas está para Lourenço Marques, a Velha, como Alvalade para a Lisboa pombalina.

A cidade espreguiça-se depois, pela encosta maravilhosa que vai morrer na famosa praia da Polana: imensa, de areia dourada, onde o Índico se desfaz em rolos e rendilhados de espuma quando o mar está agitado. Quando não, parece um imenso lago, verde-esmeralda de águas tranquilas. A Polana maravilhosa é um cartaz turístico internacional, que anualmente atrai, devido à segurança das suas águas, muitos milhares de turistas da África do Sul e da Rodésia. E quem, ao fazer a descrição física de Lourenço Marques poderá esquecer os domingos de sol na praia da Polana para onde a população inteira de encaminha, espalhando-se em formigueiro pela imensidão da praia? Em local mais sombrio a Câmara Municipal instalou o seu Parque de Campismo, em constante evolução e que tão popular é junto dos visitantes. Barracas e campanha, chalés em alvenaria, rondáveis típicos de acampamentos africanos, formam um conjunto colorido dentro desse Acampamento para o qual a Câmara Municipal dedida especial carinho.

O Alto Maé e a Malhangalene, são dois bairros tipicamente portugueses, situados na Cidade Alta, de características próprias. São bairros de gente trabalhadora, na maioria de classe média, profundamente arreigados à terra e às tradições portuguesas, das quais se destacam as comemorações dos Santos Populares. Mais adiante encontram-se os bairros do Chamanculo, do Xipamanine, de S. José, do Aeroporto e outros com uma população predominantemente nativa, mas onde se cultivam também as melhores tradições de Portugal, integradas no seu viver. Na casa mais modesta de trabalhador nativo, não falta o vinho na mesa, às refeições e um gesto de hospitalidade para quem lhe bate à porta.

Lourenço Marques, no Verão veste-se de flores garridas – nomeadamente de acácias rubras flamejantes. No Inverno, é ver-se pelos belos jardins municipais e particulares uma profusão das chamadas flores de Maio, de caprichoso rendilhado e alvas como véu de noiva. A cidade possui hoje, plantadas pela mão do homem – nesse caso pelos Serviços dos Jardins e Parques Municipais – cerca de 30 000 árvores, que lhe dão nota única e muito característica.

Reservámos propositadamente para o fim a vida nocturna desta maravilhosa cidade. Lourenço Marques, ou melhor a sua população, de forma alguma dispensa duas coisas: as matinées dos sábados e domingos em todos os teatros da cidade – quase sempre cheios por essa ocasião – qualquer deles apresentando requintes de conforto e comodidade; e a sua vida nocturna. Não que esta seja diferente de qualquer outra cidade portuária europeia, mas em África apresenta no multirracialismo da sua frequência um ambiente diferente que surpreende o visitante. Um diplomata ilustre que uma vez acompanhámos em visita a Lourenço Marques teve para nós esta curiosa afirmação: «Jamais deveis prejudicar o ambiente multirracial dos vossos clubes nocturnos da Baixa. É qualquer coisa de inédito em África! Clubes desse género com raparigas europeias mais ou menos despidas em espectáculos mais ou menos atrevidos encontram-se em qualquer canto do Mundo. Agora com o ambiente que se soube criar em Lourenço Marques, isso só em Lourenço Marques».

É na zona portuária da Baixa, ou melhor no que resta da Cidade Antiga, que se situam os mais famosos clubes nocturnos e cabarés de Lourenço Marques: o «Pinguim», o «Aquário», a «Cave», e outros de menor categoria. A sua frequência é a habitual dos cabarés em toda a parte do Mundo. Ocasiões há em que os ânimos aquecem para além das conveniências. Acontece então aquilo que acontece em todos os cabarés: disputas que se resolvem a murro, copos e garrafas partidas. Semelhantes disputas geralmente têm por protagonistas marítimos estrangeiros e muito raramente se envolvem nelas os frequentadores habituais de tais locais, que sabem perfeitamente quando devem bater em retirada, pois ninguém tem prazer em se meter em complicações com a polícia, que em tais ocasiões, como é natural, tem de entrar duro para resolver questões.

Nestas pouco linhas, fica apenas esboçado um quadro muito pálido da vida de Lourenço Marques de hoje. Tempo mais largo e muito mais páginas de prosa seriam necessárias para retratar fielmente o que verdadeiramente é Lourenço Marques, essa portuguesíssima cidade, debruçada garridamente sobre uma baía imensa onde desaguam cinco rios. Tão portuguesa ela é que perpetua o nome ousado de um piloto português das naus da Índia, primeiro que a descobriu para o trato do comércio com os nativos, em 1544, depois de haver sido descoberta por navegadores portugueses, cerca de 1500-1502.

Lourenço Marques, é bem uma afirmação perene de Portugal em África, mas de uma presença vigorosa, renovada, para permanecer e continuar Portugal.


Fonte: Arquivo Pessoal