3 de janeiro de 2009

Venenos de Deus, Remédios do Diabo (Mia Couto)

VENENOS DE DEUS, REMÉDIOS DO DIABO (MIA COUTO) Venenos de Deus, Remédios do Diabo é o mais recente romance de Mia Couto, escritor moçambicano nascido em 1955. Neste livro, tomamos contacto com Sidónio Rosa, médico português que decide fazer trabalho cooperativo em Moçambique para tentar encontrar a sua amada Deolinda, uma mulata que conheceu num congresso em Lisboa. Chegado a Via Cacimba só encontra os pais de Deolinda – Bartolomeu Sozinho e Dona Munda – que justificam a ausência da mulata por suposto estágio. No decorrer da narrativa Sidónio é confrontando com histórias antagónicas sobre o que terá acontecido a Deolinda e sobre o passado da família Sozinho. Adensa-se o mistério e Sidónio mergulha, também ele, na cacimba que parece cobrir a Vila Cacimba. Mia Couto sabe contar uma história, doseia a informação com mestria, revela os factos no momento certo, fá-lo quando já estamos desconfiados da sua existência e sem chamar a atenção para si. O leitor só sabe aquilo que a personagem principal sabe, embora haja algumas excepções, e toma conhecimento dos factos ao mesmo tempo que Sidónio. Isto permite que cada revelação seja, no contexto da narrativa, verosímil e permite também uma maior envolvência da parte do leitor. Em Venenos de Deus, Remédios do Diabo é fácil gostarmos das personagens pelo carisma e pela quase total ausência de maldade. Não são heróis, são pessoas que, como todos nós, cometem erros, mentem, falam verdade, têm medos, fantasmas e acreditam em algo que não se vê e que não é terreno. Nessa galeria de personagens destaca-se Bartolomeu Sozinho, um velho reformado que andou toda a vida, quando Moçambique era uma colónia portuguesa, embarcado no transatlântico Infante D. Henrique. Passa os dias fechado no seu quarto, apenas com a companhia da televisão que, como é dito, sonha por ele. Mal visto em Cacimba, por causa da sua ligação ao regime colonial que é empolada por uma daquelas lendas heróicas que alguns contam – neste caso o administrador Suacelência – para se vangloriar e conseguir um lugar de destaque junto da comunidade. A sua esposa, Dona Munda, é uma mulata acusada pelo seu marido de ser feiticeira. Guarda segredos que nunca chegamos a conhecer na sua totalidade. Tão depressa deseja, aparentemente, matar o seu marido como deseja que ele não morra e que recupere do mal que o consome. Com um papel de menor destaque desfilam na prosa de Mia Couto outras personagens com traços particulares e que prevalecem na nossa memória finda a leitura deste romance. Disso exemplo é Suacelência, o administrador da cidade que deseja um medicamento que acabe com o suor. A própria Vila Cacimba assume um destaque simbólico, porque tudo nela – locais (cemitério) e personagens – parece, como o nome indica, estar envolto num nevoeiro que não deixa ver a realidade. Na vila, o tempo (passado, presente e futuro) parece não existir e as histórias têm tantas versões quantos os habitantes que as contam. Venenos de Deus, Remédios do Diabo apresenta o trabalho sobre a linguagem típico de Mia Couto, onde as palavras são alteradas pela oralidade e pelo uso efectivo do dia-a-dia. Ainda assim, Mia Couto exagera nos adágios que coloca na boca das personagens e na voz do narrador. Parece haver uma necessidade de colocar em filosofia popular todo e qualquer acontecimento. Mesmo a personagem mais humilde tem a capacidade de soltar uma máxima em relação à coisa mais ínfima. Em alguns casos esse exagero de máximas é justificado e até recebido com um sorriso de aprovação, noutros parece um puro exercício de estilo feito a pensar em antologias de pensamentos de bolso. Cito alguns exemplos: “O amor acontece para a gente desacontecer” (página 38) e “Viver é um verbo sem passado” (página 46). Com o desenrolar da acção, deixamos de reparar nesse pequeno pecado e passamos a devorar com ganância cada página, na esperança de ver atadas todas as pontas da história. É esse o grande mérito de Mia Couto: sabe contar uma história e isso é um bom motivo para pegar num livro. por Emanuel Amorim