11 de junho de 2010

Alfabeto para combater a pobreza – B como Bem-estar

Alfabeto para combater a pobreza – B como Bem-estar

A Psicologia não é o tipo de empreendimento científico que eu havia de aconselhar a seja quem fosse a seguir. Mas existe e existem pessoas que a seguem. Ainda bem que é assim, pois eu próprio não confio nas minhas preferências. De qualquer maneira, há sempre uma ou duas coisas que podemos aproveitar de coisas que não nos interessam como exercício intelectual. Uma delas é a ideia desenvolvida por alguns psicólogos sobre a sugestão. É incrível como uma série de palavras bonitas, encorajadoras e positivas podem afectar alguém de forma positiva e, inclusivamente, elevar o seu desempenho. Se eu, por exemplo, dissesse ao líder da Renamo, Afonso Dhlakama, minutos antes de entrar numa reunião para discutir o resultado das últimas eleições com o partido no poder, que ele é um dos raros exemplos de líder rebelde com visão, moderado nas suas posições, conciliador e curvado até ao chão pelo enorme peso da responsabilidade que o destino do povo moçambicano unido do Rovuma ao Maputo representa para a sua frágil coluna vertebral, aposto que a conversa que ele teria logo a seguir seria muito mais moderada e ponderada do que o costume. É a nossa condição humana.
Há diferença entre falar da luta pelo bem-estar e falar do combate contra a pobreza. O leitor atento e inteligente está a ver onde quero chegar. O combate contra a pobreza é algo negativo, é um bichinho que está constantemente a cochichar aos nossos ouvidos justamente aquilo que não queremos ouvir: somos pobres, temos o problema da pobreza, estamos mal, meu Deus, isto está mal, vamos fazer alguma coisa, raios, esta vida não dá. E digo mais: é um truque da indústria do desenvolvimento para nos colocar no estado de espírito que nos torna mais receptivos à sua intervenção. Não nego que estamos mal. Estamos. Mas quem não está? É possível a existência dum país sem que não haja algo que não está bem? Precisamos mesmo de repetir isso constantemente? É só prestar atenção à qualidade dos nossos debates na esfera pública. O leitor já leu algo que se desvie desta lenga-lenga interminável sobre o que está mal? Já reparou como isso é essencial à reprodução da nossa imprensa independente? Já se deu conta de como utilizamos este estado de espírito para criar temas de debate, tipo “apóstolos da desgraça” e “apologistas do tudo está bem”? É a indústria do desenvolvimento a fazer-nos jogar o seu jogo.

Os países que alcançaram os níveis de desenvolvimento que nós também gostaríamos de alcançar não se chamam “Estados que combateram a pobreza com sucesso”, mas sim “estados do bem-estar”. E sempre foram isso mesmo quando a pobreza ainda reinava. Tinham programas dirigidos contra a pobreza – e muitas vezes contra o que eles chamavam de indigência – mas não transformaram esses programas na sua razão de ser. A Inglaterra, que é um dos melhores exemplos disto, teve as suas famosas leis da pobreza (“poor laws”) que não definiam toda a nação britânica, mas sim identificavam indivíduos no interior da sociedade que precisavam duma intervenção especial e dirigida. Curiosamente, a ideia não era simplesmente de prestar socorro a essas pessoas. A ideia era, primeiro, de produzir institucionalmente a pobreza, isto é tornar a pobreza visível por via dos mecanismos institucionais criados para o seu combate e, segundo, tornar essa categoria inapetecível para o próprio indigente. O leitor não precisa de concordar com o procedimento inglês que isso até nem está em questão neste texto. O que está em questão é tornar claro que algo está fundamentalmente errado com um programa que não faz o mínimo esforço de diferenciar.

Ou o leitor já viu em algum sítio nos nossos documentos oficiais uma distinção entre o pobre que é pobre por causa dos problemas estruturais da nossa economia e política e o pobre que é pobre porque não quer fazer uso do que a nossa estrutura económica e política disponibiliza? Já viu? Não acha estranho que nos países de onde vêm os que nos ajudam haja critérios claros de acesso à assistência enquanto que no nosso insistem que todos devem ser tratados de igual maneira? Acho que o interesse pelo bem-estar poderia nos ajudar a mudar a ênfase afastando-nos da preocupação assistencialista que está no centro da indústria do desenvolvimento.

E. Macamo (2010)
in: Notícias.co.mz