11 de junho de 2010

Alfabeto para combater a pobreza – O como Ordem

Alfabeto para combater a pobreza – O como Ordem

No dia em que a África mandar no mundo uma das primeiras coisas que os nossos líderes políticos terão de mandar à Assembleia Geral das Nações Unidas fazer será de riscar a palavra “ordem” de todos os dicionários e documentos oficiais. É que não há palavra no discurso das ciências sociais, da política e da imaginação popular nos países já desenvolvidos que mais nos humilha do que esta. É uma faca de dois gumes. Quando é no sentido positivo é o que devíamos ter; quando é no sentido negativo é o que descreve aquilo que nos faz falta. Condenados em dois sentidos somos nós. Tenho até vergonha de dizer, mas não há saída, que a minha disciplina académica, a querida Sociologia, contribuiu bastante para emprestar a esta noção esta natureza problemática quando articulada com a nossa condição.
O grande Auguste Comte, o filósofo francês que inventou a palavra sociologia no século XIX para baptizar o empreendimento científico que iria produzir o conhecimento absoluto após o fim dos devaneios teológicos e metafísicos, tinha aquela convicção típica do seu tempo de que há uma ordem natural que é preciso restabelecer. Abro um pequeno parêntesis para fazer um ainda mais pequeno reparo sobre os pensadores daquela altura. É, na verdade, uma coisa curiosa. Muitos deles tinham uma visão da história que partia do pressuposto de que estamos em movimento, mas com destino. Uma vez lá chegados, o movimento pára. Assim mesmo. Se acham que estou a dizer disparates pensem em Marx que os leitores mais velhos devem ainda conhecer das sessões de estudo político dos tempos gloriosos. Materialismo dialéctico aqui e e ali, mas chegados ao comunismo, pufa (!), o movimento pára. Sim, sei que o departamento do trabalho ideológico (trabalho, ideológico, hmm) também dizia que a ideia era de acabar com a opressão. Como com o comunismo acabava também a opressão, a história também ficava sem fôlego. Como é que esse pessoal foi capaz de acreditar nesse papo todo? Nós os outros estamos desculpados porque éramos a retaguarda da vanguarda...

O parêntesis acabou sendo um pouco maior, mas valeu a pena. Então, dizia eu que o inventor da sociologia tinha esta ideia forte de que o conhecimento positivo devia ser colocado ao serviço da manutenção da ordem. Mas que ordem? Pois, uma ordem acima de tudo normativa. Isso, normativa. É daí que vem esta qualidade que a palavra ordem tem de cortar de ambos os lados. Já repararam que, no fundo, a própria noção de desenvolvimento é essencialmente normativa? Gilbert Rist, um cientista social suíço, já escreveu há vários anos um livro sobre esta noção com o subtítulo “história duma crença ocidental”, no qual ele destaca as raízes cristãs do termo. Afinal, o desenvolvimento não é propriamente sobre a satisfação das nossas necessidades mais básicas, mas sim sobre melhor conduta de vida. É assim que os principais problemas que temos com o mundo – HIV, degradação ambiental, fome, só para referir alguns – são problemas que melhor se explicam com referência à ausência de moralidade entre nós. O desenvolvimento é um truque para nos disciplinarem e moralizarem.

Com isto não quero nem de longe sugerir que a noção de ordem não seja relevante para o nosso combate à pobreza. Curiosamente até porque é. Só que o que tenho em mente é uma noção de ordem que se agarra apenas à falta de conhecimento sobre a nossa própria sociedade e diz que sem conhecimento não é possível fazer seja o que for. Já dei aulas sobre os famosos PRSP – Documentos Estratégicos de Redução da Pobreza – promovidos pelo Banco Mundial e pelo FMI e isso obrigou-me a ler uma boa parte dos documentos feitos por vários países africanos. São todos iguaizinhos, é incrível. E aí pergunto a mim próprio se eles de facto reflectem a verdadeira situação das camadas menos favorecidas dos países em questão. Duvido. Comparados com o excelente estudo de Seebohm Rowntree, de 1901, sobre a pobreza urbana em York, norte da Inglaterra, documentando exaustivamente a vida de mais de 11 mil famílias com mais de 46 mil indivíduos, os nossos PARPAs em África parecem redacções escolares. Combater a pobreza é coisa mais séria do que reproduzir os moldes dos doadores. E com isso não quero de maneira nenhuma diminuir a importância do trabalho que se fez na elaboração dos nossos PARPAs. Estou apenas a contextualizar as coisas.

E. Macamo
Maputo, Quinta-Feira, 22 de Abril de 2010:: Notícias