Alfabeto para combater a pobreza – X como Xénon
Imagino alguns leitores assíduos deste tipo de séries que envolvem todo o alfabeto a fazerem apostas em relação às letras do alfabeto mais difíceis, estilo “quero ver que palavra ele vai inventar agora para o X! Aposto que ali ele vai encalhar...”. Esses leitores subestimam a fertilidade da imaginação dum sociólogo. Na verdade, o mais difícil não é identificar uma palavra útil com essa inicial. O mais difícil é decidir que história contar a partir das várias que são possíveis. Por exemplo, quando comecei a pensar nesta série de textos anotei as primeiras palavras que me ocorreram. Quando chegou a vez do X a primeira palavra que me ocorreu foi xénon porque eu estava a ver o cinema Xenon na janela da minha cabeça. E logo a seguir ocorreram-me dois sentidos. Um etimológico que, na verdade, normalmente é o primeiro que me ocorre; o outro químico.
O etimológico parece ser o mais fácil de articular com a intenção destes textos. A palavra xénon tem origem grega e refere-se ao estranho ou estrangeiro. É daí onde vem a palavra “xenofobia” (medo do estranho). A articulação com a pobreza é puro exercício de exploração da fertilidade da mente. Podíamos, por exemplo, imaginar o pobre como alguém que é vítima da exclusão social. Essa é a sorte normalmente reservada ao estrangeiro. Nós, os membros da comunidade de pleno direito, arranjamos artimanhas culturais, políticas e económicas para excluirmos outros dos benefícios da condição de membro da comunidade. Não faz muito tempo que os sul-africanos nos deram uma lição prática disso quando começaram a brincar ao gato e rato com os estrangeiros e com garras e dentes de verdade. E na verdade a pobreza no nosso país é isto mesmo. É exclusão social. O pobre é aquele que é excluído socialmente, não tem direito a nenhuma fatia do bolo nacional. Combater a pobreza, portanto, seria o mesmo que combater a xenofobia, reservando esta apenas aos estrangeiros que corrompem o nosso sistema político.
O sentido químico já não é fácil, mas isso não quer dizer que não seja passível de ser chamado ao nosso socorro. O leitor deve reparar que é importante, neste tipo de escritos, preencher muito espaço com frases desnecessárias, observações que não vêm a-propósito, etc. para não dar tempo ao leitor atento de se concentrar muito no argumento e identificar fraquezas. O xénon químico é um gás, um dos mais mais recentes a serem descobertos, por acaso, que de entre as várias qualidades que tem pode também ser usado na composição de anestesia aplicada por inalação. Aqui tenho duas opções para abordar a questão da pobreza. Uma opção seria de concentrar a atenção no facto de ser uma descoberta recente e argumentar que precisamos de identificar a fórmula que nos vai permitir eliminar a pobreza duma vez por todas. Porquê não sonhar? Se calhar é mesmo possível eliminar esse problema de vez. Aí uma boa parte do esforço de combate deveria ser canalizada para a investigação, capacitando – ah, capacitando! – os nossos investigadores das ciências sociais nesse sentido. A outra opção seria de pegar na ideia de anestesia e argumentar em dois sentidos.
O primeiro sentido consistiria em tematizar a nossa insensibilidade em relação ao sofrimento de outros. Por que o sofrimento dos outros não nos incomoda? Por que somos assim tão insensíveis? O que fazer para que a sociedade não fique indiferente à sorte dos menos afortunados? O segundo sentido poderia, por sua vez, pensar nas medidas de socorro como paliativos que tenham como objectivo político reforçar a capacidade dos pobres de sofrerem estoicamente a sua pobreza. Refiro-me aqui sobretudo à necessidade de garantir que não lhes ocorra fazerem uma revolta que poderia desestabilizar todo o sistema.
E sem o leitor se dar conta foi-se o espaço para escrever. A sociologia é irmã gémea da imaginação fértil. E digo mais: se calhar é imaginação (fértil) que nos faz falta no país.
E. Macamo
Maputo, Sábado, 1 de Maio de 2010:: Notícias