Alfabeto para combater a pobreza – U como Unidade
Usiwana / uloyi, diz-se em changana (pobreza é feitiçaria). E é mesmo. O feiticeiro não tem família, não tem onde ir encostar a cabeça quando volta deprimido duma das suas voltas nocturnas à procura de vítimas, não pode, enfim, dar na cara. Outra coisa também não era de esperar. O feiticeiro coloca-se voluntariamente à margem da sociedade pelo que faz sentido, de facto, que a imaginação popular associe a pobreza ao isolamento. Não há pior destino para um Changana do que a perspectiva de morrer sozinho sem ninguém próximo para nos enterrar. Morrer assim é o pior dos destinos. Pode parecer engraçado, mas quando um Changana diz “essa tua mulher vai te enterrar” ou “esses teus vizinhos vão te enterrar”, está a tecer um elogio. Está a constatar que alguém não está a sós no mundo.
A pobreza tem disto. Uma das suas principais características é justamente esta de isolar as pessoas e deixá-las entregues à sua própria sorte. A pobreza significa uma ruptura nas relações sociais individuais, o que, por sua vez, indica que o tecido social apresenta uma estrutura atomizada. Vou dizer isto doutra maneira. A situação normal de muitos de nós é de nascermos e crescermos rodeados de parentes. Em alguns casos estes parentes são muito próximos, noutros menos. Por razões ecológicas investimos na manutenção destes círculos de parentes como forma de garantirmos assistência em momentos difíceis. Há factores, porém, que podem conduzir ao relaxamento destas redes de parentesco. Estou a pensar, por exemplo, na migração, no enriquecimento individual, mas também na erosão dos tecidos sociais de comunidades – calamidades naturais e sociais – que podem obrigar os indivíduos a se afastarem dos seus parentes. Normalmente, quando é assim entram novas redes em jogo, como por exemplo as igrejas, as associações profissionais, desportivas, culturais e mesmo políticas. Ou por outra, para um indivíduo ficar mesmo sem amparo é preciso que muita coisa corra mal no meio social onde ele deveria estar integrado.
E este pode ser o problema da pobreza no país. Pode ser que a história do país dos últimos anos seja a história da atomização da sociedade – cada vez mais indivíduos entregues à sua própria sorte – sem que tenham surgido outras formas – oficiais e informais – de integração do indivíduo na ausência dos tradicionais laços familiares. Noutros países civilizados que fizeram o mesmo percurso, sobretudo, no caso da Europa na sequência do processo de industrialização, o Estado, através das instituições de previdência, estendeu um tapete aos indivíduos, tapete esse que tratou de suster os golpes produzidos pela queda de alguns em resultado da atomização. A existência deste tapete – efectivamente, a política social – acabou, na verdade, redefinindo o sentido de coesão dessas sociedades. Amparar o indivíduo entregue à sua sorte passou a ser um dos principais motivos da política nesses contextos.
Portanto, em certa medida podemos olhar para a pobreza na perspectiva da noção de unidade como uma oportunidade que o infortúnio nos proporciona de redefinirmos as redes que devem fazer o nosso tecido social. Isto implicaria formas de intervenção contra a pobreza que dariam maior destaque ainda à política social no verdadeiro sentido do termo ao mesmo tempo que dariam à sociedade critérios de avaliação do desempenho político. Repito uma ideia já apresentada nesta série: andar a contar o número das pessoas que já não estão a viver na pobreza – sejam lá quais forem os critérios – não me parece a melhor maneira de avaliar o sucesso do combate. O número pode baixar simplesmente porque houve um projecto qualquer aí de abertura de furos de água, construção de escolas, etc. sem, contudo, um reforço correspondente da nossa capacidade interna como sociedade de amparar os que estão sós. Muitos de nós gostamos de enfatizar a natureza solidária da nossa cultura – o que é louvável – mesmo perante várias situações que mostram claramente que a nossa cultura convive alegremente com situações em que alguns dos membros da nossa sociedade não têm quem os enterre. São poucos aqueles que por iniciativa própria e com meios próprios procuram dar amparo aos outros; a maioria prefere fazer isso em nome duma ONG estrangeira e sob condição de pagamento, claro. E depois gritamos aos quatro ventos que somos da sociedade civil.
E. Macamo
Maputo, Quinta-Feira, 29 de Abril de 2010:: Notícias