11 de junho de 2010

Alfabeto para combater a pobreza – F como Felicidade

Alfabeto para combater a pobreza – F como Felicidade

No dia em que eu concorrer à Presidência da República – nunca percebi porque é que as pessoas preferem sempre imaginar-se como Ministros – vai ser na boleia dum partido – que eu próprio vou criar, claro, cujo programa vai ser de aumentar a felicidade do povo. A ideia ainda não está amadurecida porque ainda estou a reflectir sobre o que constitui a felicidade do povo. Nos momentos mais étnicos da minha reflexão, aqueles momentos em que tento pensar como um Changana, imagino a felicidade como sendo feita de três refeições diárias com carne à fartura, revisão da questão da monogamia no código da família e a instauração dum processo contra as autoridades coloniais portuguesas que confiscaram o gado do meu avô em Panda-Mudjekeni no tempo em que as vacas que tínhamos eram gordas.

Só que depois ponho-me também a imaginar que outros momentos étnicos ou variações dentro do mesmo momento étnico podem implicar outros critérios de determinação da felicidade. Daí a dificuldade em amadurecer a ideia. A única salvação que encontro é o estudo do que outros apuraram na sua reflexão sobre a boa vida. Os gregos, leio em livros de filosofia, embora não tão homogéneos nas suas concepções, convergiam um bocado na ideia de que uma boa vida é uma vida temperada. Não muito disto, nem pouco daquilo. Um bocado de tudo. Alguns filósofos de entre eles extraíram dessa ideia de tempero na vida a convicção de que uma boa vida tinha que ser uma vida virtuosa de modo que o desafio consistiria em estabelecer a virtude. Em certa medida, a história da ética na filosofia, e desde então, tem sido a história de saber como definir a virtude. Ela vem mascarada na curiosidade em saber como estabelecer o que é bom e o que é mau.

Algo me diz que a reflexão sobre a virtude – como forma de determinar a felicidade – pode ser um caminho interessante para abordar o desafio do combate à pobreza. Há várias maneiras de fazer isto. A mais simples seria de perguntar em que medida é que a existência da pobreza cria obstáculos à assimilação da necessidade da virtude. Como, por exemplo, convencer alguém a aceitar que a moderação no consumo é a chave da felicidade quando ele sabe que a sua moderação não é por opção própria e, pior ainda, quando ele vê que alguns dos que lhe dão esse conselho gratuito vão no seu quinto carro para uma família que só tem duas pessoas com carta de condução, uma das quais é conduzida por um motorista pago pelo Estado moçambicano? Esta pergunta foi longa. As minhas desculpas. Reparem que a ideia não é de dizer, bom, já que o pobre teria dificuldades em ver a utilidade dessa discussão vamos pura e simplesmente esquecer o assunto. Não. A ideia é de suscitar justamente esse debate de modo que os programas de combate à pobreza sejam discutidos na esfera pública com referência à questão da desigualidade.

A forma mais complexa de abordar o desafio do combate à pobreza pela discussão sobre a virtude consistiria em levantar um debate sobre valores. Curiosamente, discutimos pouco sobre valores em Moçambique. É verdade que o risco de ressuscitar fantasmas com todas as referências normativas que fazem o nosso território é muito grande. Como escolher entre os valores defendidos pelas várias religiões, pelos vários grupos linguísticos, pelas várias maneiras de viver e pelos vários estilos de vida? Difícil. Bom, na verdade até porque discutimos muito sobre valores. A nossa imprensa e os blogues na Internet, por exemplo, costumam fazer passar diatribes morais por análise do país. A plausibilidade do que muitos conceituados e respeitados observadores da nossa praça dizem e escrevem assenta unicamente na indignação moral que eles conseguem emprestar aos seus pronunciamentos. Quando intervenho nessas discussões tenho tentado chamar isso à atenção dos inflamados analistas, mas com pouco sucesso, razão pela qual venho por este meio apelar ao leitor inteligente para se acautelar quando deparar com esse pessoal. Não obstante, penso que se calhar essa discussão é mesmo necessária, desde o momento que não se faça passar por análise. O teste da sua utilidade deveria consistir em nos permitir saber porque a pobreza nos incomoda como moçambicanos. É isso que me parece faltar para determinarmos a felicidade.

E. Macamo (2010)
in Notícias co.mz