Alfabeto para combater a pobreza – D como Dignidade
Não ponho as minhas mãos no fogo, mas arrisco este palpite: pior do que ser pobre, mas muito pior mesmo, é ver a sua dignidade violada. A sério. Um indivíduo pode não ter dinheiro suficiente para apanhar o “chapa”, ir à cidade e meter o requerimento para seja lá o que for; pode ter que sair lá de Mahlampswene, caminhar sob o sol ardente de Março e Abril, fazer depender o ritmo da sua caminhada do número de sombras e da rapidez com que pode galgar a distância sem entregar a pobre sola do seu pé ao prazer sádico da areia quente do nosso verão e ir formar a bicha até chegar a sua vez; ele pode passar por tudo isso e morder os lábios porque sabe que esse é o significado da pobreza material. Não obstante, o que ele não pode engolir – porque vai se formar um nó seco na sua garganta – é que chegado ao balcão algum funcionário qualquer, gozando da prerrogativa de estar do outro lado do balcão, portanto, na companhia confortável da razão oficial, o trate sem consideração, o mande esperar enquanto atende uma pessoa “importante”, “estrutura” ou alguém que lhe passe algumas notas da nova família por entre as folhas do requerimento.
Ele não pode engolir isso, mas vai ter que o fazer. E vai doer muito mais do que a caminhada que fez porque é ali onde ele vai ganhar ainda maior consciência do que a pobreza material pode significar: que uma pessoa deixa de ser (vista como) uma pessoa. A pobreza material constitui maior problema ainda quando é a razão que nos leva a perdermos o nosso direito de sermos tratados como iguais. Aqui dói a pobreza, e muito. A filosofia política dos últimos tempos, nos seus esforços de identificar a razão da democracia liberal, o seu fundamento e os seus princípios inalienáveis converge na ideia da igualdade. Não se trata, porém, da igualdade proclamada pela Revolução Francesa de há dois séculos, uma igualdade simplesmente proclamada enunciando meramente que por sermos da mesma espécie somos iguais, mas sim da igualdade fundada na ideia de que podemos ser diferentes em relação ao que a natureza nos conferiu como equipamento para a vida – afluência dos pais, inteligência, artimanha, etc. – mas, e este é um grande mas, a diferença de equipamento natural não pode constituir motivo para que não sejamos tratados como iguais.
Na perspectiva de quem não é pobre e filosofa sobre a pobreza, não é consolo para quem é pobre saber que vive num país onde a pobreza não implica que ele perca o direito de ser tratado como igual. Eu acho, contudo, que é. Aliás, acho que tem consequências sérias para a estrutura do nosso sistema político e, sobretudo, para a qualidade do debate na esfera pública. Já disse em algumas ocasiões que para mim o tipo de corrupção que me parece extremamente sério e que merece toda a atenção dos nossos governantes e da sociedade civil é a chamada pequena corrupção, pois é justamente aqui onde a pobreza se vira contra uma parte considerável do nosso povo para se tornar na razão da sua exclusão. Essa exclusão significa, na verdade, a violação da dignidade dos afectados.
Estou a tentar imaginar uma situação em que procurássemos definir a pobreza a partir da necessidade de garantir a dignidade de cada moçambicano. O leitor pode fazer o mesmo exercício. Acho que veríamos o problema de forma completamente diferente da actual. De repente, a prioridade política não seria mais do que simplesmente cavar poços, construir latrinas, escolas e postos sanitários, mas sim de garantir o seu funcionamento bem como o compromisso do pessoal de serviço com um serviço de qualidade para que os beneficiários não sejam ofendidos na sua dignidade por dependerem desses serviços.
Aí também ganhávamos a possibilidade de limitarmos os efeitos nocivos da presença da indústria do desenvolvimento no nosso seio, pois um enfoque na preservação da nossa dignidade haveria de nos obrigar a reflectir sobre a humilhação que é a dependência de outros para a satisfação das nossas necessidades. Quem esfrega as mãos quando não colocamos a questão nestes termos é essa indústria que pode dormir descansada na convicção de que tem uma tarefa importante a cumprir e vai sempre inventando mais coisas – tipo Metas de Desenvolvimento do Milénio – para perpetuar as violações à nossa dignidade.
E. Macamo (2010)
in Notícias.co.mz